Paulo Brabo - Bacia das Almas
Uma religião pode escolher definir-se, basicamente, pelo seu respeito aos ciclos ou pela sua obsessão com a história.
As religiões que optam pelos ciclos (vamos chamá-las, apenas por conveniência, de circulares) celebram incessantemente o [eterno] retorno dos ciclos naturais: as estações do ano, as épocas de plantio e colheita, o ciclo reprodutivo de homens e animais – e portanto o sexo. Seus rituais são construídos para cultivar aqui e agora, no presente, a beleza e o mistério do que sempre aconteceu e voltará invariavelmente a acontecer. Uma religião circular opinará que são inteiramente irreais os limites entre uma época e outra, entre uma geração e outra, entre uma manifestação da natureza e outra: e que, portanto, são ilusórias as distinções que fazemos usualmente entre homens e animais até mesmo entre uma pessoa e outra. Tudo é tudo, todos serão todos e todos já foram todos e misteriosamente o são. Não sobra, oficialmente, espaço para noções como a individualidade ou a singularidade da espécie humana.
As religiões que optam pela história (vamos chamá-las de lineares) enxergam a existência não como um círculo, mas como uma flecha com uma direção e um propósito, uma ousada aventura norteada por uma inteligência oculta e empreendedora cujo plano vai se executando e revelando progressivamente. Como não contam com os ciclos para manter a sua sanidade, as religiões lineares dependem incessantemente de revelações e de registros de revelações: definem-se pelos seus profetas, especialmente pela expectativa dos profetas e pelas histórias de profetas. Tendem por isso a ignorar o presente a a concentrar-se no futuro – e, com pelo menos a mesma paixão, no passado. Ao mesmo tempo, enfatizam a responsabilidade individual e a absoluta singularidade de tudo: do momento histórico, da criação, da espécie, da nação, do indivíduo, de Deus.
Os circulares andam em círculos, os lineares andam para frente e para trás (mas nunca olham para os lados ou para o espelho). Os lineares almejam ousadamente estar onde nenhum homem jamais esteve; os circulares têm por certo que estão onde todos já estiveram e sempre estarão.
O judaísmo, o islamismo e [originalmente] o cristianismo são os exemplos mais espetacularmente bem-sucedidos de religiões lineares. As religiões circulares são – bem – praticamente todas as outras. Depois de mais ou menos escanteados no Ocidente por milênios, os ritos circulares estão experimentando atualmente diferentes graus de ressurreição. Num golpe de justiça poética, estão desfrutando dos prazeres do eterno retorno que preconizam: como que para provar o seu argumento, as religiões circulares sempre voltam.
Seria injusto, você pode estar pensando, decidir que apenas uma dessas duas visões de mundo é a correta. Afinal de contas, nossa experiência individual é moldada tanto pelos ciclos (não é incomum dizermos “primaveras” querendo dizer “anos de idade”) quanto pelo avanço implacável do relógio história adentro. Qual será a realidade última: “tudo é como sempre foi” ou “tudo avança para um inevitável fim”? Entre a doutrina linear e a dos ciclos, haverá apenas uma que seja fundamentalmente correta? Não há uma religião que abrace as duas?
Quando entrou em cena, há quatro mil anos, o judaísmo era uma das poucas vozes a reivindicar uma visão de mundo linear – a noção de que “Deus tem um plano em cada criatura”. Em todo lugar, ao redor, pululavam como moscas as religiões politeístas e circulares.
O judaísmo chegou defendendo, além do monoteísmo, uma série de outros conceitos impopulares e improváveis: o progresso não é uma ilusão, mas a realidade última; o indivíduo e a sua participação no mundo são absolutamente singulares e essenciais; nenhum momento se repete e o pecado consiste basicamente em momentos perdidos.
”[...] a religião dos patriarcas estava infundida de um senso histórico que é caracteristicamente semita ou hebraico. Ao contrário dos povos estabelecidos em Canaã, que estavam mais preocupados em ajustar os ciclos da natureza e preservar o equilíbrio social, os hebreus errantes tendiam a expressar a sua fé na linguagem dinâmica da história. Eram peregrinos e aventureiros que, em reposta a um chamado divino, haviam deixado a sua terra de origem e partido para o desconhecido e para o incerto – rumo a uma terra que Deus lhes mostraria no devido tempo. Viviam por um empreendimento de fé, confiando que o seu futuro estava nas mãos do seu Deus”. 1
Como se verá, a fé dos judeus não ignorava os ciclos da natureza nem o seu temível poder e influência; ela pressupunha porém que havia Outro singular que estava acima até mesmo da onipresença e potência das forças naturais. Os ciclos eram poderosos, mas eram também cegos e arbitrários; este Alguém pensava, planejava, enxergava longe – e, especialmente,intervinha. Ele não estava apenas acima das forças da natureza, mas elas mesmas eram fruto de sua iniciativa e estavam inteiramente sob o seu controle.
Este Outro convidava o homem a erguer a cabeça para cima do redemoinho dos ciclos e enxergar a singularidade do momento, do Criador e dele mesmo. Convidava-o a navegar com ele por cima das ondas circulares rumo a um destino e um propósito e um fim.
Na época essa idéia era uma tremenda novidade. E alguns, curiosamente, acreditaram.
Blaise Pascal observou certa vez que o Deus da Bíblia é o “Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó”, não o Deus dos filósofos e dos sábios. “Isso é verdade no sentido de que a fé bíblica é, para perplexidade e escândalo de muitos filósofos, de caráter fundamentalmente histórico. Suas doutrinas são realidades e eventos históricos, não valores abstratos ou idéias existindo num reino atemporal”. 1
Dois mil anos depois de Abraão, o judeu Jesus era completamente imbuído desse senso de singularidade histórica. Tudo que ele disse e fez pressupunha a responsabilidade individual, tanto a dele quanto dos outros; a mensagem do Reino trazia embutida em si um plano, uma iniciativa, um rumo, uma urgência e um destino. Por trás da cortina de fumaça dos ciclos, garantia Jesus, havia um Outro que correspondia a todos e cada um. E esse se importava.
(continua, talvez circularmente…)
1. Bernhard W. Anderson, Understanding the Old Testament
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