sábado, 26 de fevereiro de 2011

Tarefas do Cristianismo de Libertação (I): crítica da idolatria

Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital
Em um artigo recente, eu escrevi que uma das questões fundamentais do nosso tempo é que "o Império global de hoje domina por sedução”. Diferentemente de todos os impérios anteriores, o atual sistema capitalista global não tem no poder e força militar o seu principal instrumento de expansão e dominação. Usa sedução e fascinação, a ostentação do seu modo de vida (na verdade da sua elite) como sua arma de conquista.

Pessoas e povos que se sentem fascinação pelo modo de viver de um grupo assume este modo como o seu modelo de vida, deseja ser incorporado neste mundo e não deseja nada diferente e, por isso, crê que não há alternativas. E o seu medo é não ser reconhecido pela elite do mundo e ser expulso do "banquete do mundo”.

Fascinação, medo e ausência de alternativa são características do "sagrado”. E os ideólogos do Império sabem exploram muito bem essa aura religiosa em que está envolto o sistema capitalista atual e reforçam esse processo de sacralização do Império. Em um mundo assim, as palavras do jovem Marx se tornam atuais novamente: "A crítica da religião é a condição preliminar de toda crítica”. Sem a crítica da religião, não é possível ou eficaz as críticas políticas e econômicas, pois o que é visto como sagrado não pode ser criticado.

É claro que a crítica imprescindível da religião hoje não é a da cristandade da época de Marx, mas o capitalismo como a "religião da vida cotidiana”. Esta consciência do caráter religioso, sagrado, do capitalismo não é apenas de Marx ou de alguns teólogos da libertação que desenvolveram a crítica da idolatria do mercado ou do capitalismo como a tarefa teológica principal – ao invés da justificação da fé ou do sagrado para um mundo aparentemente não-religioso –, mas também encontramos em autores como Max Weber e W. Benjamim. Permita-me fazer uma longa citação de Weber: "[Hoje] Tudo se passa, portanto, exatamente como se passava no mundo antigo [...]. Os gregos ofereciam sacrifícios a deus das cidades; nós continuamos a proceder de maneira semelhante, embora nosso comportamento haja rompido o encanto e se haja despojado do mito que ainda vive em nós. [...] A religião tornou-se, em nosso tempo, ‘rotina quotidiana’. Os deuses antigos abandonam suas tumbas e, sob a forma de poderes impessoais, porque desencantados, esforçam-se por ganhar poder sobre nossas vidas, reiniciando suas lutas eternas.”

Os sacrifícios religiosos continuam sendo oferecidos aos deuses, só que o deus de hoje é uma força impessoal (o sistema de mercado global) que domina as nossas vidas cotidianas e demanda sacrifícios de vidas humanas, as dos mais pobres. Como vivemos em uma sociedade "ilustrada” e desencantada, as linguagens e os sacrifícios não são mais explicitamente religiosos, mas –como diz Weber– tudo se passa como no mundo Antigo. Não perceber isso e pensar que a tarefa dos cristianismos e teologias da libertação é apresentar e justificar o sagrado ou deus no mundo de hoje é –penso eu– perder a criticidade teológica e a perspectiva profética do cristianismo.

Diante desta realidade, há uma tarefa que o cristianismo de libertação e, em particular, a teologia da libertação precisam assumir como uma tarefa fundamental: a crítica da idolatria, a crítica prática e teórica da religião dominante, do sagrado que gera fascinação, medo e senso de absoluto em torno do capitalismo global. É uma crítica que, se os setores religiosos e teologias não fizerem, ficará uma lacuna na luta por um por outro mundo, e outra globalização.

Teologias de libertação críticas de idolatrias não são necessárias e importantes porque alguns teólogos querem manter a relevância social das teologias, mas sim porque podem contribuir de modo substancial no desmascaramento da fascinação e absolutização do atual sistema de dominação e opressão em escala global.

Se o que foi dito tem algum sentido, a pergunta que se segue é:em que consiste a crítica prática e teórica da idolatria do mercado? (a continuar)

[Co-autor, com Hugo Assmann, do "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”].

Sul da Ásia projeta erradicar fome até 2030

Para secretário-geral adjunto da ONU, progresso inclusivo ajudará a superar desigualdade na região com 2º maior crescimento do planeta
Divulgação / UN Photo / Evan Schneider

da PrimaPagina


O Sul da Ásia é a região do planeta com a segunda maior taxa de crescimento econômico, mas esses ganhos não estão chegando aos seus 595 milhões de pobres, que ainda sofrem com desigualdade, fome e dificuldade de acesso a serviços básicos. É o que afirma Ajay Chhibber, secretário-geral adjunto da ONU e diretor regional do PNUD para Ásia e Pacífico, para quem essas conquistas financeiras, se corretamente administradas, podem eliminar a pobreza até 2030.

A autoridade das Nações Unidas discursou nesta quinta na sessão de abertura da Conferência Mundial Recriando o Sul da Ásia: Democracia, Justiça Social e Desenvolvimento Sustentável, organizada pelo Centro para Política e Estudos local.

De acordo com ele, a região, formada por Afeganistão, Bangladesh, Butão, Índia, Irã, Maldivas, Nepal, Paquistão e Sri Lanka, vive um momento bastante favorável. Chibber ressalta que esses países estão reforçando as suas democracias, os pacotes de estímulo ajudam as nações a saírem da crise econômica mundial e os esforços de construção da paz e de inclusão de grupos sociais marginalizados começam a surtir efeito. “O Sul da Ásia tem um enorme ‘dividendo demográfico’, e a população cada vez mais exige responsabilidade e transparência dos seus governantes”, diz.

Porém, apesar dos sinais de estabilidade política e econômica, os indicadores sociais da região são pouco favoráveis, apontando que grande parte da população é privada das oportunidades criadas pelo crescimento. As famílias pobres, por exemplo, são desproporcionalmente afetadas pela alta dos preços dos alimentos –seu poder de compra diminuiu 24%, contra uma redução de 4% para os ricos.

Se por um lado a taxa de pobreza local caiu, o número absoluto de pessoas que vivem com menos de US$ 1,25 por dia aumentou, passando de 549 milhões em 1981 para 595 milhões em 2005. Além disso, mais de 250 milhões de crianças sofrem com desnutrição, cerca de 30 milhões de jovens estão fora da escola e um terço das mulheres adultas são anêmicas.

“O foco da região deve ser levar os benefícios da prosperidade aos excluídos. O crescimento inclusivo deve orientar todas as decisões políticas, com a sociedade civil desempenhando o seu papel na articulação daqueles que não têm voz”, afirma Chhibber.

Nos últimos 20 anos, o PNUD defende uma abordagem de desenvolvimento humano que não se resume a garantir um nível de rendimento digno e qualidade de vida para todos, mas que também inclui esforços para que cada pessoa tenha capacidade, direito e liberdade para fazer parte das decisões que afetam suas vidas. Isso contempla o direito ao voto e a cobrança junto aos governantes.

“A democracia tem o potencial real para permitir o crescimento dos mais pobres, sustentando o desenvolvimento humano”, completa.

Ameaça climática

Para Chhibber, mesmo que o os ganhos econômicos no Sul da Ásia continuem acelerados, seus países seguem muito vulneráveis aos impactos da variação climática. Entre as evidências mais preocupantes estão os níveis de elevação do mar, que ameaçam as Maldivas e a costa de Bangladesh, além do derretimento da neve na cordilheira do Himalaia.

“A mudança climática não é mais uma ameaça distante. Ela é uma realidade e um sinal do que vem pela frente. Por isso, precisamos promover novos encontros como esse para discutirmos a pobreza e o aquecimento global”, finalizou.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A arte de seduzir

Frei Betto
Escritor e assessor de movimentos sociais
Adital
Toda ditadura é megalômana. E a que governou o Brasil sob botas e fuzis, de 1964 a 1985, não foi diferente. A construção da rodovia Transamazônica simboliza a arrogância do regime militar.

Rasgou-se a selva de leste a oeste. Abriu-se a estrada em paralelo a caudalosas vias fluviais. Em vez de aprimorar o sistema de navegação pelo rio Amazonas e seus afluentes, a ditadura preferiu obrigar a floresta a ajoelhar-se a seus pés. Possantes máquinas puseram abaixo árvores milenares encorpadas de madeiras nobres, destruíram ecossistemas preciosos, alteraram o equilíbrio ecológico da região.


Tudo em nome de uma palavra tão propalada e, no entanto, vazia de significado: desenvolvimento. Leia-se: exploração predatória da maior floresta tropical do mundo, aberta à voracidade de mineradoras, madeireiras e, sobretudo, do latifúndio predador, quase sempre movido a trabalho escravo.


"No meio do caminho havia uma pedra”, repetiria Drummond. Povos indígenas. Como impedir que oferecessem resistência? Simples: através da arte de seduzir. A Funai ergueu tapini (cabanas de folhas). Dentro, utensílios de caça e cozinha, ferramentas etc. Os índios, encantados com os objetos, acolhiam gentilmente os caras-pálidas. E ingenuamente eram cooptados pelas relações mercantilistas. Em troca de bugigangas perdiam saúde, terras, liberdade e vida.


Detalhe: o mato, não o gato, comeu a Transamazônica, fonte de riqueza e poder de umas tantas empreiteiras.


Hoje, os índios somos todos nós. Os tapini, os shopping, a publicidade, as veneráveis bugigangas que nos agregam valor. O inumano imprime sentido ao humano, como faziam os deuses de ouro denunciados pelos profetas bíblicos: tinham boca, mas não falavam; olhos, mas não viam; ouvidos, mas não escutavam; pés, mas não andavam...


Estamos todos somos sob o efeito hipnótico do consumismo. Não importa se o produto é frágil ou de má qualidade. Seu design nos cativa. Sua publicidade nos faz acreditar que estamos comprando a oitava maravilha do mundo! E, ingenuamente, que se trata de um produto durável, mesmo conscientes de que o capitalismo não se importa com o direito do consumidor, e sim com a margem de lucro do produtor.


Como se livrar do labirinto consumista que, na verdade, se consuma nos consumindo? Não vejo outra porta de saída fora da espiritualidade, somada a uma nova visão do mundo. Sem espiritualidade corremos o risco – sobretudo os mais jovens – de dar importância àquilo que não tem. Imbuídos da baixa autoestima que nos incute a publicidade ("você não é ninguém porque não possui este carro, não veste esta roupa, não faz esta viagem...”) encaramos a mercadoria como algo que nos agrega valor. Não basta a camisa, a bolsa ou o tênis. Têm que ser de grife, com a etiqueta exibida do lado de fora. Assim, todos à nossa volta haverão de reconhecer o nosso status. E quiçá invejar-nos. E aquele ser humano que, ao lado, carece de produtos refinados, é visto como não tendo nenhuma importância. Pois não se enquadra no atual princípio pós-cartesiano: "Consumo, logo existo.”


É espiritualizada toda pessoa cujo sentido de vida deita raízes em sua subjetividade e cujas opções são movidas por ideais altruístas. Ela não faz do que possui –conta bancária, títulos, casa, carro etc.– seu fator de autoestima. Sabe que tem valor em si, que não é nutrido pela posse de bens e sim por sua capacidade de fazer o bem aos outros. Sua autoestima se funda na generosidade, solidariedade e compaixão. Ela é feliz porque sabe fazer outras pessoas felizes.


O mercado tudo oferece. Todos os seus produtos nos chegam embrulhados em papel de presente: se compramos este carro, seremos felizes; se bebemos aquela cerveja, nos sentiremos alegres; se adquirimos tal roupa, ficaremos joviais. O único bem que o mercado jamais oferta é justamente este que mais buscamos: a felicidade. No máximo, o mercado tenta nos convencer de que a felicidade é o resultado da soma de prazeres.


Ora, a felicidade é um bem do espírito, jamais dos sentidos, da cobiça ou da arrogância. É feliz quem ousa destampar o próprio ego e conectar-se com o Transcendente, o próximo e a natureza. Esse irromper para fora de si mesmo tem nome: amor. E se manifesta nas dimensões pessoal, no dom de si ao outro, e na social, no empenho de construir um mundo melhor.

Falta investimento em doenças tropicais, diz coordenadora da DNDi


Para Fabiana Alves, da Medicamentos para Doenças Negligenciadas, indústria farmacêutica não tem interesse em algumas doenças de países em desenvolvimento.



Levar medicamentos para os países que sofrem com as chamadas doenças negligenciadas – como malária, tuberculose e doença de Chagas – é o principal desafio de quem busca combatê-las. É o caso de Fabiana Alves, Coordenadora de Projetos da iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês).
Ela explica que a associação entre doença e negligência vem da falta de interesse em se desenvolver novas drogas ou novas ferramentas que auxiliem tanto o seu diagnóstico quanto o seu tratamento. E pior: “São doenças que ocorrem em regiões tropicais, em países em desenvolvimento, que afetam pessoas que não têm recursos para comprar um tratamento”, diz Fabiana.
Segundo ela, o Brasil vive uma situação favorável em relação ao diagnóstico e tratamento de grande parte dessas doenças, mas em muitos países as condições são bem diferentes. “As indústrias farmacêuticas não têm interesse em investir nessas doenças por conta do lucro”, comenta.
A DNDi tenta reverter esse panorama pesquisando e desenvolvimento drogas ideais para o tratamento de pacientes: “Buscamos uma droga segura - que não tenha toxicidade -, barata e que possa ser dada por via oral”, explica.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O sequestro do testemunho

Com o perdão da palavra, especialmente aos afortunados que desconhecem a expressão, uma palavrinha sobre o testemunho pessoal, o nome que se dá no círculos evangélicos ao ato de repartir-se (especialmente em público) a narrativa individual da conversão.

Qualquer um que teve o revés de esbarrar numa estação de rádio evangélica não desconhece o tom inequívoco de quem está falando DAQUILO QUE DEUS FEZ NA MINHA VIDA, mas os de dentro sabemos – pela experiência e também porque nos ensinaram – que essas peças literárias envolvem não apenas uma entonação e uma retórica, mas uma suposta relação com a aquisição e o exercício da própria salvação.

Não deve haver dúvida de que foi a cultura evangélica a introduzir na experiência cristã a centralidade do conceito de testemunho pessoal. Agostinho escreveu as suas Confissões e o apóstolo Paulo deixou-nos um ou dois esboços de autobiografias espirituais (nos quais, muito significativamente, não menciona os detalhes da sua conversão), mas o exemplo deles não parece ter deixado grande impacto na teologia e na liturgia.

Foram necessárias a Reforma e sua onde de impacto para que a prática tomasse forma e alcançasse a consagração. O paradoxo, portanto, está em que o movimento que privatizou praticamente todos os aspectos da experiência religiosa acabou sacralizando a confissão pública.

Que se saiba, o testemunho público de conversão encontrou seu lugar na liturgia cena no século dezesseis, pela mão dos puritanos norte-americanos. Tratava-se, aparentemente, um recurso para medir e garantir a afinidade de cada história pessoal à crença correta. Os que desejavam ingressar na congregação tinham de narrar publicamente o processo de conversão, de modo a que a comunidade pudesse avaliar a ortodoxia dos conceitos e episódios trazidos pelo candidato.

Essa formalidade lateral alcançou o centro do palco nos movimentos evangelísticos e carismáticos dos séculos dezoito e dezenove. A partir daí “contar ao mundo o que Deus fez por mim” passou a ser o cerne e a razão de ser, o método e o objetivo, dos movimentos de evangelização de cada braço do evangelicalismo. Como todas as soluções com vocação para a perpetuidade, a glorificação do testemunho pessoal apresentava mais de uma vantagem: além de cimentar no neófito e nos membros da comunidade o senso de pertença, servia também como ferramenta de propaganda para os candidatos a candidatos (isso sem contar que relegava a um segundo plano, de onde podiam permanecer ignorados, os desafios mais exigentes e embaraçosos da herança cristã – mas estou me adiantando).

Nos últimos cem anos a fabricação privada do testemunho pessoal, tanto em palavras quanto nos episódios que o comporão, tem sido absolutamente central na experiência comunitária evangélica – pelo menos tão fundamental quanto o ato de proferi-lo. A centralidade do testemunho é tamanha que o adorador só alcançará definitivamente a estatura de membro legítimo e integral do grupo, o divisivo status de um de nós, quando for capaz de proferi-lo. Não importa que o candidato participe da comunidade com toda a assiduidade ou paixão, ou já há tanto tempo; enquanto seu testemunho não estiver construído e exposto ele não estará completo como integrante do corpo.

A prática de se narrar publicamente a conversão é portanto a construção de uma construção; representa a introdução de uma novidade que ao mesmo tempo explica e perpetua a dinâmica que a sustentará.

Os evangélicos passaram a definir-se, em grande parte, como aqueles que “dão testemunho”. Não há como viver na arena evangélica sem acabar intuindo que o testemunho pessoal é ao mesmo tempo a narrativa da entrada e a chave da entrada na elite dos completos. Não há como evadir-se a esse regime, porque é ele que define a comunidade e a função de cada um dentro dela. Fabricar um testemunho pessoal é, muito literalmente, fabricar uma identidade; proferi-lo é também legitimar a identidade do grupo.

continua

Paulo Brabo - Bacia das Almas

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Alta dos preços dos alimentos levou a 44 milhões de pessoas na pobreza

Em nome de Deus

João Brant - Brasil de Fato
Ligar a televisão no horário nobre e ver um líder religioso utilizando o espaço para pregar e buscar fiéis é algo que parece fora do lugar. E é. Não por ser uma manifestação religiosa, algo que é parte da cultura brasileira, mas por tornar evidente que um espaço público está sendo utilizado para fins privados.
O mundo todo discute como equilibrar os direitos à liberdade de expressão e à liberdade de crença, previstos em diversas Constituições, inclusive na brasileira. Há várias questões aí envolvidas. Primeiramente, manifestações religiosas devem ou não ser permitidas em veículos de comunicação que são concessões públicas, como rádio e TV? Se sim, deve ser permitido também o proselitismo religioso, ou seja, a prática de tentar 'vender seu peixe' e conquistar fiéis?
Na busca de respostas, é preciso pensar como esse tipo de manifestação ajuda ou afeta a liberdade de crença – que é maior do que a liberdade religiosa e inclui até o direito de não se ter religião. E lembrar que, para outras manifestações similares, como o proselitismo político, já há um consenso sobre a necessidade de regras claras para que espaços públicos não sejam tomados por grupos específicos.
No caso das religiões, deve-se perguntar, também, como garantir às distintas manifestações de fé o mesmo direito, já que não chegam a 2% as denominações religiosas presentes no Brasil que têm espaço em meios de comunicação. Deve-se também impedir que esses espaços sejam usados para ataques a outras religiões, como os que sofrem as denominações de matriz africana.
E há questões estruturais também fundamentais. Deve-se permitir canais inteiramente controlados por grupos religiosos, o que é proibido na maioria das democracias? Deve-se permitir o arrendamento de espaço – ou mesmo de canais inteiros – no rádio e na TV? Será que essa prática não configura uma verdadeira grilagem eletrônica, pela apropriação privada de um espaço público? Sejam quais forem as respostas, o nome de Deus não pode ser usado como álibi para evitar esse debate no Brasil.
João Brant é coordenador do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Ritos Circulares

Paulo Brabo - Bacia das Almas

Uma religião pode escolher definir-se, basicamente, pelo seu respeito aos ciclos ou pela sua obsessão com a história.

As religiões que optam pelos ciclos (vamos chamá-las, apenas por conveniência, de circulares) celebram incessantemente o [eterno] retorno dos ciclos naturais: as estações do ano, as épocas de plantio e colheita, o ciclo reprodutivo de homens e animais – e portanto o sexo. Seus rituais são construídos para cultivar aqui e agora, no presente, a beleza e o mistério do que sempre aconteceu e voltará invariavelmente a acontecer. Uma religião circular opinará que são inteiramente irreais os limites entre uma época e outra, entre uma geração e outra, entre uma manifestação da natureza e outra: e que, portanto, são ilusórias as distinções que fazemos usualmente entre homens e animais até mesmo entre uma pessoa e outra. Tudo é tudo, todos serão todos e todos já foram todos e misteriosamente o são. Não sobra, oficialmente, espaço para noções como a individualidade ou a singularidade da espécie humana.
As religiões que optam pela história (vamos chamá-las de lineares) enxergam a existência não como um círculo, mas como uma flecha com uma direção e um propósito, uma ousada aventura norteada por uma inteligência oculta e empreendedora cujo plano vai se executando e revelando progressivamente. Como não contam com os ciclos para manter a sua sanidade, as religiões lineares dependem incessantemente de revelações e de registros de revelações: definem-se pelos seus profetas, especialmente pela expectativa dos profetas e pelas histórias de profetas. Tendem por isso a ignorar o presente a a concentrar-se no futuro – e, com pelo menos a mesma paixão, no passado. Ao mesmo tempo, enfatizam a responsabilidade individual e a absoluta singularidade de tudo: do momento histórico, da criação, da espécie, da nação, do indivíduo, de Deus.
Os circulares andam em círculos, os lineares andam para frente e para trás (mas nunca olham para os lados ou para o espelho). Os lineares almejam ousadamente estar onde nenhum homem jamais esteve; os circulares têm por certo que estão onde todos já estiveram e sempre estarão.
O judaísmo, o islamismo e [originalmente] o cristianismo são os exemplos mais espetacularmente bem-sucedidos de religiões lineares. As religiões circulares são – bem – praticamente todas as outras. Depois de mais ou menos escanteados no Ocidente por milênios, os ritos circulares estão experimentando atualmente diferentes graus de ressurreição. Num golpe de justiça poética, estão desfrutando dos prazeres do eterno retorno que preconizam: como que para provar o seu argumento, as religiões circulares sempre voltam.
Seria injusto, você pode estar pensando, decidir que apenas uma dessas duas visões de mundo é a correta. Afinal de contas, nossa experiência individual é moldada tanto pelos ciclos (não é incomum dizermos “primaveras” querendo dizer “anos de idade”) quanto pelo avanço implacável do relógio história adentro. Qual será a realidade última: “tudo é como sempre foi” ou “tudo avança para um inevitável fim”? Entre a doutrina linear e a dos ciclos, haverá apenas uma que seja fundamentalmente correta? Não há uma religião que abrace as duas?
Quando entrou em cena, há quatro mil anos, o judaísmo era uma das poucas vozes a reivindicar uma visão de mundo linear – a noção de que “Deus tem um plano em cada criatura”. Em todo lugar, ao redor, pululavam como moscas as religiões politeístas e circulares.
O judaísmo chegou defendendo, além do monoteísmo, uma série de outros conceitos impopulares e improváveis: o progresso não é uma ilusão, mas a realidade última; o indivíduo e a sua participação no mundo são absolutamente singulares e essenciais; nenhum momento se repete e o pecado consiste basicamente em momentos perdidos.
”[...] a religião dos patriarcas estava infundida de um senso histórico que é caracteristicamente semita ou hebraico. Ao contrário dos povos estabelecidos em Canaã, que estavam mais preocupados em ajustar os ciclos da natureza e preservar o equilíbrio social, os hebreus errantes tendiam a expressar a sua fé na linguagem dinâmica da história. Eram peregrinos e aventureiros que, em reposta a um chamado divino, haviam deixado a sua terra de origem e partido para o desconhecido e para o incerto – rumo a uma terra que Deus lhes mostraria no devido tempo. Viviam por um empreendimento de fé, confiando que o seu futuro estava nas mãos do seu Deus”. 1
Como se verá, a fé dos judeus não ignorava os ciclos da natureza nem o seu temível poder e influência; ela pressupunha porém que havia Outro singular que estava acima até mesmo da onipresença e potência das forças naturais. Os ciclos eram poderosos, mas eram também cegos e arbitrários; este Alguém pensava, planejava, enxergava longe – e, especialmente,intervinha. Ele não estava apenas acima das forças da natureza, mas elas mesmas eram fruto de sua iniciativa e estavam inteiramente sob o seu controle.
Este Outro convidava o homem a erguer a cabeça para cima do redemoinho dos ciclos e enxergar a singularidade do momento, do Criador e dele mesmo. Convidava-o a navegar com ele por cima das ondas circulares rumo a um destino e um propósito e um fim.
Na época essa idéia era uma tremenda novidade. E alguns, curiosamente, acreditaram.
Blaise Pascal observou certa vez que o Deus da Bíblia é o “Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó”, não o Deus dos filósofos e dos sábios. “Isso é verdade no sentido de que a fé bíblica é, para perplexidade e escândalo de muitos filósofos, de caráter fundamentalmente histórico. Suas doutrinas são realidades e eventos históricos, não valores abstratos ou idéias existindo num reino atemporal”. 1
Dois mil anos depois de Abraão, o judeu Jesus era completamente imbuído desse senso de singularidade histórica. Tudo que ele disse e fez pressupunha a responsabilidade individual, tanto a dele quanto dos outros; a mensagem do Reino trazia embutida em si um plano, uma iniciativa, um rumo, uma urgência e um destino. Por trás da cortina de fumaça dos ciclos, garantia Jesus, havia um Outro que correspondia a todos e cada um. E esse se importava.
(continua, talvez circularmente…)
1. Bernhard W. Anderson, Understanding the Old Testament

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Teólogo: um ser quase impossível

Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor
Adital
Muitos estranham o fato de que, sendo teólogo e filósofo de formação, me meta em assuntos, alheios a estas disciplinas como a ecologia, a política, o aquecimento global e outros.

Eu sempre respondo: faço, sim, teologia pura, mas me ocupo também de outros temas exatamente porque sou teólogo. A tarefa do teólogo, já ensinava o maior deles, Tomás de Aquino, na primeira questão da Suma Teológica é: estudar Deus e sua revelação e, em seguida, todas as demais coisas "à luz de Deus” (sub ratione Dei), pois Ele é o princípio e o fim de tudo.

Portanto, cabe à teologia ocupar-se também de outras coisas que não Deus, desde que se faça "à luz de Deus”. Falar de Deus e ainda das coisas é uma tarefa quase irrealizável. A primeira: como falar de Deus se Ele não cabe em nenhum dicionário? A segunda, como refletir sobre todas as demais coisas, se os saberes sobre elas são tantos que ninguém individualmente pode dominá-los? Logicamente, não se trata de falar de economia com um economista ou de política como um político. Mas falar de tais matérias na perspectiva de Deus, o que pressupõe conhecer previamente estas realidades de forma critica e não ingênua, respeitando sua autonomia e acolhendo seus resultados mais seguros. Somente depois deste árduo labor, pode o teólogo se perguntar como elas ficam quando confrontadas com Deus? Como se encaixam numa visão mais transcendente da vida e da história?

Fazer teologia não é uma tarefa como qualquer outra como ver um filme ou ir ao teatro. É coisa seríssima, pois se trabalha com a categoria”Deus” que não é um objeto tangível como todos os demais. Por isso, é destituída de qualquer sentido, a busca da partícula "Deus” nos confins da matéria e no interior do "Campo Higgs”. Isso suporia que Deus seria parte do mundo. Desse Deus eu sou ateu. Ele seria um pedaço do mundo e não Deus. Faço minhas as palavras de um sutil teólogo franciscano, Duns Scotus (+1308) que escreveu: "Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe”. Quer dizer, Deus não é da ordem das coisas que podem ser encontradas e descritas. É a Precondição e o Suporte para que estas coisas existam. Sem Ele as coisas teriam ficado no nada ou voltariam ao nada. Esta é a natureza de Deus: não ser coisa, mas a Origem das coisas.

Aplico a Deus como Origem aquilo que os orientais aplicam à força que permite pensar: "a força pela qual o pensamento pensa, não pode ser pensada”. A Origem das coisas não pode ser coisa.

Como se depreende, é muito complicado fazer teologia. Henri Lacordaire (+1861), o grande orador francês, disse com razão: "O doutor católico é um homem quase impossível: pois tem de conhecer todo o depósito da fé e os atos do Papado e ainda o que São Paulo chama de os ‘elementos do mundo’, isto é tudo e tudo”. Lembremos o que asseverou René Descartes (+1650) no Discurso do Método, base do saber moderno: "se eu quisesse fazer teologia, era preciso ser mais que um homem”. E Erasmo de Roterdam (+1536), o grande sábio dos tempos da Reforma, observava: "existe algo de sobrehumano na profissão do teólogo”. Não nos admira que Martin Heidegger tenha dito que uma filosofia que não se confrontou com as questões da teologia, não chegou plenamente ainda a si mesma. Refiro isso não como automagnificacão da teologia, mas como confissão de que sua tarefa é quase impraticável, coisa que sinto dia a dia.


Logicamente, há uma teologia que não merece este nome porque é preguiçosa e renuncia a pensar Deus. Apenas pensa o que os outros pensaram ou o que o que disseram os Papas.


Meu sentimento do mundo me diz que hoje a teologia enquanto teologia tem que proclamar aos gritos: temos que preservar a natureza e harmonizarmo-nos com o universo, porque eles são o grande livro que Deus nos entregou. Lá se encontra o que Ele nos quer dizer. Porque desaprendemos a ler este livro, nos deu outro, as Escrituras, cristãs e de outros povos, para que reaprendêssemos a ler o livro da natureza. Hoje ela está sendo devastada. E com isso destruímos nosso acesso à revelação de Deus. Temos, pois, que falar da natureza e do mundo à luz de Deus e da razão. Sem a natureza e o mundo preservados, os livros sagrados perderiam seu significado que é reensinarmos a ler a natureza e o mundo. O discurso teológico tem, pois, o seu lugar junto com os demais discursos.


[Leonardo e Clodovis Boff escreveram Como fazer teologia da libertação Vozes 2010].

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Teoria da transformação social

Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital


Uma das novidades da Teologia da Libertação Latino-Americana (TLLA) nas suas origens não foi simplesmente criticar o "mundo”, falar em favor dos pobres ou propor ações de "caridade”, mas sim a de propor (a) o uso metódico das ciências sociais para compreender as razões das injustiças e opressões e (b) práticas de transformação das estruturas sociais e culturais.
O desejo de luta e de transformações que nasce da indignação ética diante das injustiças e sofrimentos das pessoas mais vulneráveis pode se perder em discursos vazios e em ações bem intencionadas, mas ineficazes. Para tentar evitar isso, a TLLA deveria se assumir como o momento segundo, sendo o primeiro as práticas de libertação, e que o primeiro passo deste momento segundo deveria ser o diálogo com as ciências do social para compreender as causas da situação. O segundo passo seria interpretar à luz da fé, da Bíblia e da tradição teológica a situação e as práticas realizadas, para no terceiro passo elaborar novas práticas dentro de estratégias de ação transformadora. E esta reflexão teológica deveria estar a serviço das práticas de libertação, com reflexões críticas sobre o mundo, o cristianismo, teologias, e até mesmo da religiosidade do povo.
Passadas quatro décadas do início da TLLA, podemos dizer que equívocos foram cometidos, mas não podemos negar que esta forma de fazer teologia iluminou as práticas e "deu razão da nossa esperança” para muitas comunidades cristãs e não-cristãs espalhadas pela AL e mundo afora.
Há um ponto que acho fundamental retomarmos: o debate sobre as teorias de transformação social. A teoria mais utilizada pela TLLA para compreender as injustiças e opressões sociais foi a "teoria da dependência” de inspiração marxista. Esta teoria não oferecia somente o diagnóstico, mas também uma linha de ação. A dominação era vista como resultado da dependência e subordinação dos países periféricos aos países centrais do capitalismo e a manutenção dessa relação era resultado (a) de uma elite nacional que se beneficiava disso (b) da alienação do povo diante dessa realidade política. Assim, a estratégia alternativa era (a) conscientizar o povo; (b) organizar o povo; (c) ir para política para "tomar o Estado” em favor dos pobres, (d) promover profundas mudanças econômicas e sociais. Por isso tanto esforço em promover cursos bíblicos, análises de conjuntura, cursos de fé e política, atuação em partidos políticos e movimentos sociais. As pequenas ações eram compreendidas e realizadas dentro deste grande perspectiva estratégica.
Hoje, o capitalismo se tornou globalizado e as lutas de libertação se ampliaram e se complexificaram (pobres, gênero, etnia, etc – tema tratado no artigo anterior), porém penso que não temos uma nova teoria sobre as transformações econômicas, sociais e culturais articulando nossas análises e ações. Isso ficou aparente no Fórum Mundial de Teologia ocorrida em Dakar. Nas mais diversas exposições e debates, era possível ver claramente contra o que lutamos e onde queremos chegar, mas muito pouco sobre como transformar a situação e qual a contribuição específica das religiões e teologias críticas neste processo.
Esta falta de visão estratégica de transformação também tem a ver com a precariedade das nossas análises sobre as atuais dinâmicas de dominação econômica, étnica, de gênero etc. Por ex, como o patriarcalismo, machismo e racismo penetraram de uma forma tão profunda no inconsciente das culturas asiáticas marcada por confucionismo, budismo, filosofia de complementaridade (ying e yang)? Como se articulou historicamente a relação entre racismo, dominação de gênero e a exploração capitalista na AL? Como transformar isso? Ou então, por que os povos dos países pobres sonham adentrar no mercado de consumo global, ao invés de desejarem um outro mundo? De onde vem o fascínio do atual Império Capitalista Global? Quais contribuições que as religiões em geral e cristianismo em particular podem e devem fazer nestas lutas?
São perguntas difíceis. Mas devemos enfrentá-las. Esta é uma das funções da teologia e das teorias críticas. Se não assumirmos este debate, nossos discursos teológicos e religiosos serão marcados por idealismos, abstrações e visões românticas, mas com pouca concreticidade e dialeticidade da história. Com discursos abstratos, sem mediações históricas, – que sempre encontra o seu público que aplaude–, a eficiência das nossas práticas ficarão aquém das possibilidades.
[Co-autor com Hugo Assmann do livro "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”, Paulus].
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