terça-feira, 23 de março de 2010

A irremediável burguesia religiosa


Ricardo Gondim

Se não me falha a memória, a frase é do Cazuza. “A burguesia fede, mas tem os seus encantos”. Pela classificação mais ordinária dos cidadãos brasileiros, nasci na classe “C”, isto é, no andar de baixo desta burguesia. Designado para viajar nos vagões mal cheirosos que ficam atrás do trem, minha infância não teve tantos mimos. Cresci sem automóvel (eu tinha 17 anos quando papai comprou um carro), sem frequentar lanchonete nos fins de semana e sem vestir roupa de grife. Não, nunca fomos pobres; tínhamos segurança alimentar e uma grande família com tios que chegaram junto na hora do sufoco.

Mas, para entrar no baile de adolescente na vesperal do Clube Náutico, eu precisava pular o muro; para chupar um picolé no intervalo da aula, tinha que ir para o colégio a pé e para comer maçã, adoecer.

Tornei-me um militante do patético alpinismo social. Em meu primeiro emprego, fixei a meta de comprar um fusca. Trabalhei como um remador de galé, mas um ano depois saí da loja montado nas quatro rodas alemãs - e mais trinta e seis prestações. Daí para a frente, continuei subindo. Cheguei ao mundo colorido da classe “B”. Eu já não era um remediado pobretão. Cedo, também notei que as escadas religiosas poderiam me conduzir a patamares mais elevados.

Gastei a maior parte dos meus dias entre cristãos que faziam da religião o trampolim social que a sociedade lhes negava. Eu sabia que a lógica religiosa que eu aceitava de bom grado, e fortalecia, servia às aspirações de pequenos ricos.

Primeiro, nos Estados Unidos. Viajei extensivamente por quase todo o território e conheci a América profunda. Preguei tanto em igrejas grandes como em bibocas. Evitei, por interesse, notar como os pentecostais se esforçavam para mostrar que não eram os primos pobres de batistas e presbiterianos. Por duas vezes, participei do Concílio Geral das Assembleias de Deus. Não há como descrever o desfile das vaidades que vi nessas reuniões. Pelos corredores lotados com mais de quinze mil pastores, mulheres borradas de maquiagem ostentavam roupas caras e os maridos batalhavam para ganhar a placa de “Maior Contribuinte de Missões Mundiais ”.

Depois que voltei ao Brasil, também procurei cegar para o que via. Eu não queria notar como líderes denominacionais usavam de toscas manipulações para se manterem temidos como caudilhos. Pastores oriundos das mesmas camadas sociais que eu, se sentiam desafiados a passar pelo malho apertado da peneira social. Alguns, logo revelavam sinais exteriores de riqueza, fama, glória. Isso lhes motivava à luta e eu, confesso, queria ser como um deles. Os ungidos apareciam ao lado de políticos famosos, viajavam para Israel, abriam postos missionários além-mar.



Paulatinamente, distanciei-me desse mundo que passou a imprimir cartão de visita com o titulo de Apóstolo. Depois, com as mega-empresas religiosas, quando o cacife cresceu, e eu decidi sair de vez. Os verdadeiramente ungidos passaram a desfilar de BMW, helicóptero e jatinho. Resolvi não desejar esses brinquedinhos que patenteiam a bênção de Deus.


O mundo evangélico está contaminado por esta espiritualidade pequeno-burguesa. Animado pela lógica de que servir a Deus é proveitoso, o crente parte em busca do macete que abre porta de emprego, faz passar no vestibular, resolve causas na justiça, ajuda nos concursos públicos e aumenta salário. Para ele, a prova de que Deus existe está nesses pequenos milagres; e o melhor testemunho da verdade da fé, na capacidade de mover o braço do Todo-Poderoso.

Quase fui linchado quando afirmei, em um estudo bíblico, que Deus não abre porta de emprego.Sofri crítica por dizer, baseado no Sermão da Montanha, que Jesus ensinou aos filhos de Deus a não pedirem coisas materiais. A princípio, não entendi a reação virulenta. Por que tamanha resistência à proposta de espiritualidade que abre mão das intervenções divinas para se dar bem na vida? Mas, quanto mais eu lembro das ambições que povoaram o meu coração juvenil, dos corredores enfatuados daquelas convenções americanas e da breguice dos evangelistas novos-ricos, reconheço: não se desvencilha com facilidade das orações milagrosas que prometem os encantos da burguesia, sem feder.

Soli Deo Gloria

domingo, 21 de março de 2010

A História das Coisas


O que é História das Coisas ?

Da extração e produção até a venda, consumo e descarte, todos os produtos em nossa vida afetam comunidades em diversos países, a maior parte delas longe de nossos olhos.

História das Coisas é um documentário de 20 minutos, direto, passo a passo, baseado nos subterrâneos de nossos padrões de consumo.

História das Coisas revela as conexões entre diversos problemas ambientais e sociais, e é um alerta pela urgência em criarmos um mundo mais sustentável e justo.

História das Coisas nos ensina muita coisa, nos faz rir, e pode mudar para sempre a forma como vemos os produtos que consumimos em nossas vidas.


O Rei




Ricardo Gondim

Depois de sofrer meticulosa tortura, pendurado numa cruz, ele agonizava. Nos estertores, a morte se prenunciava eminente. A cena era grotesta, horrorosa, nauseante. Espasmos balançavam seu corpo; o sangue jorrava das incontáveis feridas abertas por chicotes, tapas, chutes e cordas amarradas aos pulsos. Os olhos embaçados mal se mexiam nas órbitas semi cerradas por hematomas.

O mal cheiro do lixo que ardia no monturo se misturava com os suor da multidão enfurecida. Os gritos não paravam; não se entendia o que a turba dizia. Choro, raiva, consternação, típicos do frenesi de massas irracionais, davam a sensação de que aquele momento se tornaria o mais exuberante e trágico exemplo da bestialidade humana.

Dois bandidos o ladeavam. Em julgamento sumário, a sentença capital fora confirmada de acordo com os ritos da época. Soube-se que um dos apenados era Dimas, assassino confesso flagrado em ato terrorista. Na noite que antecedeu a execução, Dimas não conseguira dormir. Como um animal selvagem, andou ao redor da estreita jaula. Dimas foi e veio mais de uma centena de vezes à espera do sol que testemunharia sua morte.

Era escuro quando ele escutou soldados zombando. A tropa repetia em cada soco alguma provocação. “Realize um milagre e prove que é o Messias”; “Você disse que os anjos estariam ao seu dispor, pois vamos ver se as hostes celestiais são mais poderosas do que a cavalaria romana”. Pontapés ensurdecedores, ecoavam pelos corredores da prisão. A noite foi insone.

Cedo, bebeu dois dedos d’água e Dimas foi arrastado pelos corredores mal iluminados da masmorra. Com violência, chegou à calçada onde outros dois sentenciados o esperavam. Dimas identificou o menos musculoso como o castigado da véspera.

A procissão começou. Trôpegos, os três caminharam por vielas mais tarde conhecidas como Via Dolorosa. Agora, súbitos companheiros de infortúnio, eles mal conseguiam carregar a trave que os mataria. Duzentos metros antes de sairem pelos portões da cidade, Dimas perguntou o nome do mais castigado.” Jesus”, respondeu. Faltava fôlego; a fatiga não lhe deixou continuar. Mas, tomando ar, emendou: “Sou Jesus, de Nazaré”.

Dali em diante, devido aos pedregulhos da estrada, Jesus não conseguia levantar-se. Os soldados se revezaram nos açoites para que ele se erguesse de um salto e prosseguisse. Queriam encurtar a liturgia que os romanos usavam para intimidar o mundo antigo : crucificar.

Dimas notou quando os soldados constrangeram um peregrino para que carregasse o fardo do Nazareno, que depois passou a seguir, cabisbaixo, a marcha soturna.

As estacas cairam nos buracos recém cavados. Os corpos pesaram e as mãos esgarçaram. Não sobrava esperança para os três condenados. Dimas conseguiu fazer um último pedido: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu Reino”.

Hoje, passados tantos séculos continuo a perguntar: “O que Dimas viu em Jesus para acreditar que ele era rei? Como conseguiu classificar um trapo humano de monarca? Os imperadores tem autoridade, mas o Nazareno estava reduzido a pó. Se fosse rei não seria refém de uma soldadesca tão ordinária. Dimas delirava ao chamar de rei um homem morimbundo?".

Não, Dimas percebeu que Jesus era rei de outra espécie. Sem a ostentação comum aos soberanos, ele impressionava pela grandeza de não querer apelar para qualquer intervenção sobrenatural que vingasse a mensagem que ensinara. A elegância de não revidar, a grandeza de perdoar e a consciência de que era amado apesar das circunstâncias, faziam dele um monarca digno de ser seguido. Jesus haveria de inaugurar um reino diferente de todos os que já existiram. Ele seria rei das crianças, dos mansos, dos que choram, dos puros de coração, dos misericordiosos.

Dimas quis participar de seus domínios onde paz e justiça se beijariam, as cãs do ancião seriam respeitadas, os excluídos, acolhidos, e os fracassados, incentivados a continuar.

Soli Deo Gloria


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