Ricardo Gondim
Por qualquer critério de justiça, os haitianos deveriam constar entre os últimos a receberem os ataques da fúria divina. Não é necessário repassar os índices da miséria que os assola; miséria crônica, injusta, maligna. No Haiti, a mortalidade infantil é campeã e a anarquia política contribui para que a pouca riqueza seja pessimamente distribuída. Tenho amigos que trabalham na Visão Mundial e já sabia dessas estatísticas. Como poderia vir sobre este povo tão sofrido um terremoto de proporções épicas? Qual o sentido de matar indiscriminadamente feiticeiros anônimos, a preciosa Zilda Arns, bebês, empregados da ONU que lutavam pela paz, turistas e soldados brasileiros?
Quando recebi a notícia do cataclismo, fiquei sem ação. O Haiti fica longe. Impotente, procurei expressar meu pesar. Chorei diversas vezes diante da televisão. Era véspera do meu aniversário. Atropelado por cenas horrorosas, tentei, mais de uma vez, coordenar minhas convicções, ligar os pontos de minha espiritualidade, descer do pedestal de minha verdade. Naquele momento frágil, vi que era necessário, pelo menos, esvaziar afirmações simplistas que formaram o chão de minha fé por muitas décadas. Diante de cenas grotescas, continuar com as mesmas declarações não só me distanciaria do sofrimento humano, como deformaria ainda mais a minha relação com Deus.
Mas parece que cada texto que escrevo, no dia seguinte a uma tragédia, provoco inquietação em fundamentalistas, liberais, ortodoxos, pensadores narrativos (sem pretensão de minha parte). Dos ortodoxos vêm os golpes mais mordazes: “Incoerente, irresponsável com o texto bíblico, propagador de um Deus pequeno e desnecessário”. Os demais criticam por que “busco respostas onde não existe”. Muitos estão contentes com o mistério. E repetem que não se deve querer especular. “A hora é de estender a mão ao que sofre”. Embora goste mais da crítica do liberal, confesso que despejei no papel minha inquietação só porque precisava quebrar possíveis paredes que me afastavam dos que sofriam. Mas, de novo, dei-me muito mal.
Sei que não adianta explicar nada. As trincheiras estão formadas. Entendo que não converterei ninguém – e nem estou interessado nisso. Entretanto, como a internet é veículo de comunicação rápido, também é suscetível a deturpações. Devo tentar debulhar melhor alguns pensamentos – talvez acirre ainda mais os ódios e as incompreensões, mas acho que vale a pena.
Procurarei esboçar ponto por ponto.
1. Os mistérios insondáveis. Sempre que em uma sinuca de bico com as convicções, parece fãcil escapar com afirmações: “isso é mistério e não convém perder tempo especulando sobre o que a gente não sabe”. Embora eu concorde em parte com esse tipo de raciocínio, acredito que muitas vezes essa postura reflete preguiça ou indisposição de demolir antigos conceitos. Não acredito que seja pecado perguntar (Em Isaías, Deus manda que o povo o questione). Alguém me provocou no twitter se eu queria “repensar tudo”. Outra pessoa respondeu por mim, e eu concordei: “E por que não?”. Sinceramente, não acredito que a fé se perde diante de perguntas difíceis. Pelo contrário, se alguma convicção não se sustentar diante do inquiridor mais feroz, talvez não mereça continuar. Perguntas podem levar a novas perguntas e a outra e outras. Mesmo que fiquemos sem resposta, o aprofundamento das questões e a busca por mais respostas é por si só, fascinante.
2. Dissimular o argumento com frases piedosas. Geralmente o debate se esvazia antes que se consiga pensar nos conteúdos porque vem precedido de frases piedosas. “Então, você está querendo acabar com a soberania de Deus?”. Essa afirmação já coloca o debate sob suspeita. Ora, se no pensamento do movimento evangélico Deus planejou, governa, gerencia, administra, todas as coisas então só um herege doido pode duvidar. Não adianta querer argumentar, a pessoa deixará de ouvir o que será dito dali em diante. Os religiosos são assim, qualquer um: espírita, muçulmano, católico, protestante. As verdades são aceitas sem racionalidade e qualquer tentativa de chamar ao bom-senso esbarra na questão da fé. “Eu creio assim e não admito que você tente me dissuadir do contrário”. Ponto final. Acontece que o Evangelho afirma que a verdade liberta. Se a verdade não pode ser confinada aos parâmetros anteriormente riscados, é preciso coragem para confrontar, duvidar. Colocar em xeque todos os alicerces das convicções é salutar. Por que não testá-las diante de tragédias? Degustá-las no silêncio? Ferí-las com os estiletes que até os ateus usam?
3. Deus tem tudo sob seu controle? Sim e não! A ambigüidade não é minha, mas do texto bíblico. A Bíblia, ao contário do que preconizam os fundamentalistas, não é homogênea. Existem sim textos, principalmente no Antigo Testamento, em que Deus é apresentado em total controle de cada mínimo detalhe de vidas e de acontecimentos históricos. Contudo, outras passagens mostram claramente que sua vontade não é sempre cumprida.
Está escrito em Lucas 7.30 que os indivíduos possuem liberdade de dar as costas ao conselho ou propósito (grego, boulê) de Deus: “Mas os fariseus e os peritos da lei rejeitaram o propósito (boulê) de Deus para eles, não sendo batizados por João”.
Também está escrito em Lucas 13.34 que a vontade (grego, thelô) de Deus pode ser frustrada. O lamento de Jesus sobre Jerusalém é emblemático: “Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram!”.
Se a sua vontade pode ser frustrada por um fariseu, também pode por um estuprador. Portanto, o estupro seguido de morte da mocinha pobre não era da vontade de Deus! A favela não é da vontade de Deus. A criança que morre de diarréia no alto da Amazônia não é da vontade de Deus. O dinheiro da corrupção depositado na Suíça não é da vontade de Deus. E se nada disso é da sua vontade, o malvado não cumpre qualque propósito, mas expressa rebelião contra o Senhor. Deus não está no controle da chacina, do genocídio, do campo de concentração, porque se estivesse viveríamos no céu, no Paraíso, menos na terra.
Pensar em soberania como um preceito teológico desconectado da vida, mas em sintonia com textos pinçados criteriosamente para fazer valer a doutrina, parece ortodoxo, mas transforma Deus em parceiro de facínoras. Os calnivistas dormem bem com esse tipo de lógica. Eu não.
Esses pontos são suficientes para que os inimigos que ganhei com o Tsunami da Ásia se enfurecessem com o Terremoto do Haiti. Não, não ofereço todas as respostas para a morte estúpida e desnecessária de mais de cem mil almas. Contudo, assim como o pensamento do judaísmo mudou com Auschwitz, espero que a minha ortodoxia cristã seja outra depois de Porto Príncipe. Continuo disposto a provocar novas inquietações e a suscitar novas perguntas. Se não conseguir esclarecer coisa alguma, pelo menos vou me despedindo das respostas simplistas de outrora. Para mim, isso será suficiente.
Soli Deo Gloria