Os quatro eram teólogos e estavam mortos, mas suas indignações não descansavam.
– Numa crise dessa magnitude – disse o primeiro – seria impreterível que Deus não se esquivasse, como tem feito com demasiada frequência, de um pronunciamento oficial. O ideal seria que ele lesse pessoalmente, em cadeia planetária, uma nota redigida por nós.
– Se ele continua se recusando a liberar os recursos celestiais para as operações de salvamento e reconstrução – disse o segundo – o absoluto mínimo que ele deveria fazer seria manifestar de forma inequívoca sua solidariedade pelas vítimas e familiares. Repito: o absoluto mínimo.
– O que também não pode ser contornado indefinidamente – exigiu um o terceiro, abrindo seu laptop e apontando para uma pasta impossivelmente repleta do seu Google Reader – é o caso do comportamento temerário de Pat Robertson e de seus asseclas. Esses andam dizendo, em nome de Deus mas evidentemente sem o seu endosso, que a calamidade é intervenção divina, castigo aplicado devido à impenitente simpatia dos atingidos pela ortodoxia errada. Seria conveniente que no seu pronunciamento Deus deixasse bem claro o seu distanciamento dessa posição.
– Pelo contrário – asseverou um quarto, como se já viesse aguardando esse momento. – Em seu pronunciamento Deus deverá endossar cada palavra de seu servo Pat Robertson, de modo a expor as mentiras dos liberais e confundi-los publicamente. Tendo em vista a posição oficial da divindade com relação à sua própria soberania, inaceitável é o que andam afirmando os teólogos liberais: que Deus nada tem a ver com o desastre em questão e que, como se não bastasse, nada poderia ter feito para evitá-lo. Desnecessário apontar que é essa a posição sem qualquer precedente escriturístico, sendo além de tudo heresia defendida há séculos por ateus desprovidos de qualquer mérito.
E, apesar das suas diferenças doutrinárias, nos dias que seguiram os teólogos conseguiram redigir uma nota contendo sete pontos essenciais sobre os quais os quatro concordavam, a respeito da origem do mal e da posição divina diante das grandes calamidades. Deixaram o documento na caixa de sugestões do céu, que não tem fundo, juntamente com uma carta de apresentação e um abaixo-assinado com poucas assinaturas, mas de prestígio.
A resposta demorou meses a vir, e chegou endossada por um número impossivelmente abundante de selos, rubricas e carimbos, cada um atestando a passagem do processo por uma repartição celeste.
“O último pronunciamento oficial da divindade foi abraçar uma plena humanidade e morrer, e no intervalo entre uma coisa outra investir seus esforços em mitigar os sofrimentos dos homens e reparar as injustiças a que se submetem mutuamente, tendo deixado instrução para que seus seguidores vivessem e morressem dessa mesma forma. Não existe qualquer previsão para uma revisão deste pronunciamento, e a divindade não encontra-se disponível para esclarecimentos adicionais. A primeira vez em que foi visto publicamente Deus estava com as mãos sujas de barro, e na sua última aparição pública ostentava as cicatrizes de sua paixão pelos seres humanos. A administração do céu não reconhece outro lugar onde Deus possa ser encontrado, ou outra maneira pela qual possa ser reconhecido”.
– Lamentáveis essas respostas automáticas – disseram os teólogos uns aos outros, e passaram o resto da tarde lamentando a burocracia celestial.
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