sábado, 16 de abril de 2011

Perdi a Fé

Ricardo Gondim

Sentado na quarta fileira de um auditório superlotado, eu ouvia um renomado orador cativar mais de mil pessoas com sua oratória carismática. Na contramão do frenesi provocado por ele eu repetia para mim mesmo: "Não, não posso negar, já não comungo com os mesmos pressupostos deste senhor". Aliás, parece que ultimamente vivo em controvérsias, tanto pelo que escuto quanto pelo que falo. Algumas pessoas me perguntam se provoco polêmica para fazer tipo. Outros querem saber se sei aonde quero chegar. Respondo: - Estou mais certo dos caminhos que não quero trilhar.

Muito de minhas controvérsias surgiram porque eu me recuso a escamotear dúvidas com cinismo. Fujo de tornar-me inconseqüente nas declarações que possa fazer a respeito de Deus e da fé. Receio perpetuar uma espiritualidade desconectada da vida.
Reconheço, algumas intuições sobre teologia ainda estão verdes. Mas, nem sei se quero que elas amadureçam. O pouco de sentido que me fazem basta para que eu me ponha a garimpar a verdade. E isso é bom. Há um fluxo que me faz abandonar certas pedras onde outrora tomei pé. O que abandonei?
1. Não consigo mais acreditar no Deus inativo, que carece de preces "verdadeiras" para mover-se. Uma frase que não faz nenhum sentido para mim? "Oração move o braço de Deus".

2. Não consigo mais acreditar que os milagres de Deus sejam prêmios que privilegiam poucos. Não consigo entender que Deus se comporte como um "intervencionista" de micro realidades, deixando exércitos de ditadores “correrem frouxos". Inquieta-me saber que Deus tenha uma "vontade permissiva" para multinacionais lucrarem com remédios que poderiam salvar vidas. Não aceito que haja uma razão eterna para que governos corruptos atolem os mais pobres na mais abjeta miséria.

3. Não consigo mais acreditar que Deus, mantendo o controle absoluto de tudo o que acontece no universo, tenha sujado as mãos com Aushwitz, Ruanda, Darfur, Iraque e outras hecatombes humanas. Não aceito que ele, parecido com um tapeceiro, precisa dar nós malditos do lado de cá da história enquanto, do outro lado, na eternidade, faz tudo perfeito. Qual o propósito de Deus ao “permitir” que crianças sejam mortas pela loucura de um atirador ou que uma menina esteja paraplégica com bala perdida?

4. Não consigo mais acreditar que a função primordial da religião seja acessar o sobrenatural para tornar a vida menos sofrida. Os cristãos, em sua grande maioria, tentam fazer da religião um meio de controlar o futuro; praticam uma fé preventiva, pois aceitam como verdade que os verdadeiros adoradores conseguem se antecipar aos percalços da vida; afirmam que os ungidos sabem prever e anular possíveis acidentes, doenças, ou quaisquer outros problemas existenciais do futuro. Creio que a verdadeira fé não foge da lida, mas encara o drama de viver com coragem.

5. Não consigo mais acreditar em determinismo, mesmo chamado por qualquer nome: fatalismo, carma, destino, oráculo. Depois de ler e reler o Eclesiastes, parei de acreditar que o cosmo funcione como um relógio de quartzo. Acredito que Deus criou o mundo com espaço para a contingência.  Sem esse espaço não seria possível a liberdade humana. Creio que no meio do caminho entre determinismo e absoluta casualidade resida o arbítrio humano. Entendo que liberdade  é vocação: homens e mulheres acolhendo o intento do Criador para que a história e o porvir sejam construídos responsavelmente.

Reconheço que posso assustar na teimosia de importar do mundo do rock para dentro da espiritualidade o significado de “metamorfose ambulante". Nessa constante fluidez, a verdade pode ser simples, mas nunca deixará de ser perigosa. A  senda sulcada da verdade foi sulcada por muitos, entre os passos, porém, percebo a marca das sandálias do meu Senhor. E só isso basta para eu prosseguir.

Soli Deo Gloria

sexta-feira, 15 de abril de 2011

A doença chamada Homem

Leonardo Boff

Esta frase é de F. Nietzsche e quer dizer: o ser humano é um ser paradoxal, são e doente: nele vivem o santo e o assassino. Bioantropólogos, cosmólogos e outros afirmam: o ser humano é, ao mesmo tempo, sapiente e demente, anjo e demônio, dia-bólico e sim-bólico. Freud dirá que nele vigoram dois instintos básicos: um de vida que ama e enriquece a vida e outro de morte que busca a destruição e deseja matar. Importa enfatizar: nele coexistem simultaneamente as duas forças. Por isso, nossa existência não é simples mas complexa e dramática. Ora predomina a vontade de viver e então tudo irradia e cresce. Noutro momento, ganha a partida a vontade de matar e então irrompem crimes como aquele que ocorreu recentemente no Rio.

Podemos superar esta dilaceração no humano? Foi a pergunta que A. Einstein colocou numa carta de 30 de julho de 1932 a S. Freud:”Existe a possibilidade de dirigir a evolução psíquica a ponto de tornar os seres humanos mais capazes de resistir à psicose do ódio e da destruição”? Freud respondeu realisticamente:”Não existe a esperança de suprimir de modo direto a agressividade humana. O que podemos é percorrer vias indiretas, reforçando o princípio de vida (Eros) contra o princípio de morte(Thanatos). E termina com uma frase resignada:”esfaimados pensamos no moinho que tão lentamente mói que poderemos morrer de fome antes de receber a farinha”. Será este o destino da espernaça?

Por que escrevo isso tudo? É em razão do tresloucado que no dia 5 abril numa escola de um bairro do Rio de Janeiro matou à bala 12 inocentes estudantes entre 13-15 anos e deixou 12 feridos. Já se fizeram um sem número de análises, foram sugeridas inúmeras medidas como a da restrição à venda de armas, de montar esquemas de segurança policial em cada escola e outras. Tudo isso tem seu sentido. Mas não se vai ao fundo da questão. A dimensão assassina, sejamos concretos e humildes, habita em cada um de nós. Temos instintos de agredir e de matar. É da condição humana, pouco importam as interpretações que lhe dermos. A sublimação e a negação desta anti-realidade não nos ajuda. Importa assumi-la e buscar formas de mantê-la sob controle e impedir que inunde a consciência, recalque o instinto de vida e assuma as rédeas da situação. Freud bem sugeria: tudo o que faz surgir laços emotivos entre os seres humanos, tudo o que civiliza, toda a educação, toda arte e toda competição pelo melhor, trabalha contra a agressão e a morte.

O crime perpretado na escola é horripilante. Nós cristãos conhecemos a matança dos inocentes ordenada por Herodes. De medo que Jesus, recém-nascido, mais tarde iria lhe arrebatar o poder, mandou matar todas as crianças nas redondezas de Belém. E os textos sagrados trazem expressões das mais comovedoras:”Em Ramá se ouviu uma voz, muito choro e gemido: é Raquel que chora os filhos e não quer ser consolada porque os perdeu”(Mt 2,18). Algo parecido ocorreu com os familiares.

Esse fato criminoso não está isolado de nossa sociedade. Esta não tem violência. Pior. Está montada sobre estruturas permanentes de violênca. Aqui mais valem os privilégios que os direitos. Marcio Pochmann em seu Atlas Social do Brasil nos traz dados estarrecedores: 1% da população (cerca de 5 mil famílias) controlam 48% do PIB e 1% dos grandes proprietários detém 46% de todas as terras. Pode-se construir uma sociedade sem violência com estas relações injustas? Estes são aqueles que abominam falar de reforma agrária e de modificações no Código Florestal. Mais valem seus privilégios que os direitos da vida.

O fato é que em pessoas pertubadas psicologicamente, a dimensão de morte, por mil razões subjacentes, pode aflorar e dominar a personalidade. Não perde a razão. Usa-a a serviço de uma emoção distorcida. O fato mais trágico, estudado minuciosamente por Erich Fromm (Anatomia da destrutividade humana, 1975) foi o de Adolf Hittler. Desde jovem foi tomado pelo instinto de morte. No final da guerra, ao constatar a derrota, pede ao povo que destrua tudo, envene as águas, queime os solos, liquide os animais, derrube os monumentos, se mate como raça e destrua o mundo. Efetivamente ele se matou e todo os seus seguidores próximos. Era o império do princípio de morte.
Cabe a Deus julgar a subjetividade do assassino da escola de estudantes. A nós cabe condenar o que é objetivo, o crime de gravíssima perversidade e saber localizá-lo no âmbito da condição humana. E usar todas as estratégias positivas para enfrentar o Trabalho do Negativo e compeender os mecanismos que nos podem subjugar. Não conheço outra estratégia melhor do que buscar uma sociedade justa, na qual o direito, o respeito, a cooperação e a educacção e saúde para todos sejam garantidos. E o método nos foi apontado por Francisco de Assis em sua famosa oração: levar amor onde reinar o ódio, o perdão onde houver ofensa, a esperança onde grassar o desespero e a luz onde dominar as trevas. A vida cura a vida e o amor supera em nós o ódio que mata.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Você sabe com quem está falando?

Poucas frases me enervam como essa. Não tanto por sua arrogância e prepotência, mas porque ela carrega séculos de nossa formação, lembrando que uns falam, outros obedecem. E que, na visão de parte de nossa elite política e econômica, a igualdade de direitos é um discurso fofo que se dobra às necessidades individuais. Não somos uma sociedade de castas, mas cada um que fique no seu quadrado.
“Quem você pensa que é?” é menos agressiva e útil frente a algum desmando de um representante do Estado, por exemplo. Mas não faz tanto sucesso por aqui como a outra. Pois não é o questionamento do uso exagerado do poder por um policial ou um fiscal que está em jogo nesse momento de discussão, mas sim a afronta de tentar tratar um doutor como se fosse um operário qualquer.
A idéia vai se adaptando conforme o ambiente e pode assumir a forma de “Teu salário paga a comida do meu cachorro” (muito querida pelos jogadores de futebol), “Eu conheço gente importante, sabia?” (uma das campeãs entre os guardas de trânsito) e “Você vai perder seu emprego, meu irmão” (tente ser um oficial de Justiça cumprindo seu dever para ver o que você vai ouvir).
Ontem, no show do U2 em São Paulo, um sujeito tentou armar um barraco na pista. Bem vestido, tratado com leite de pêra, claramente de uma classe social superior, bradou ao cara, cuja cara ele queria “arrebentar”: “Isso que dá vir a um lugar que tem essa gentinha”, entre outras pérolas impronunciáveis, ditadas com o amor carregado das frases acima discutidas.
A maior parte das pessoas que pode comprar um ingresso de pista em um show desses, salvo exceções, não é pobre – haja vista que é um luxo extremo se comparado a necessidades básicas, apesar da gente não querem só comida… Mas também não é impossível ir – juntando com sacrifício, dá. O que obriga a convivência intra-classes, o pavor de parte dos abastados. Cidades como o Rio de Janeiro, que têm praia, estão mais acostumadas a isso, mas nem sempre de forma pacífica a bem da verdade. No Brasil, de uma maneira geral, se você quiser viver em uma bolha a vida inteira, praticamente consegue. Tenho amigos que conhecem a Europa como a palma da mão, mas que irão à Itaquera pela primeira vez na Copa de 2014. Ou que nunca estudaram com um homem ou uma mulher negra.
Essa ausência da cultura da alteridade leva ao medo e colabora com comportamentos e frases bizarras, revelando o lado mais sombrio da alma de cada um. O que é extremamente complicado porque o Brasil é composto majoritariamente dessa “gentinha”. Não se espera que os mais ricos passem a defender que os mais pobres tenham os mesmos direitos que eles (é o sistema, estúpido!), mas pelo menos que concordem em um quinhão mínimo de direitos. Um combo popular de acesso ao Estado, digamos assim. O que permitiria a convivência pacífica.
Com o crescimento da classe média, aumenta o número de pessoas com acesso a bens e serviços. Isso gera aquela “infestação” de gente parda e feia nos aeroportos (quem já ouviu declarações de dondocas e pseudo-empresários a respeito disso ficou de cabelo em pé), que estão tomando o “nosso” lugar. Como diria o genial Marcelo Adnet em uma de suas piadas escrachando nossa elite: “Agora pobre voa! Vá de ônibus! O Brasil sempre foi assim. Ora, e as tradições dessa República?”
A coisa boa é que isso é, a meu ver, irreversível. Ou seja, vai chegar o dia em que será comum dizer “Quem você pensa que é” para quem falou “Você sabe com quem está falando?”.
A coisa ruim é que mesmo com muito trabalho de educação para a cidadania, concomitante a mudanças estruturais para garantir que a República realmente sirva ao interesse comum, ainda assim levará um rosário de gerações até que frases forjadas pelo preconceito e a soberba tornem-se peça de museu.

Annie Lennox SING Campaign Universal Child Idol Gives Back


quarta-feira, 13 de abril de 2011

A Cristandade, ou a Europa

Paulo Brabo - A Bacia das Almas

Estou escrevendo um livro sobre a Reforma, ou melhor, sobre a gênese (e o apocalipse) das ideias da Reforma, e no caminho (através do Depois da cristandade de Gianni Vattimo, a que cheguei através da mão do Alessandro Rocha) deparei-me com esta notável reflexão de Novalis, repleta de apressados lirismos e rasgos verdadeiramente proféticos. Já depositei algumas seleções aqui na Bacia, mas aproveito para deitar a coisa toda onde poderá talvez desconcertar mais alguns. A necessária advertência é que está escrito numa retórica de outro tempo, e o leitor deve tentar não se deixar levar pela aparência reacionária da argumentação dos três primeiros parágrafos. Qualquer texto que contenha a frase “a verdadeira anarquia é o elemento criativo da religião” merece minha completa atenção.

A cristandade, ou a Europa (1799)
Eram tempos belos e magníficos, aqueles em que a Europa era uma terra cristã, quando uma única cristandade habitava este civilizado continente, quando um único interesse comum unia as mais distantes províncias deste vasto império espiritual. Sem grandes possessões materiais, um único soberano governava e unificava as colossais forças espirituais. Imediatamente abaixo dele postava-se uma enorme corporação, aberta a todos, executando cada desejo seu e lutando zelosamente para consolidar o seu benevolente poder. Cada membro desta sociedade era honrado em todo lugar. Se o povo comum buscava no seu clérigo conforto ou segurança, proteção ou conselho, de bom grado provendo em retribuição por suas diversas necessidades, ganhava também a proteção, o respeito e a atenção de seus superiores. Todos viam esses eleitos, homens armados de poderes miraculosos, como filhos do céu, cuja mera presença e afeição dispensava toda sorte de bençãos. Uma fé como a das crianças unia o povo ao ensino deles. Quão alegremente todos completavam seus labores terrenos, sabendo que esses homens santos haviam-lhes salvaguardado a vida futura, perdoado cada pecado, esclarecido e apagado cada ponto negro desta vida. Eles eram os experimentados pilotos nos vastos mares inexplorados, sob cuja proteção se podia zombar de todas as tempestades, e nos quais se podia confiar para se alcançar e desembarcar em segurança nas praias do mundo genuinamente paternal. Os apetites mais vorazes e mais selvagens viam-se obrigados à ceder com honra e obediência às suas palavras. Deles emanava paz.
Essa poderosa sociedade amante da paz ardentemente buscava fazer com que todos os homens compartilhassem da beleza da sua fé, pelo que enviavam discípulos a todas as partes do globo para pregar o evangelho e tornar o reino do céu o único reino da terra. Com justiça, o sábio cabeça da igreja resistia aos insolentes avanços dos poderes humanos e prematuras descobertas no campo do conhecimento, que ocorriam em prejuízo do senso do divino. Deste modo ele impediu que ousados pensadores sustentassem publicamente que a terra é um planeta insignificante, pois sabia muito bem que se as pessoas perdessem o respeito por sua residência e lar terrenos perderiam também o respeito por sua raça e lar celestiais; que prefeririam o conhecimento finito à infinita fé, e se habituariam a desprezar tudo que é grande e miraculoso, passando a considerá-lo o efeito sem vida de leis naturais.
Todos os homens sábios e respeitados da Europa se aglomeravam na corte dele. Ali fluíam todos os tesouros; a Jerusalém destruída foi vingada e Roma tornou-se ela mesma Jerusalém, a sacra residência do governo divino sobre a terra. Príncipes submetiam suas disputas ao pai da cristandade e de bom grado depositavam suas coroas e seu esplendor aos pés dele; de fato, viam como seu privilégio a oportunidade de serem membros dessa sagrada corporação, e de encerrarem o entardecer de suas vidas em divina meditação dentro dos solitários muros dos claustros. As poderosas aspirações de todos os poderes humanos, o harmonioso desenvolvimento de todas as habilidades, as imensuráveis alturas alcançadas por todos os indivíduos em todos os campos do conhecimento e das artes, bem como o próspero tráfico de bens espirituais e materiais dentro de toda a Europa e até às Índias distantes – tudo isso demonstrava quão benéfico, quão adequado à natureza interior do homem, eram este governo e esta organização.
Tais eram as principais características da beleza daqueles tempos genuinamente católicos e genuinamente cristãos. Era um primeiro amor, que morreu sob a pressão da vida comercial, cuja devoção foi reprimida por preocupações egoístas, e cujo elo foi revelado mais tarde ser fraude e engano, quando julgado a partir da experiência posterior. Deste modo ele foi destruído por um grande número de europeus. Acompanhado por destrutivas guerras, esse grande cisma interior foi um notável sinal do quão prejudicial a cultura – ou pelo menos quão temporariamente prejudicial a cultura de um certo nível – pode ser para o senso do espiritual. Esse sentimento imortal não pode jamais ser destruído, porém pode ser turvado, paralisado ou reprimido por outros sentimentos.
Uma prolongada associação de homens diminui suas inclinações para a sua fé e para sua raça, e habitua-os a aplicar seus pensamentos e esforços à tarefa de adquirir conforto material. As necessidades, bem como as artes de satisfazê-las, tornam-se mais complexas; o ambicioso requer tanto tempo para conhecer e ganhar habilidade nessas artes que não tem mais tempo para a silenciosa reunião de ideias e a atenta consideração do mundo interior. Se um conflito surge, seu interesse presente lhe parece representar mais; desse modo fenecem as belas flores de sua juventude, da fé e do amor, dando lugar aos frutos amargos do conhecimento e da possessão. Aqui devemos lidar com tempos e períodos, e não é por acaso a oscilação, a alternância entre tendências opostas, essencial a eles? Não é verdade que há uma duração limitada que lhes é própria, um crescimento e uma decadência que são parte da sua natureza? E não é por acaso uma ressurreição, um rejuvenescimento numa nova forma vital, o que deve esperar-se com certeza deles? Uma evolução progressiva em constante expansão é a própria essência da história.
Aquilo que não atinge a perfeição agora irá fazê-lo numa tentativa futura, ou numa tardia. Nada no alcance da história é transitório; de inumeráveis transformações ela sempre procede novamente para formas cada vez mais ricas. O cristianismo apareceu uma vez em pleno poder e esplendor; suas ruínas, bem como a mera letra de sua lei, governaram com crescentes impotência e infâmia até a inspiração de um novo mundo. Uma inércia infinita jazia pesadamente sobre a complacente corporação do clero. Esses estagnavam no sentimento de sua autoridade e de conforto material, enquanto o laicado subtraía deles a tocha da experiência e do aprendizado, superando-os a passos largos no caminho da educação. Esquecendo sua verdadeira missão de serem os primeiros entre os homens de espírito, conhecimento e educação, deixaram que seus desejos mais baixos lhes subissem à cabeça. A banalidade e baixeza da sua atitude tornou-se ainda mais ofensiva devido à particularidade de seu traje e de seu chamado. Desta forma o respeito e a confiança, que são as bases deste e de qualquer império, desmoronaram gradualmente, destruindo essa corporação e solapando silenciosamente a verdadeira autoridade de Roma muito antes da poderosa insurreição. Apenas medidas prudentes, e portanto expedientes, mantiveram unido o cadáver da velha constituição e preservaram-no de uma dissolução demasiadamente rápida. Entre essas medidas estava, por exemplo, a abolição do direito de casamento aos padres. Tal medida, tivesse sido aplicada na profissão similar dos soldados, teria dado a ela uma formidável coerência e prolongado sua existência. Porém nada mais natural que um ardente agitador se levantasse para pregar rebelião aberta contra a letra despótica da constituição anterior, e com maior sucesso por ser ele mesmo membro daquela corporação.
Os insurgentes chamaram a si mesmos de protestantes, pois protestavam solenemente contra qualquer pretensão de governo da consciência por uma força aparentemente injusta e tirânica. Por um certo período eles exigiram o direito, de que anteriormente haviam tacitamente aberto mão, de investigar, determinar e escolher a própria religião. Estabeleceram também uma série de princípios corretos, introduziram uma série de coisas louváveis e aboliram uma série de estatutos corruptos. Porém esqueceram as necessárias consequências de suas ações: separaram o inseparável, dividiram a igreja indivisível e divorciaram-se impiamente da união cristã universal, através da qual e apenas na qual um renascimento genuíno e duradouro seria possível. Uma condição de anarquia religiosa não deve ser mais do que transicional, pois permanece urgente e válida a necessidade básica de que um número de pessoas devote-se a essa vocação superior, e façam-se independentes do poder secular com respeito a essas questões.
O estabelecimento de consistórios e a preservação de uma espécia de clero não satisfizeram essa necessidade e não foram substituto suficiente. Infelizmente os príncipes interviram nessa ruptura, e muitos fizeram uso da disputa para consolidar e expandir sua receita e seu poder soberano. Ficaram felizes em ver-se livres daquela influência superior e tomaram os novos consistórios debaixo de sua direção e proteção paterna. Mostraram-se zelosamente preocupados em impedir a reunião completa das igrejas protestantes. Tendo a religião sido sacrilegamente enclausurada nos limites do estado, deitava-se a fundação para o gradual solapar do interesse religioso cosmopolitano. A religião perdeu dessa forma sua enorme influência como pacificadora política, o papel que lhe cabia como princípio unificador e característico do cristianismo. A paz religiosa foi concluída a partir de princípios completamente equivocados e sacrílegos, e pela continuação do assim chamado protestantismo declarava-se algo completamente contraditório – a saber, um governo permanentemente revolucionário.
O protestantismo, no entanto, não está baseado de modo algum nesse conceito puro. Em geral Lutero tratou o cristianismo de maneira arbitrária, entendeu erroneamente o seu espírito e introduziu uma nova lei e uma nova religião, a saber, a autoridade universal da Bíblia. Deste modo uma ciência estranha e terrena – a filologia – passou a interferir com as questões religiosas, e sua corrosiva influência tem sido inequívoca desde então. Do negro sentimento da falha de Lutero surgiu que grande parte dos protestantes elevaram-no ao posto de evangelista, tendo canonizado a sua tradução.
Essa decisão mostrou-se fatal para o sentimento religioso, visto que nada destrói mais a sua sensibilidade do que a letra morta. Em outro tempo a letra não poderia ter jamais se mostrado tão danosa, tendo em vista a amplitude, a maleabilidade e a riqueza da fé católica, o caráter esotérico da Bíblia e o sacro poder dos concílios e do papa. Porém agora que esses antídotos haviam sido destruídos e a absoluta popularidade da Bíblia afirmada, o limitado conteúdo da Bíblia e seu sistema rudimentar e abstrato de religião tornaram-se mais claramente opressivos, tornando infinitamente mais difícil para o Espírito Santo exercer sua ação de avivamento, penetração e revelação.
Por conseguinte a história do protestantismo não tem mais a nos mostrar esplêndidas revelações da esfera celestial. Apenas seu início ardeu com um fogo passageiro do céu; pouco depois um fenecer do senso do sagrado é aparente. O mundano havia saído por cima, e o sentimento pela arte sofreu em simpatia pela religião. Com a Reforma o cristianismo encontrava seu fim. A partir dali deixava de existir. Católicos e protestantes postavam-se mais distantes uns dos outros, em seu conflito sectário, do que de muçulmanos e pagãos. Os estados católicos remanescentes continuaram a vegetar, não sem sentir vagamente a influência corruptora de seus vizinhos estados protestantes. A nova política surgiu durante esse tempo: poderosos estados individuais buscando tomar posse da sé universal agora vaga, agora transformada num trono…
A Reforma foi um sinal dos tempos. Mostrou-se significativa para toda a Europa, mesmo tendo irrompido publicamente apenas na Alemanha livre. As melhores mentes de todas as nações haviam maturado em segredo, e na ilusória auto-confiança de sua missão rebelaram-se de modo proporcionalmente destemido contra as antigas restrições. Na velha ordem o intelectual havia sido instintivamente inimigo do clero. O terreno intelectual e o clerical, uma vez divididos, tinham que lutar uma guerra de extermínio, pois lutavam por uma única posição. Essa divisão tornou-se cada vez mais proeminente, e os intelectuais ganharam mais terreno à medida em que a Europa aproximava-se da era do aprendizado triunfante, à medida em que a fé e o conhecimento viam-se forçadas a uma oposição mais decisiva. Na fé via-se a fonte da estagnação universal, e através de um conhecimento mais penetrante esperava-se destruí-la. Em todo lugar o sentimento do sagrado sofreu várias perseguições por sua natureza passada, sua personalidade temporal.
O resultado da maneira moderna de se pensar foi chamada de “filosofia”, definida como qualquer coisa que se opusesse à velha ordem, especialmente portanto para referir-se a qualquer capricho contra a religião. O que era originalmente um ódio pessoal contra a fé católica tornou-se gradualmente ódio contra a Bíblia, a fé cristã e finalmente contra toda a religião. Não apenas isso: o ódio contra a religião estendeu-se de modo muito natural e consistente a tudo que fosse objeto de entusiasmo: aviltantes fantasia e sentimento, a moralidade e o amor pela arte, o futuro e o passado. Essa nova filosofia colocava o homem por necessidade no ápice da série de seres naturais, e transformava a infinita música criativa do cosmos no estrépito uniforme de um gigantesco moinho; um moinho ele mesmo movido e levado por uma corrente de acaso sem arquiteto ou moleiro, um genuíno moto perpétuo: um moinho que mói a si mesmo.
Um único entusiasmo foi generosamente deixado para a pobre raça humana, e tornado indispensável para todos os interessados como credencial de uma educação superior: o entusiasmo por essa filosofia magnífica e esplêndida, em especial pelos seus sacerdotes e mentores. A França foi particularmente afortunada em ser o berço e o lar desta nova fé, montada às pressas a partir de pedaços de mero conhecimento. Por mais infame que fosse a poesia para essa nova igreja, havia ainda nela alguns poucos poetas, os quais apenas por efeito utilizavam ainda os velhos ornamentos e luzes; ao fazê-lo, no entanto, corriam o risco de incendiar o sistema do novo mundo com um fogo antigo. Seus membros mais sagazes sabiam como jogar água fria sobre sua inspirada audiência. Estavam constantemente preocupados em eliminar a poesia da natureza, da terra, da alma humana e das ciências. Todo traço do sagrado devia ser destruído, toda lembrança de feitos e pessoas nobres arruinado pela sátira, e o mundo inteiro despido de qualquer ornamento pitoresco. Seu tema favorito, devido a sua obediência e impudência matemática, era a luz. Agradava-lhes que ela refratasse ao invés de brincar com as cores, pelo que chamaram seu grande empreendimento de “Iluminismo”. A Alemanha foi especialmente meticulosa com respeito a essa questão: a educação foi reformada e a velha religião recebeu um significado novo, racional e pragmático, purificado de tudo que fosse miraculoso e misterioso; toda a erudição foi convocada a deixar de buscar qualquer refúgio na história, que lutaram para enobrecer tornando-a um retrato doméstico e civil de família e moralidade. Deus foi transformado num ocioso espectador da grande drama em movimento encenado pelos intelectuais, que os poetas e atores deveriam entreter e admirar no final.
E de fato, a gente comum foi iluminada com o prazer e educada a um entusiasmo pela cultura. Nasceu então na Europa uma nova corporação, a dos filantropos e popularizadores da iluminação. É uma pena que a natureza tenha se mostrado tão maravilhosa e incompreensível, tão poética e infinita, esquivando-se de todas as tentativas de se modernizá-la. Se em algum lugar insinuava-se ainda a velha superstição de um mundo sobrenatural levantava-se o alarme de todos os lados, e onde fosse possível essa perigosa centelha era apagada pela filosofia e pelo bom senso. Não obstante, a palavra preferida dos educados era “tolerância”, especialmente na França, onde era sinônimo de filosofia.
A história da descrença moderna é extremamente notável, e é também a chave para todos os monstruosos fenômenos da era contemporânea. Foi apenas neste século, e em particular na segunda metade dele, que teve início, alcançando em pouco tempo imensas dimensões e variedade. Uma segunda reforma, mais adequada e mais abrangente, era inevitável. Que a hora da ressurreição chegou, e que precisamente os eventos que pareciam impedir o seu ressurgimento e garantir o seu fim tornaram-se os sinais propícios de sua regeneração – isso não pode ser negado pela mente histórica.
A verdadeira anarquia é o elemento criativo da religião. Da destruição de tudo que é positivo ela ergue sua gloriosa cabeça de criadora de um novo mundo. Se nada o detém o homem sobe ao céu por suas próprias forças. As faculdades superiores, germe original da transformação da terra, libertam-se da mescla uniforme da mediocridade e da completa dissolução de todos os talentos e poderes humanos. O espírito de deus paira sobre as águas, e uma ilha celestial torna-se visível sobre as ondas que recuam: o local de residência de um novo homem, o nascedouro de vida eterna.
De modo calmo e imparcial o observador genuíno considera os novos tempos revolucionários. E não é que a revolução para ele assemelha-se a Sísifo? Ele agora chegou ao topo, só para ver sua carga tremenda rolando novamente morro abaixo. Ela jamais permanecerá no cume a não ser que uma atração em direção ao céu a mantenha equilibrada ali. Todos os pilares de vocês são fracos demais se o estado retém sua tendência em direção à terra. Porém liguem-no através de um anseio superior às alturas do céu e deem a ele uma conexão com o cosmos, e obterão desse modo uma fonte inesgotável, e todos os seus esforços serão ricamente recompensados. Encaminho você à história. Vasculhe seu instrutivo continuum em busca de ocasiões similares e aprenda a usar a varinha mágica da analogia.
A França defende um protestantismo secular. Deveriam agora jesuítas seculares erguerem-se de modo a renovar a história dos últimos séculos? Deveria a Revolução permanecer francesa do mesmo modo que a Reforma foi luterana? Deveria o protestantismo ser restabelecido – de modo contrário à natureza – como governo revolucionário? Deveria a letra morta ser substituída por outra letra morta? O que vocês buscam é a semente da corrupção também na velha constituição, o velho espírito? E acreditam conhecer uma constituição superior, um melhor espírito? Ah, que o espírito dos espíritos os encha e os conduza para longe de sua tola tentativa de moldar e dirigir a história da humanidade. A história não é por acaso independente, autônoma, virtualmente infinitamente adorável e profética? Estudá-la, segui-la, aprender com ela, acompanhar o ritmo dela, fielmente seguir suas promessas e sugestões – isso a ninguém ocorreu.
Na França muito tem sido feito em favor da religião, em não apenas uma de suas incontáveis formas, ao se privá-la de seus direitos civis e ao conceder-se a ela o mero direito de asilo. Em sua qualidade de órfão estrangeiro e insignificante ela deverá em primeiro lugar reconquistar os corações e ser amada em todo lugar antes de ser publicamente adorada e combinada a coisas mundanas de modo a conceder conselho amigável ao coração e ao espírito. A tentativa dessa grande máscara de ferro, que respondia pelo nome de Robespierre, de tornar a religião o ponto central e o coração da república permanece historicamente notável. Igualmente admirável é a frieza com que a teofilantropia, o misticismo do novo Iluminismo, tem sido recebido, isso para não mencionar as conquistas dos jesuítas e a relação mais próxima entre o oriente e a nova política.
Com relação aos demais países europeus, com exceção da Alemanha, pode-se profetizar que a paz trará uma vida religiosa mais elevada e consumirá em breve todos os demais interesses mundanos. Na Alemanha, no entanto, pode-se apontar com completa certeza os traços de um novo mundo. A seu ritmo tranquilo mas certo a Alemanha avança adiante dos demais países europeus. Enquanto os outros países estão preocupados com a guerra, com a especulação e o partidarismo, a Alemanha diligentemente se educa de modo a ser testemunha de uma era mais elevada da cultura; e esse progresso deverá dar a ela grande superioridade sobre os demais países com o passar do tempo. Nas ciências e nas artes percebe-se um poderoso fermento. Uma quantidade infinita de espírito se desenvolve. Novos e intocados veios estão sendo minerados. Nunca esteve a ciência em mãos melhores, e nunca despertaram expectativas maiores. Os mais variados aspectos das coisas estão sendo traçados; nada é deixado intocado, sem ser julgado ou examinado. Todas as pedras são reviradas. Os escritores tornam-se mais originais e mais poderosos; cada monumento histórico, cada arte e cada ciência encontra novos amigos e são abraçados e tornado mais frutíferos. Uma diversidade sem paralelo, uma maravilhosa profundidade, um acabamento reluzente, um conhecimento amplo e uma fantasia rica e poderosa se encontram em todo lugar e são com frequência arrojadamente mescladas. Um poderosa intuição de disposição criativa, de ausência de limites, de infinita diversidade, de sacra originalidade e da onipotência da humanidade interior parece agitar-se em todo lugar. Desperta do sonho matinal de uma infância desprotegida, uma parte da raça humana exercita seus poderes sobre as víboras que circundam seu berço e buscam privá-la do use de seus membros. Esses são ainda indícios, desconexos e rudimentares, mas ao olhar histórico traem uma individualidade universal, uma nova história, uma nova humanidade, o mais doce abraço entre uma igreja jovem e surpresa e um deus amoroso, para não mencionar o acolhimento interno de um novo messias em todas as suas mil formas. Quem é que não sente esperança em meio a uma doce vergonha? O recém-nascido será a imagem de seu pai, uma nova era de ouro com infinitos olhos escuros, uma ocasião profética, miraculosa, curativa e consoladora que gera vida eterna. Será uma grande era de reconciliação, de um Salvador que, como verdadeiro gênio em sua própria casa, em meio aos homens, será apenas crido e não visto. Ele será vísivel àquele que crê de incontáveis maneiras: consumido como pão e vinho, abraçado como a pessoa amada, respirado como o ar, ouvido como palavra e canção, e acolhido como a morte no coração do corpo que se apaga, com volúpia celeste e as dores mais agudas do amor.
Agora estamos postados em posição elevada o bastante para sorrir afavelmente diante daqueles tempos antigos e reconhecer, naquelas estranhas tolices, notáveis cristalizações de matéria histórica. Com gratidão deveríamos apertar as mãos daqueles intelectuais e filósofos; pois essa ilusão tinha de ser esgotada por amor à posteridade, e a visão científica das coisas tinha de ser legitimada. Mais encantadora e pitoresca, a poesia posta-se como uma ornamentada Índia em contraste com os arcos frios, aguçados e mortos da razão acadêmica. Então, para que a Índia pudesse ser cálida e magnífica no centro do nosso planeta, um mar congelado e frio, penhascos desolados e névoa, em vez de um céu estrelado e uma longa noite, tinham de tornar ambos os pólos locais inóspitos. O significado mais profundo da mecânica perturbava esses eremitas do deserto do entendimento. A empolgação de sua primeira descoberta assoberbou-os, e a velha ordem vingou-se deles. Com maravilhosa autonegação sacrificaram as coisas mais belas e sagradas do mundo à sua autoconsciência. Foram os primeiros a reconhecer e proclamar novamente a santidade da natureza, a infinitude da arte, a necessidade do conhecimento, o respeito pelo secular e a onipresença do verdadeiramente histórico. Colocaram um fim no elevado, mais predominante e terrível reino dos fantasmas nos quais eles mesmos criam.
Apenas através de um conhecimento mais exato da religião seremos capazes de julgar os terríveis produtos de um sono religioso, aqueles sonhos e delírios do órgão sacro. Só desse modo será possível avaliar-se adequadamente a importância de tal dádiva. Onde não há deuses governam fantasmas. O período da gênese dos fantasmas europeus, que também acabam explicando por completo a sua forma, é o período de transição entre a mitologia grega e o cristianismo. Então venham, vocês filantropos e enciclopedistas, venham ao pavilhão da paz e recebam o beijo da fraternidade! Dispam seus véus cinzas e contemplem com amor renovado a miraculosa magnificência da natureza, da história e da humanidade. Quero conduzi-los a um irmão que lhes falará de modo a que seus corações se abram novamente, de modo a que a intuição dormente de vocês, trajando um novo corpo, volte a abraçar e reconhecer aquilo que você sentem – aquilo que o seu pesado intelecto terreno não é capaz de apreender.
Este irmão é o pulso de uma nova era. Quem já o sentiu não duvida da sua chegada, e com um um doce orgulho em sua geração dá um passo para longe da massa para unir-se ao novo grupo de discípulos. Ele fez um novo véu para os santos, um véu que revela a figura celeste deles ao mesmo tempo em que os esconde ainda mais castamente do que antes. O véu é para o virgem o que o espírito é para o corpo: um órgão indispensável, cujas dobras são as letras de sua doce anunciação. O jogo infinito dessas dobras é uma música secreta, pois a linguagem é rígida e insolente para o virgem, cujos lábios só se abrem para a canção. Para mim não se trata de outra coisa que não a solene convocação para uma nova assembleia, o poderoso bater de asas de um arauto angélico que passa. São as primeiras dores do parto; que todos preparem-se para o nascimento.
A Física atingiu o seu ápice, e podemos agora mais facilmente vistoriar a corporação científica. Em tempos recentes, quanto mais sabemos a respeito das ciências mais aparente tem se tornado a pobreza delas. A natureza começou a parecer árida e estéril e, uma vez habituados ao esplendor de nossas descobertas, vimos mais claramente que tratava-se meramente de luz emprestada, e que com os métodos e ferramentas conhecidos não construiríamos ou encontraríamos o essencial, ou aquilo que buscávamos.
Na ordem política, o velho e o novo lutam ferozmente. De um lado há a veneração pelo velho mundo, a lealdade à constituição histórica, o júbilo na obediência, o amor aos monumentos ancestrais e à gloriosa e antiga família real. De outro, há o arrebatador sentimento de liberdade, as expectativas ilimitadas por uma esfera de ação mais potente, o prazer no que é novo e jovem, o contato informal entre todos os concidadãos, o orgulho na universalidade humana, a alegria nos direitos individuais e na propriedade da comunidade como um todo, um acentuado senso cívico. E nenhum lado deveria esperar destruir o outro. Todas as vitórias de conquista nada significam, pois o capitólio interior do reino jaz além de muros terrenos e não pode ser invadido.
Quem sabe dizer se já houve guerra que baste, se a guerra chegará a findar, a não ser que alguém segure o ramo de oliveira que só o poder espiritual pode oferecer. O sangue continuará a correr na Europa até que as nações reconheçam sua horrenda loucura. A guerra continuará a levá-las em círculos até que, tocadas e acalmadas pela música sacra, postem-se diante de seus altares abandonados em variegada multidão.
Não é verdade que os governos controlam tudo dos homens, exceto seu coração – seu órgão sagrado? Não tornam-se por acaso amigos, como pessoas ao redor do caixão funerário do seu amado? Não esquecem toda hostilidade quando a piedade divina lhes fala, e quando um único infortúnio, um único lamento, um único sentimento enche-lhes de lágrimas os olhos? Não são tomados de arrasto pelo sacrifício e cedem com ímpeto todo-poderoso, e não anseiam tornar-se amigos e aliados?
Onde está a velha e cara crença no governo de Deus sobre a terra, que pode apenas ela trazer redenção? Onde está aquela sagrada confiança mútua entre os homens, aquela doce devoção nas efusões de uma mente inspirada, aquele todo-abrangente espírito da cristandade?
O cristianismo tem três formas. A primeira é o elemento criativo da religião, o júbilo em toda religião. Outra é a mediação em geral, a crença na capacidade de tudo que é terreno de tornar-se pão e vinho da vida eterna. Uma terceira é a crença no Cristo, em sua mãe, e nos santos. Escolha a que quiser. Escolha todas as três. É indiferente: você será então cristão, membro de uma única comunidade eterna, inefável e feliz.
A velha fé católica, a última destas manifestações, era a encarnação do cristianismo aplicado. Sua onipresença na vida, seu amor pela arte, sua profunda humanidade, a santidade de seus matrimônios, seu senso filantrópico de comunidade, seu júbilo na pobreza, obediência e lealdade – tudo isso faz dela uma religião inequivocamente genuína, e contém as características básicas de sua constituição. Ela está sendo purificada pela correnteza do tempo, e em indivisível união com as duas outras manifestações do cristianismo irá abençoar a terra.
Sua manifestação incidental está praticamente destruída. O papado jaz na sepultura, e por uma segunda vez Roma tornou-se ruína. Não deveria o protestantismo finalmente deixar de existir, abrindo caminho para uma igreja mais duradoura? As demais partes do mundo aguardam a reconciliação e a ressurreição da Europa a fim de juntar-se a ela de modo que se tornem cidadãos conjuntos do reino do céu. Não deveria voltar a haver na Europa mentes genuinamente sacras? Não deveriam todas as mentes religiosas afins estarem cheias de anseio por verem o céu na terra? Não deveriam reunir-se entusiasticamente para cantar um sacro refrão?
O cristianismo deve mais uma vez tornar-se vivo e ativo, e mais uma vez formar uma igreja visível que não leve em conta fronteiras nacionais. Mais uma vez deve receber em seu seio todas as almas famintas e tornar-se mediadora entre o velho e o novo mundo.
O cristianismo deve mais uma vez derramar sua cornucópia de bençãos sobre as nações. Ele se erguerá novamente a partir de um venerável concílio europeu, e a questão do avivamento religioso será perseguida em conformidade com um abrangente plano divino. Ninguém voltará jamais a protestar contra coerção cristã ou mundana, pois a essência da igreja será genuína liberdade, e todas as reformas necessárias sob sua direção serão conduzida na forma de de processos de estado pacíficos e formais.
Quando e quão logo? Isso não se deve perguntar. Tenha paciência. Virá e deve vir, a era sagrada de paz eterna, na qual a nova Jerusalém será o capitólio. Até então permaneçamos calmos e destemidos diante dos perigos desta era. Companheiros da minha fé, proclamem em palavras e atos a divina boa nova! Permaneçam fiéis à verdadeira e eterna fé até a morte.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

É nos pobres que Deus vive

"Porque independentemente do que possamos pensar sobre Deus, quem Ele é, ou se Ele existe, a maioria concordará que Deus tem um lugar especial para os pobres. É nos pobres que Deus vive. Deus está nos bairros degradados, nos pedaços de papelão onde os pobres dormem. Deus está onde as oportunidades se perdem e vidas são destruídas. Deus está com a mãe que infecctou o filho com um virus e que roubará a vida dos dois. Deus está debaixo dos escombros, nos gritos que ouvimos em tempo de guerra.
Deus, meus amigos, está com os pobres e Deus está conosco, se nós estivermos com eles."
Bono Vox

Tarefas do Cristianismo de Libertação (II): modernidade e a idolatria

Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital


No artigo anterior, eu apresentei a ideia de que o atual Império global domina por sedução, fascinação, ao mesmo tempo em que impõe medo e a idéia de que não há alternativa ao sistema de mercado capitalista. Características de um sistema sagrado, que por ser sagrado exige sacrifício de vidas humanas. (Sagrado exige sacrifício, enquanto Deus da Bíblia quer misericórdia em lugar de sacrifico. Os profetas chamaram o deus/sagrado que exige sacrifício de ídolo.) Diante deste tipo de capitalismo, que Marx chamou de "religião da vida cotidiana” fundada na fetichização da mercadoria e do capital, a crítica da religião se tornou novamente a condição preliminar de toda crítica.

Sem dúvida, uma das críticas mais potentes contra esta "idolatria do mercado” foi feita por alguns teólogos da libertação, como Hugo Assmann, Franz Hinkelammert, Jon Sobrino e Júlio de Santa Ana. Infelizmente a maioria destes livros está fora do catálogo das editoras e é pouco discutida ou estudada pelas novas gerações. Muitas das discussões no campo da teologia não consideram o atual sistema econômico-social como um tema teológico (no máximo como um tema da ética social ou da doutrina social), e, por outro lado, muitos dos cientistas sociais críticos não percebem o caráter sacral e religioso do atual sistema global. Entre cientistas sociais mais conhecidos no Brasil, Michael Löwy é um dos poucos que aprofundaram essa questão.

Esta separação ou distinção entre a teologia/ciências da religião e as ciências sociais como dois campos de conhecimento autônomos e independentes dificultam a compreensão mais acurada e crítica do caráter religioso do capitalismo, que Marx, M. Weber e W. Benjamin, entre outros mestres do passado, já haviam apontado. Por isso, eu penso que um dos passos fundamentais para fazermos uma crítica teórica da idolatria do mercado é repensar a própria concepção da razão e do fazer ciência gestada no mundo moderno.

Para entender melhor este desafio, é preciso primeiro criticar ou repensar a própria concepção do que é a modernidade. Normalmente a modernidade é compreendida e também criticada pela pretensão de construir um mundo baseado na razão e pela proposta de emancipação da humanidade ou de revolução libertária. A crítica pós-moderna se concentra na crítica da razão moderna e na pretensão de construir um "novo” mundo a partir da noção de revolução.

O problema é que nós assumimos a noção de modernidade que o próprio mundo Ocidental e moderno, através dos seus intelectuais, pintou sobe si, isto é, assumimos a ideologia do mundo moderno como a "verdade” sobre a modernidade. Se olharmos bem, veremos que a modernidade foi construída sobre a exploração colonial do continente que eles chamaram de América. Para acumular ouro e prata, escravizaram primeiro os nativos do Continente e depois os negros da África. Não satisfeitos com milhões de mortes causadas em nome da acumulação "racional” da riqueza/capital, colonizaram também os países da África e da Ásia. Em resumo, no outro lado da razão moderna está o irracionalismo de genocídios em nome da acumulação do capital-ouro; o lado luminoso da ilustração esconde o lado obscuro da modernidade, o seu lado irracional, sacrificial e opressivo. Muito antes do holocausto –que no fundo é resultado extremado da razão moderna–, Europa moderna já tinha causado genocídios na África, América e Ásia. Genocídios esses que pouco escandalizaram a Europa por serem de povos considerados inferiores pela razão moderna.

A base material da ilustração-razão moderna foi construída com a conquista, escravidão e exploração. Como Dussel já mostrou, a afirmação que iniciaria a modernidade, "Penso, logo sou!”, foi procedida e tornada possível por "Conquisto, logo sou!”

Eu penso que a separação radical entre assuntos teológicos e sociais, entre a dimensão religiosa e a racional da sociedade, tem a ver com esta tentativa de esconder o lado irracional, sacrificial, idolátrico da modernidade do seu lado aparentemente racional e ilustrado. 

O mundo moderno não é anti-religioso. Ele é contra religiões que se opõe à racionalidade da acumulação do capital e utiliza-se das religiões ou grupos religiosos que servem ao seu objetivo. Pior ainda, cria sua própria religião, que é expressão social do seu espírito idolátrico. 

Sem uma compreensão crítica da modernidade e, portanto, também dos equívocos ou insuficiência das críticas pós-modernas e da própria noção de pós-modernidade, não podemos repensar a relação entre teologias críticas e teorias sociais críticas e fazer uma crítica teórica séria da idolatria do mercado.

[Co-autor, junto com Hugo Assmann, do "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”, Paulus].
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