sexta-feira, 4 de maio de 2012

O clamor do pobre

Ricardo Gondim

Tolstói iniciou Anna Karenina com uma das mais espetaculares afirmações da literatura: ”Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. A felicidade é indistinta, mas a tristeza carrega particularidades específicas. Ao longe, os cenários são belos; próximos, expõem detritos horrorosos. De perto, o lixo fede. Narrativas universalizantes foram incapazes de retratar dramas pessoais – vivenciados na dura realidade cotidiana.

Filosofia e teologia se especializaram em grandes narrativas para lidar com o sofrimento. Esqueceram as pequenas realidades. No microcosmo, gente com nome, história e laços de amor geme. Oprimidos em inúmeros cativeiros, os judeus cantavam: “Quem são homens e mulheres para que Te lembre deles? Onde Te escondeste, ó Senhor?”.

Voltaire afirmou que se há vida em outros mundos, a terra é o manicômio do universo. Segundo a ONU, dois milhões morrem de fome a cada dia – eu disse: cada dia.  Estima-se que só na Europa, 500 mil mulheres sejam traficadas a cada ano – a maioria para exploração sexual. (as brasileiras engrossam as estatísticas no Velho Continente e somam 75 mil, o equivalente a 15% das vítimas). O que fazer com a cólera no Haiti, a malária na África, a guerra civil no Sudão, a perseguição religiosa no Afeganistão, o consumismo e a indiferença na Europa e os homicídios do México ao Brasil?

O palácio dos horrores baixou a ponte. Cavaleiros do Apocalipse entram em cena a galope. De tão barata a vida, milhões e milhões de famílias, à sua maneira, experimentam o inferno.

A prece mais religiosa para esta geração deve ser: “Deus, por que não invades logo o monturo que se transformou este planeta? Por que o Senhor não acaba com o ato desse teatro macabro? A peça já se arrasta além do necessário. O preço que cobras por teres nos criado imperfeitos não está alto demais?”.

Que volte o hino do negro spiritual: “Não se te dá que morramos? Como podes assim dormir?”

Se existe outro mundo possível, onde se esconde? Por que os mínimos sinais de um reino alternativo sempre foram imprecisos? Por que o bem se perdeu em instituições adoecidas? Nada explica a ganância ser maior que a fome de justiça.

Além da indiferença do universo, anônimos sofrem com a burocracia estatal – burocracia fria. Oligarquias se reinventam para manter o poder nas mãos dos mesmos. Estruturas se satanizam. Instituições legitimam processos de alienação. O mal se multiplica com facilidade. O bem consome a vida dos poucos que se atrevem concretizá-lo.

A história segue. Ruma ao grande abismo. T. S. Eliot perguntou: “Onde está a vida que perdemos vivendo? 
Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? 
Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”.  Insana, a humanidade se debate sem sequer buscar antídoto para o veneno que a destrói.

Quantos se dispõem quebrar o sistema que abandona crianças à miséria? Mulheres violentadas e idosos abandonados continuarão sem terem quem os vingue?  A coerência que justifica o mal será desfeita quando?

Milhões se entorpecem. Tateiam em busca de respostas nos lugares errados. Consumismo junto com as indústrías do esportismo e do “celebrismo” servem para perpetuar a ilusão de que no fim tudo vai dar certo. Estupidez. Quinquilharias tecnológicas salvam e alienam. Erudição ilustra e ilude. Enquanto a mão esquerda escreve poesia, a destra declara guerra.

Vaidosa, a atual geração se considera pouco menor do que os anjos. Só não vê a própria cara desfigurada – monstro de iniquidade.

Os caminhos humanos não apontam para um progresso inexorável; não desembocam, necessariamente, em estrada alguma. Nada garante que o rio da história alcance o oceano do sentido.

O planeta terra parou de brilhar;  há muito não embeleza o universo. A eternidade não guardará registro do tempo fugaz dos humanos por aqui. As perguntas que a racionalidade fez foram insuficientes para chegar à verdade. A pouca solidariedade partilhada malogrou em redimir o ódio. Livros da história produziram melancolia por um passado de ouro, apenas. A clemência da geração que sucedeu ao holocausto se revelou impotente para evitar outros genocídios. A ciência não conseguiu reverter o inconsciente coletivo, que ainda viabilizará novas chacinas.

O Nazareno acertou: em todos os dias cabe um mal próprio.  Sendo assim, séculos não aliviarão a tragédia da geração atual. Não por acaso os pobres, conscientes de seu sofrimento, devem voltar a clamar: “Maranata – não te demores, Senhor”.

Soli deo Gloria

terça-feira, 1 de maio de 2012

Gustavo Lima e você

Lucas Lujan - @lucaslujan

 

O Brasil é a sexta maior economia do mundo. Nós ultrapassamos o Reino Unido. Nosso PIB é de US$ 2,48 trilhões, enquanto o do Reino Unido é de US$ 2, 26 trilhões.

 

Algumas pessoas receberam essa notícia, no fim de 2011, com entusiasmo. Quando o banco alemão WestLB noticiou o ranking das maiores economias do mundo, muitos brasileiros abriram sorriso de orelha a orelha. Contudo, eu não. Recebi a notícia com desconfiança e lamento.

 

Na minha opinião, Weber acertou quando teorizou sobre a autonomia das esferas da realidade. Economia e política são esferas distintas e autônomas, e aqui está a razão do meu lamento. Enquanto a esfera econômica brasileira ascende, a política se desgasta e degrada sistematicamente.

 

O Brasil tem uma das piores distribuições de renda do mundo. Para mostrar a gravidade em detalhes, alguns dados: segundo o mais recente relatório sobre Desenvolvimento Humano divulgado pela ONU, o Brasil é o décimo pior entre os cento e vinte e seis países considerados para a realização do relatório. Nós temos a terceira pior distribuição de rendas da região latino americana e caribenha. Piores que nós, apenas a Bolívia e o Haiti.

 

É de corar as bochechas de qualquer pessoa de bom senso, afinal, estamos falando da sexta maior economia do mundo!

 

Distribuição de renda é problema político. De que adianta uma economia em ascensão e uma política desse nível? Poderia escrever sobre vários outros problemas políticos do Brasil, mas não considero necessário para o meu argumento, uma vez que a má distribuição de renda está intimamente ligada com a pobreza e a fome – e não há problemas políticos mais relevantes.

 

O Brasil atual enriquece, mas apenas o bolso dos que já eram ricos. A distribuição de renda brasileira é a denúncia de que o pobre continua pobre, quando não mais pobre do que era. O acesso das classes mais baixas à linhas de crédito, que permitem adesão de bens de consumo, é apenas uma cortina de fumaça para distrair a massa do real problema político brasileiro.

 

Mas essa cortina de fumaça não tem razões econômicas apenas. Há ainda outros que ajudam a mantê-la, para parecer que está tudo bem: Michel Teló, Gustavo Lima e tantos outros milhões de imbecis que cantam “me dá um tchu, me dá um tchá”. Nesse esquema idiota e idiotizante, tipo pão e circo, os brasileiros vão festejando sua própria miséria política e humana.

 

O que acontece com os brasileiros? O que aconteceu com aqueles que lutaram contra a ditadura militar? O que aconteceu com aqueles que lutaram pelo voto direto? Que tipo de apatia se abateu sobre esse povo que já derrubou sistemas políticos perversos? O Brasil tem um dos piores índices de corrupção política do mundo!

 

Jesus disse que as portas do inferno não prevaleceriam contra a igreja, mas só disse isso porque não conhecia a igreja evangélica brasileira. Se conhecesse, teria hesitado. Os evangélicos seguem emudecidos diante da injustiça social que testemunham. Em terras tupiniquins as portas o inferno prevaleceram em forma de silêncio, descaso e insensibilidade contra a igreja que se diz de Jesus.

 

Os evangélicos confundem as coisas, acham que quando a Bíblia diz que Deus criou todas as coisas, era sobre o Cachoeira que ela estava falando! Essa leitura literal da Bíblia sempre atrapalhando tudo...

 

O Brasil é uma vergonha política. E o nosso povo dá de ombros para isso, inventando alguma nova coreografia ridícula que envolve bunda e rebolado ... Nossa, nossa, assim você me mata. Nos mata.

 

Lidero, junto com mais alguns amigos, um pequeno grupo de jovens numa igreja evangélica chamada Betesda. Desde o começo do ano, os líderes desse grupo acharam relevante discutir política em nossas reuniões, pois além de ser ano eleitoral, é necessário dar início ao debate político entre jovens, ainda mais os que estão dentro de uma igreja. A ideia ganhou o nome de Política JB (Jovens Betesda). Reservamos um sábado por mês para esse programa. Desejávamos que o debate inflamasse o grupo e o colocasse em movimento político de engajamento social... Mas não aconteceu. Dos sessenta jovens que frequentam normalmente nossas reuniões semanais, menos de trinta aparecem no Politica JB, provavelmente por considerarem irrelevante discutir política, ainda mais dentro da igreja. O que é isso, senão um retrato fiel da mentalidade política brasileira?

 

Na América Latina, nosso país só ganha da Bolívia e do Haiti em justa distribuição de renda, e tem uma cambada de brasileiros descerebrados que acham que política não é importante!

 

Minha indignação é tanta, que já tive vontade de desistir algumas vezes. Mas graças aos meus bons amigos politizados continuo – alguns dentro do grupo de jovens que lidero, organizando doações de sangue; outros fora da igreja, lutando por movimentos de reforma política. Eles ainda me inflamam e me colocam em movimento.

 

Existe uma expectativa que até 2015 o Brasil se torne a quinta maior economia do mundo, ultrapassando a França – onde crianças de pais ricos e pobres frequentam as mesmas escolas, enquanto no Brasil, a educação pública está entre as piores do mundo...

 

Intitulei o texto de “Gustavo Lima e você” para que as pessoas lessem. Se eu colocasse algo como “política e economia no cenário brasileiro” meu e-mail iria direto para a lixeira da maioria. Desculpe se não é o seu caso, não quis te nivelar por baixo... Foi uma atitude desesperada.

 

 

Lucas Lujan

segunda-feira, 30 de abril de 2012

As demarcações do amor: quem Deus ama, quando e porquê

Ma che cosa è questo amore, che fa tutti delirar?
Aria de Berta, Il Barbiere di Siviglia
 
Dizer, como a carta de João, que Deus é amor, aparentemente não basta.

Comentando o verso vinte e sete do décimo-sexto capítulo do evangelho de João – “porque o próprio Pai vos ama, visto que me tendes amado e tendes crido que eu vim da parte de Deus” – Agostinho (354-430) toma o cuidado de qualificar o mecanismo (e portanto os limites) do amor de Deus por nós. Na opinião de Agostinho, muitas vezes repetida depois dele, o amor divino pelas pessoas deve ser compreendido exclusivamente em termos do amor de Deus, interno à trindade, pelo Filho e pelo Espírito Santo.

“Não que Deus não nos ame,” esclarece o teólogo; “porém Deus nos ama como seremos, não como somos”. Segundo Agostinho, Deus, por um lado “nos ama, para que nos tornemos”, por outro “nos odeia pelo que somos, exortando e capacitando-nos a não desejarmos ser para sempre dessa forma1”.
“Deus nos ama como seremos, não como somos”.
Agostinho não duvida de que Deus nos ame, porém segundo ele Deus é incapaz de amar em nós mais do que o reflexo antecipado do seu Filho – a quem seremos, se tudo der certo, semelhantes um dia. Deus não nos ama e não pode nos amar “como somos”, simplesmente porque não há nada em nós que Deus possa amar sem contradizer e macular a sua singularidade. É por essa razão, argumenta o teólogo, que só podem beneficiar-se verdadeiramente do amor de Deus os que se aproximam o suficiente da pessoa de Jesus.

Simone Weil, em rigoroso contraste, crê que as pessoas devem ser amadas como são, do contrário “não serão as pessoas que estaremos amando, e o nosso amor será irreal”. Esta parece ter sido também, nos evangelhos segundo minha leitura, a disposição e o ensino geral do próprio Jesus.

O amor de Deus pelo que é indigno, incompatível e desprezível efetivamente macula, como queria Agostinho, a singularidade divina? Ou vem, ao contrário, reforçá-la e comprová-la? Se o que Jesus amava numa mulher adúltera, num agiota ou num endemoninhado não passava de um reflexo potencial e antecipado de sua própria pessoa, conhecerá Deus um amor que não seja narcisista? Haverá algo no amor de Deus que não seja referência interna? Haverá no universo outro objeto digno de amor?

Para complicar as coisas, quanto mais uso essa palavra menos claro fica para mim do que estou falando. No fim das contas, o amor atribui valor ao objeto amado, ou apenas reconhece esse valor? O amor precisa do amor? O amor precisa do objeto amado ou pode prescindir galantemente dele? Pode o amor ser despido, em alguma parcela, de amor-próprio? Posso condenar Deus por não amar pessoa alguma além dele mesmo? Com que freqüência consigo mais do que isso?

Pensando bem, é mais fácil pensar que o amor de Deus seja dessa forma auto-referencial e circular; seria pedir demais que eu aprendesse a amar como ele, para fora e não para dentro.

1 Agostinho de Hipona, Sobre a trindade, 1.10.21 
Fonte: Paulo Brabo - A Bacia das Almas

domingo, 29 de abril de 2012

As invisíveis restrições à liberdade

Fonte: A Bacia das Almas

Quando tentamos formar nossas opiniões de maneira inteligente nossa tendência é aceitar o julgamento daqueles que por sua educação e ocupação são forçados a lidar com o assunto em questão. Pressupomos que suas opiniões sejam racionais e baseadas numa compreensão inteligente desses problemas. Essa nossa crença esta fundamentada na pressuposição tácita não apenas de que esses possuem algum conhecimento especial, mas também de que são livres para formar opiniões perfeitamente racionais. É fácil, no entanto, verificar que não há qualquer tipo de sociedade humana em que tal liberdade exista.

Creio que posso deixar meu argumento mais claro através do exemplo da vida de um povo cujas condições culturais são bastante simples. Escolho para esse propósito os esquimós, que em sua vida social são extremamente individualistas. Seu grupo social tem tão baixa coesão que não temos praticamente o direito de falar em tribos. Um certo número de famílias se ajunta e passa a viver no mesmo vilarejo, mas não há nada que impeça qualquer uma delas de viver e estabelecer-se em outro lugar com outras famílias. De fato, no período de uma vida as famílias que constituem um vilarejo esquimó mudam constantemente de comunidade; e embora retornem em geral, depois de alguns anos, para o lugar em que vivem seus parentes, a família pode ter pertencido a um grande número de outras comunidades.

Não há autoridade investida sobre qualquer indivíduo, não há chefes e nenhum método pelo qual ordens, caso fossem dadas, deveriam ser levadas a cabo. Em resumo, no que diz respeito a legislação temos uma condição de anarquia quase absoluta. Podemos portanto dizer que cada indivíduo é inteiramente livre, dentro dos limites de sua capacidade mental, para determinar seu próprio modo de vida e seu próprio modo de pensar. Porém não é difícil demonstrar que há incontáveis restrições que acabam determinando o comportamento desse indivíduo. O menino esquimó aprende a manejar a faca, a usar o arco e flecha, a caçar, a construir uma casa; a menina aprende a costurar e remendar roupas e a cozinhar; durante a vida toda eles usarão suas ferramentas do modo que aprenderam na infância. Novos inventos são raros, e toda a vida industrial do povo segue canais tradicionais. O que é verdadeiro para suas atividades industriais aplica-se da mesma forma a suas idéias. Certos conceitos religiosos foram transmitidos a eles, noções a respeito do que é certo e errado, certas diversões e a fruição de determinados tipos de arte. É improvável que ocorra qualquer desvio desses padrões.

Ao mesmo tempo que nunca lhes passa pela cabeça que qualquer outro modo de pensar ou de agir seja possível, eles consideram-se perfeitamente livres no que diz respeito a suas ações. Com base em nossa experiência mais ampla, sabemos que os problemas industriais dos esquimós poderiam ser resolvidos de muitas outras maneiras, e que suas tradições religiosas e costumes sociais poderiam ser muito diferentes do que são. De um ponto de vista externo e objetivo podemos ver claramente as restrições que amarram o indivíduo que se considera livre.

DE FORA PODEMOS VER CLARAMENTE AS RESTRIÇÕES QUE AMARRAM O INDIVÍDUO QUE SE CONSIDERA LIVRE.

Dificilmente será necessário prover exemplos adicionais dessas ocorrências. Pode ser desejável, no entanto, ilustrar o enorme poder dessas idéias que restringem a liberdade de pensamento do indivíduo, resultando em sérios conflitos mentais quando a ética tradicional da sociedade entra em conflito com reações instintivas. Dessa forma, em certa tribo da Sibéria encontramos a crença de que cada pessoa viverá na vida futura na mesma condição em que se encontrar por ocasião da sua morte. Como conseqüência, o velho que começa a experimentar a decrepitude deseja morrer, a fim de evitar a vida como inválido no futuro sem fim, e passa a ser o dever de seu filho matá-lo. O filho crê na retidão desse mandamento mas ao mesmo tempo sente amor filial pelo pai, e não são poucas as vezes em que o filho tem de decidir entre esses dois deveres conflitantes – o imposto pelo amor filial instintivo e aquele imposto pelo costume da tribo.

Franz Boas (1862–1942)
A atitude mental das classes educadas


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