Não tenho prata nem ouro, mas o que tenho lhe dou.
Viver é administrar critérios, e critérios correspondem, grosso modo, às distâncias que estendemos entre nós mesmos e os demais. Num sentido muito profundo, sentimos que somos definidos pelos nossos critérios; efetivamente cremos que somos a soma das distâncias que estabelecemos entre nós e cada outro que povoa o nosso universo.
E não se trata apenas aquilo que sentimos que somos. Os critérios não apenas nos definem e nos protegem; na prática, tudo que acumulamos, realizamos e “construímos” ao longo da vida é fruto direto de nossa habilidade de gerenciar, articular e manipular as distâncias que nos distinguem dos demais.
Desde a infância somos ensinados não apenas a celebrar essas distâncias, mas a usá-las continuamente em nosso favor. Os mais jovens são ensinados a usar sua juventude contra os mais velhos, e os velhos sua experiência contra os mais novos; os talentosos usam seus talentos de modo a invalidar os medíocres, e os medíocres imitam com sucesso o talento quando percebem o quanto é fácil vender a mediocridade.
Os livros que prometem “Como ficar rico em pouco tempo” limitam-se a ensinar descaradamente o que todos fazemos em oculto: comece com uma pequena distância, um pequeno diferencial que o distinga da massa, e use/manipule os critérios dos outros de modo a transformá-la numa grande distância. Enriquecer e fazer fama não são outra coisa que consolidar a distância entre nós mesmos e os outros, e o mundo não faz outra coisa senão dizer que isso é uma coisa boa e desejável.
O mundo dos homens está finamente equilibrado sobre essas colunas de sensatez, mas de vez em quando caminham entre nossas pernas gigantes incômodos que invalidam por completo nossos critérios, e fazem isso basicamente ignorando-os. São gente minúscula e, segundo os critérios deste mundo, desprezível – mas em sua gentil insubmissão são inteiramente capaz de derrubar-nos dos terraços que construímos para nossas pretensões.
Sócrates foi um desses e Gandhi foi um desses, mas de modo geral gigantes desse porte não deixam herança, e essa sua infertilidade representa a tranquilidade do mundo e nossa paz. Nesse sentido, a singularidade do Filho do Homem e sua espada residem em ter colocado em movimento um reino vivo e sem fronteiras, habitado por gente comum, definido precisamente pela disciplina da inclusão. O avanço sem impedimentos desse movimento representaria a ruína do mundo como o conhecemos, porque a disciplina da inclusão está fundamentada no completo abandono daquilo que o mundo toma por absolutamente fundamental: nossos critérios, e com eles as distâncias reais e imaginárias que representam.
Pedro e João, incrivelmente, são agora portadores dessa contaminação e representantes dessa ameaça. Sua missão não é, como a de todos os homens, a de acentuar as distâncias e diferenças entre si mesmos e os outros, mas precisamente o oposto.
Os colonos do reino são eliminadores de distâncias, e isso retêm em comum com o seu Desbravador. É por isso que sua primeira medida prática, como vimos, foi diluir num esforço distributivo radical as falsas distinções projetadas pela riqueza. Agora, muito claramente o dinheiro não tem como se interpor no caminho da sua missão. “Não tenho prata nem ouro”, eles professam – e é absolutamente afortunado que seja assim, porque o dinheiro é a coisa mais barata que se pode dar a qualquer um.
Se fosse diferente – se Pedro e João de fato tivessem prata e ouro para consolar a sua consciência e a necessidade do homem na porta do templo, nenhuma distância estaria sendo eliminada. Ao contrário, o espaço imaginário que os distinguia/separava daquele homem só teria sido acentuado, como acontece conosco quando pensamos que há verdadeira generosidade em estender uma moeda a quem quer que seja.
Os habitantes do reino, no entanto, estão inteiramente preparados a ter nada a perder, de modo a terem constantemente tudo a oferecer. Quando estendem a mão ao homem necessitado, Pedro e João estão sem exagero dando tudo que tem e que são. De fato, “o que tenho lhe dou”: completa aceitação, completa fraternidade, completo equilíbrio de recursos e de forças. A comunhão de que desfrutam entre si, dois homens estendem sem reservas a um terceiro. Tomam-lhe pela mão e com isso lhe dizem: “você não é um homem que vive de esmolas; a distância que os outros estabeleceram para proteger-se da sua condição é uma farsa. Você é um ser humano; você é um de nós”.
E ficará provado que, uma vez que deixamos de fazer a distinção, ela deixa simplesmente de existir. A graça da inclusão se comunica sem critério de um vaso a outro, e onde todos estão cheios não há distância a ser coberta.
Este artigo faz parte de uma série de textos escritos por Paulo Brabo no blog Bacia das Almas. Aconselho a ler ela completa no blog dele - Bacia das Almas.