Ricardo Gondim
Já visitei o inferno. Estive lá em vida. Já entrei em suas câmaras horrendas diversas vezes. Em todas, padeci muito. Nada sei sobre o "Hades" mencionado pelos religiosos. Aquele que jaz embaixo da terra e começa depois da morte não me interessa. O inferno que já conheci e que me machuca fica aqui mesmo, na terra dos viventes.
Já estive no inferno do engano. Há algum tempo, visitei um parque suíço, em Zurique, para onde convergiam os toxicômanos da cidade. Subi o viaduto que atravessa o parque e do alto contemplei um cenário surreal e dantesco. Lama, lixo e fezes, atolavam rapazes e moças naquele submundo. Ali não existiam humanos, apenas carcaças ambulantes. Naquela mesma noite, no avião, desejei dormir profundamente só para fugir do que testemunhara. Eu preferia qualquer pesadelo a ter que conviver com aquele cenário, tão real. Perguntei-me diversas vezes quem eram aqueles jovens. E porque se revoltavam contra o sistema. Se tentavam ser livres, criaram uma masmorra. Acabaram construindo o inferno com as próprias mãos.
Daquele dia, despertei: o Lago de Enxofre permeia o mundo em que existo. Cada um daqueles jovens tinha um pai. Um pai que pranteia porque não sabe como apagar as labaredas medonhas do lago de enxofre.
Já estive no inferno da culpa. Hoje sei que nenhum tormento provoca maior dor que a culpa. Qualquer mulher culpada sabe o tamanho de sua opressão. Qualquer homem culpado fala que os ossos derretem com uma consciência pesada. Culpa é ácido. A culpa avisa que o passado não pode ser revisitado. Assim as pessoas se submetem a carrascos internos e esperam redenção através de açoites. A dor da culpa lateja como um nervo exposto.
Os culpados procuram dissimular o sofrimento com ativismos, divertimentos e até promiscuidade. Mas a culpa não cede; persegue, persegue, até aniquilar iniciativa, criatividade e esperança. Recordo quando, no final de uma reunião, uma mulher me procurou pedindo ajuda. Seu marido se suicidara de forma violenta. Depois de enroscar uma tira de couro no pescoço, deu partida em um motor, que não só o estrangulou como lhe decepou a cabeça. Mas antes, ele procurou vingar-se. Deixou uma nota responsabilizando a mulher pelo gesto trágico. Diante da tragédia, aquela pobre mulher, desorientada e aflita, não sabia como sair do cárcere que o marido meticulosamente construíra.
Já estive no inferno da maldade. Conheci homens nefastos. Sentei-me na roda de ímpios. Frequentei sessões onde o martelo inclemente da religião espicaçou inocentes. Vi sacerdotes alçando o vôo dos abutres. Semelhante às tragédias shakespeareanas, eu próprio senti o punhal da traição rasgar as minhas vísceras. Fui golpeado por suspeitas e boatos. Com o nome jogado em pocilgas, minha vida foi chafurdada como lavagem de porco. Senti o ardor do inferno quando tomei conhecimento da trama que visava implodir o trabalho que consumiu meus melhores anos. E eu não sabia como reagir.
Portanto, quando me perguntam se acredito no inferno, respondo que não, não acredito. Eu o conheço! Sei que existe. Eu o vejo ao meu redor. Inferno é a sorte de crianças que vivem nos lixões brasileiros. Inferno é o corredor do hospital público na periferia do Rio de Janeiro. Inferno é o campo de exilados em Darfur. Inferno é a vida de meninas que os pais venderam para a prostituição. Inferno é o asilo nos Estados Unidos, que não passa de um depósito onde os velhos esperam a morte.
Um dia, aceitei a vocação de lutar contra esses infernos que me rodeiam, assustam e afrontam. Ensinei e continuo a ensinar que Deus interpela homens e mulheres para que lutem contra suas labaredas. E passados tantos anos, a minha resposta continua a mesma: “Eis-me aqui, envia-me a mim”.
Acordo todos os dias pensando em acabar com os infernos. Gasto a minha vida para devolver esperança aos culpados; oferecer o ombro aos que tentam se reconstruir; usar o dom da oratória para que os discriminados se considerem dignos. Luto para transformar a minha escrita em semente que germina bondade em pessoas gripadas de ódio. Dedico-me ao estudo porque quero invocar o testemunho da história e mostrar aos mansos que só eles herdarão a terra onde paz e justiça se beijarão.
Soli Deo Gloria
Já visitei o inferno. Estive lá em vida. Já entrei em suas câmaras horrendas diversas vezes. Em todas, padeci muito. Nada sei sobre o "Hades" mencionado pelos religiosos. Aquele que jaz embaixo da terra e começa depois da morte não me interessa. O inferno que já conheci e que me machuca fica aqui mesmo, na terra dos viventes.
Já estive no inferno do engano. Há algum tempo, visitei um parque suíço, em Zurique, para onde convergiam os toxicômanos da cidade. Subi o viaduto que atravessa o parque e do alto contemplei um cenário surreal e dantesco. Lama, lixo e fezes, atolavam rapazes e moças naquele submundo. Ali não existiam humanos, apenas carcaças ambulantes. Naquela mesma noite, no avião, desejei dormir profundamente só para fugir do que testemunhara. Eu preferia qualquer pesadelo a ter que conviver com aquele cenário, tão real. Perguntei-me diversas vezes quem eram aqueles jovens. E porque se revoltavam contra o sistema. Se tentavam ser livres, criaram uma masmorra. Acabaram construindo o inferno com as próprias mãos.
Daquele dia, despertei: o Lago de Enxofre permeia o mundo em que existo. Cada um daqueles jovens tinha um pai. Um pai que pranteia porque não sabe como apagar as labaredas medonhas do lago de enxofre.
Já estive no inferno da culpa. Hoje sei que nenhum tormento provoca maior dor que a culpa. Qualquer mulher culpada sabe o tamanho de sua opressão. Qualquer homem culpado fala que os ossos derretem com uma consciência pesada. Culpa é ácido. A culpa avisa que o passado não pode ser revisitado. Assim as pessoas se submetem a carrascos internos e esperam redenção através de açoites. A dor da culpa lateja como um nervo exposto.
Os culpados procuram dissimular o sofrimento com ativismos, divertimentos e até promiscuidade. Mas a culpa não cede; persegue, persegue, até aniquilar iniciativa, criatividade e esperança. Recordo quando, no final de uma reunião, uma mulher me procurou pedindo ajuda. Seu marido se suicidara de forma violenta. Depois de enroscar uma tira de couro no pescoço, deu partida em um motor, que não só o estrangulou como lhe decepou a cabeça. Mas antes, ele procurou vingar-se. Deixou uma nota responsabilizando a mulher pelo gesto trágico. Diante da tragédia, aquela pobre mulher, desorientada e aflita, não sabia como sair do cárcere que o marido meticulosamente construíra.
Já estive no inferno da maldade. Conheci homens nefastos. Sentei-me na roda de ímpios. Frequentei sessões onde o martelo inclemente da religião espicaçou inocentes. Vi sacerdotes alçando o vôo dos abutres. Semelhante às tragédias shakespeareanas, eu próprio senti o punhal da traição rasgar as minhas vísceras. Fui golpeado por suspeitas e boatos. Com o nome jogado em pocilgas, minha vida foi chafurdada como lavagem de porco. Senti o ardor do inferno quando tomei conhecimento da trama que visava implodir o trabalho que consumiu meus melhores anos. E eu não sabia como reagir.
Portanto, quando me perguntam se acredito no inferno, respondo que não, não acredito. Eu o conheço! Sei que existe. Eu o vejo ao meu redor. Inferno é a sorte de crianças que vivem nos lixões brasileiros. Inferno é o corredor do hospital público na periferia do Rio de Janeiro. Inferno é o campo de exilados em Darfur. Inferno é a vida de meninas que os pais venderam para a prostituição. Inferno é o asilo nos Estados Unidos, que não passa de um depósito onde os velhos esperam a morte.
Um dia, aceitei a vocação de lutar contra esses infernos que me rodeiam, assustam e afrontam. Ensinei e continuo a ensinar que Deus interpela homens e mulheres para que lutem contra suas labaredas. E passados tantos anos, a minha resposta continua a mesma: “Eis-me aqui, envia-me a mim”.
Acordo todos os dias pensando em acabar com os infernos. Gasto a minha vida para devolver esperança aos culpados; oferecer o ombro aos que tentam se reconstruir; usar o dom da oratória para que os discriminados se considerem dignos. Luto para transformar a minha escrita em semente que germina bondade em pessoas gripadas de ódio. Dedico-me ao estudo porque quero invocar o testemunho da história e mostrar aos mansos que só eles herdarão a terra onde paz e justiça se beijarão.
Soli Deo Gloria
Um comentário:
muito bom esse texto do Gondim!
parabéns pelo blog! sigo no twitter e estou o tempo todo acessando!
temos que sair da nossa zona de conforto diariamente, afinal nossa fé só tem sentido seguindo o exemplo de Cristo!
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