Depois de tentar Jesus de todas as formas que conhecia, Satã deu-lhe as costas e começou a se afastar, considerando que valia à pena deixá-lo sozinho no deserto ponderando tudo de que havia aberto mão.
A poucos passos de distância ele parou de repente, como se uma absurda noção lhe houvesse ocorrido. Ainda de costas, o tentador virou apenas o rosto, para que Jesus pudesse ouvi-lo.
– Só mais uma coisa – ele disse. – Um conselho de amigo.
Jesus não respondeu. Sem se deixar abater, o tentador virou inteiramente o corpo, olhando Jesus de frente.
– Quero lhe recomendar uma coisa. Encare como tentação, se quiser, mas dentre todas essa deveria lhe interessar. Minha recomendação… Não: meu pedido é – e ele falava com simpatia sincera – não destrua a religião dessa gente.
Jesus ergueu para o outro dois olhos furiosos, mas permaneceu imóvel e em silêncio.
– Sei que já fiz muita coisa errada – o tentador deu de ombros, como que se confessando – mas convenhamos, hoje em dia a maldade anda no piloto automático: quase nunca preciso intervir diretamente. E, para falar a verdade, acabei me afeiçoando a essa gente. Caramba, eles são um bando de perdidos. Não há como não ter pena deles.
Satã olhou para conferir a reação de Jesus. Nenhuma.
– O que estou querendo dizer é o seguinte – ele levou a mão ao queixo e olhou para baixo, como se quisesse escolher bem as palavras.
Ele ergueu finalmente o rosto. Era um rosto bonito.
– Quero que essa seja uma briga justa, pra mim, pra você e até pra eles – ele fez um gesto vago indicando o resto do mundo. – E se você destruir a religião desse povo isso vai me dar uma vantagem que não quero de jeito nenhum.
Ele deu um passo na direção de Jesus.
– Então, se é isso que você tem em mente, peço que pense duas vezes. Esse é um povo sofrido, meu querido. Essa gente não tem nada. A religião é a última coisa, a única coisa a que essa gente pode de fato se apegar. Todo o resto eu tiro deles ou eles tiram uns dos outros. Eles se vendem, se compram, se destróem, mas a religião fica. Dá ordem à vida deles. Rédeas. E não se iluda – o Diabo ergueu um dedo enfático. – Não pense que eles vão se lembrar de Deus se você abolir a religião deles. Nenhuma chance. Eu minto muito bem mas não estou mentindo agora.
Ele deu mais um passo adiante, mais confiante agora.
– Eu sei como você é. Deve estar se preparando agora mesmo para sair denunciando as barbaridades dos que falam em nome Dele. Está certo, eu e você sabemos que não são poucas. Você deve estar sonhando que vai libertar os cativos, que vai dar genuíno cumprimento completo à Lei. Mas se é esse o seu plano, saiba que é o contrário é que vai acontecer. Nada escraviza mais do que a liberdade. Nada é mais incerto, e as pessoas precisam de segurança, a segurança que só a religião, especialmente a sua, pode dar. O mundo vai cair em confusão se você tirar o chão de debaixo deles. Não confunda essa gente. Faça essa cortesia: não por mim, mas por eles. Faça o que quiser, mas não tire a religião dos homens.
Satã deu um longo suspiro antes de concluir, com a seriedade da absoluta convicção:
– Ninguém quer a liberdade que você quer dar. Isso ninguém pode mudar. Nem você.
Jesus, que havia dispensado as tentações anteriores com um único verso da Escritura, sabia que esta exigiria muito mais. O pacote completo.
– No princípio… – ele começou.
E o Diabo o deixou, porque não era mais necessário.
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