sábado, 28 de abril de 2012

A santa que queria se mesclar


Não consigo ainda deixar de me perguntar se nestes dias em que tão vasta proporção da humanidade está mergulhada no materialismo, Deus não deseja que haja homens e mulheres que entregaram-se a ele e a Cristo e permanecem apesar disso fora da igreja.

De qualquer modo, quando penso no ato pelo qual eu entraria na igreja como algo concreto, que pode acontecer num futuro próximo, nada me dá mais dor do que a idéia de separar-me da imensa e desafortunada multidão de descrentes. Tenho a necessidade essencial, creio que pode-se dizer a vocação, de andar entre homens de todas as classes e feições, misturando-me a eles e compartilhando de sua vida e perspectiva na proporção que a consciência permite, mesclando-me à multidão e desaparecendo no meio dela, para que eles se mostrem a mim como são, removendo todos os seus disfarces diante de mim. Isso porque desejo conhecê-los de modo a amá-los como são. Pois se eu não amá-los como são, não será a eles que estarei amando, e meu amor será irreal. 

Simone Weil, em carta de 19 de janeiro de 1942 ao padre Perrin

sexta-feira, 27 de abril de 2012

A passagem do tempo e o mistério da identidade

Paulo Brabo - A Bacia das Almas

Todos os recursos expressivos de Deus são literários. No princípio era o Verbo, ou dito com outro vocabulário, Era uma vez.
Quando quer surpreender, instigar e iluminar – e ele parece querer incessantemente surpreender, instigar e iluminar – Deus recorre a precisamente os mesmos truques de que os contadores de histórias tem dependido desde antes que ocorresse ao primeiro a idéia de registrar um argumento por escrito.
A multidão de histórias verdadeiras e inventadas que nos sitiam não deve nos impedir de observar que são os mesmos truques fundamentais que impulsionam e sustentam cada narrativa independente. Rigorosamente falando, o repertório de recursos expressivos que Deus e escritores têm em comum pode ser reduzido a apenas dois itens: a passagem do tempo e a questão da identidade. Nesse breve inventário estão compreendidos toda a literatura e todo o método de Deus.
A passagem do tempo não é meramente o artifício de encadeamento que possibilita o fluxo da narrativa; não é meramente o rio em cuja corrente a história pode fluir. Numa história, inclusive na nossa, o tempo é a varinha de condão por excelência, o elemento mágico que possibilita cada milagre, cada conclusão, cada reviravolta. A passagem do tempo pode transformar o patinho feio em cisne belíssimo, o Dr. Jekyll em Mr. Hyde, o venturoso Jó num Jó esmagado pelo rancor e, pelo mesmo recurso, num Jó que volta a rir sozinho, inconcebivelmente feliz da vida.
Graças ao simplicíssimo truque da passagem do tempo, todos os milagres e todas as histórias são concebíveis. Deus não precisa ser onipotente, basta que o tempo continue a fluir: para o tempo nada é impossível.
Para o tempo nada é impossível.
É o toque mágico e suficiente da passagem do tempo que pode transformar o marinheiro iletrado Edmund Dantès, de sua cela imunda no Castelo de If, no rico e articulado Conde de Monte Cristo, inteiramente livre sob o sol de Marselha. Esse mais essencial dos truques literários dá forma (por contraste) aos infernos de Kafka, reverte as lealdades em Otelo, reconcilia Darth Vader e Luke Skywalker, reaproxima Esaú de Jacó e reúne finalmente as duas irmãs nos últimos quadros de A Cor Púrpura. O tempo é o pai da reviravolta, que é a razão de ser da história.
Não se deixe portanto enganar por batalhas, bilhetes, traições, chantagens, desencontros, promessas, poções, profecias, rompimentos, jornadas, dragões ou labirintos; esses são na história meros incidentes (essencialmente intercambiáveis) destinados a mascarar o essencial: que é a passagem do tempo que patrocina o milagre e fabrica a reviravolta.
Deus usa, descaradamente, o recurso da passagem do tempo para nos surpreender, instigar e iluminar. O tempo é o fazedor de milagres, o professor e o carrasco por excelência; é o que nos restaura e converte e exaure e revigora e transfigura e justifica e por fim, com um exagero canastrão, mata. O tempo é a matéria-prima do assombro, a raiz da concatenação. É o truque literário mais antigo de todos, que faz inevitavelmente o jovem se perguntar quem é o velho que está olhando para ele de dentro do espelho.
Com a passagem do tempo, vemos arruinado o que pensávamos ser inabalável, e restaurado o que pensávamos estar perdido para sempre. A passagem do tempo imbui significado no que nos parecia no primeiro momento casual; instila a esperança e nega-a terrivelmente e, terrivelmente, restaura-a. Em sua crueza, o tempo nos diz sem rodeios que o Brabo tem quase quarenta anos e ainda não se casou, que os cristãos aguardam pela segunda vinda do Messias de Davi por mais tempo que os descendentes de Davi tiveram de aguardar a primeira, que o cenário da nossa infância – que deveria por direito ser eterno – está irrecuperavelmente perdido e que as mais atordoantes novidades destinam-se a ser recordações de velhinhos. A passagem do tempo transforma amigos em inimigos, inimigos em amigos, cria incontáveis motivos e chaves e gatilhos que poderemos talvez reconhecer quando reaparecerem na história; faz-nos quebrar sensatamente terríveis promessas que fizemos a nós mesmos, deixa-nos encontrar gratidão na mais horrenda ausência e beleza onde só parecia haver dor. Transforma homens notáveis em monstros, bandidos em heróis; introduz um novo personagem quando nosso enredo parecia ter encontrado um beco sem saída, ou torna querido aliado o mais incompatível dos conhecidos de longa data. Com uma cadência sem pressa de faquir, faz com que acabemos reavaliando nossa visão e nossa sentença sobre Michael Jackson, sobre Hitler, sobre Lutero, sobre Jesus, sobre Deus, sobre o vizinho do apartamento ao lado, sobre o amigo de infância, sobre nós mesmos.
E esse momento final de reavaliação ou descoberta diz respeito ao segundo recurso literário por excelência, aquele que explora o problema e as possibilidades da identidade. Todas as histórias são bailes de máscaras, girando de alguma forma ao redor da nossa ignorância e da eventual descoberta de quem realmente somos e de com quem realmente estamos falando. A questão da identidade, juntamente com a passagem do tempo, é engrenagem essencial de todas as histórias que a imaginação humana já concebeu ou – pior – experimentou.
De Chapeuzinho Vermelho (“Para que esses olhos tão grandes?”) a O Sexto Sentido (“Eu vejo pessoas mortas” “Quando? Nos seus sonhos?” “Não. O tempo todo”), o eixo mais fundamental de toda narrativa é a jornada de autodescoberta do protagonista e sua descoberta da natureza última do universo – sua identidade e a identidade do mundo – questões que com freqüência são resolvidas por uma mesma e formidável resposta.
A questão da identidade pode naturalmente ser explorada em múltiplos níveis. Em Agatha Christie, o jogo limita-se à descoberta da identidade do assassino; em A Conferência dos Pássaros, de Farid al-Din Attar, a busca é pela identidade da Divindade, e a resposta está em sua relação com o indivíduo. O problema pode ser ainda determinar qual é a identidade do benfeitor, qual é minha identidade em relação ao meu antagonista (Darth Vader para Luke Skywalker: “Eu sou seu pai”), ou qual se mostrará o caráter do herói diante da adversidade. A história existe, primordialmente, para definir quem -é o herói-
somos
em relação aos outros e quem os outros são em relação a ele nós.
Quando descobrir quem é Deus o homem saberá quem é e o que deve fazer.
Os livros sagrados de todas as culturas se propõem, cada um à sua maneira, a assinalar a verdadeira identidade do homem, ou seja, sua verdadeira relação com o mundo. A Bíblia escolhe fazê-lo pelo método lateral da narrativa: o pressuposto dos escritores bíblicos é que a identidade do homem ficará clara apenas mediante a revelação – isto é, o desmascaramento da identidade – de Deus no mundo real. Quando descobrir quem é Deus, é a tônica da narrativa bíblica, o homem saberá quem é e o que deve fazer (“Diga-me o seu nome”, exige Jacó do homem com quem está lutando na margem do ribeirão Jaboque. O homem fornece a Jacó uma nova identidade, Israel, – “aquele que luta com Deus” – revelando ao mesmo tempo a sua).
Mas sendo nós mesmos personagens dessa história em andamento, o enredo está longe de sossegar num desfecho. Ainda vemos tanto a nós mesmos quanto Deus “como que por um espelho” – isto é, ofuscados por vertiginosos incidentes dramáticos que não saberemos talvez interpretar e incessantemente despistados pelos truques baratos do roteirista. O baile de máscaras ainda não terminou, e a questão da nossa identidade e da identidade divina são mistérios pendentes à espera de um desenlace. O ensino de Jesus, em particular, fornece indícios de que na cena final o problema da identidade merecerá uma resposta incomum: “quem é o meu próximo?”; “quando o fizestes a qualquer um destes pequeninos, a mim o fizestes”; “quem vê a mim vê ao Pai” – e assim por diante.
“Você sabe com quem está falando?” talvez seja a última pergunta a receber uma resposta.
* * *
Todos os truques de Deus para falar conosco são literários, e resumem-se no fim das contas a dois: a passagem do tempo e os desencontros da identidade.
Perfeito emblema da utilização coordenada desses recursos está na história de José, filho de Jacó (Gênesis 37-47). Ao contrário de seus antepassados, que jantaram com Deus, passearam, lutaram e assinaram acordos com ele, José teve de encontrar Deus na face terrível, indistinta e fluida da História. Para falar com ele, Deus provoca-o com a questão da identidade – quem é realmente José? – enchendo-o de sonhos premonitórios que só farão verdadeiro sentido muito tempo depois. A narrativa em si é impulsionada pela mágica poderosa da passagem do tempo, que tudo permite: José é um pastorzinho mimado entre irmãos que o odeiam, depois mercadoria numa caravana de ismaelistas, depois ajudante de confiança do homem de quem é escravo, depois prisioneiro entre estrangeiros hostis, depois intérprete dos sonhos do faraó, depois seu braço direito, depois salvador da civilização, depois autoridade diante da qual dobram-se irmãos que o veneram sem saber, depois salvador de sua própria família.
É apenas ao final desse fluxo que fica definitivamente estabelecida a verdadeira identidade de José perante os outros e perante si mesmo. Para aumentar o impacto dessa revelação o roteirista faz com que no Egito, a que os filhos de Jacó vão como último recurso em busca de comida, o régio José reconheça seus irmãos, mas não seja reconhecido por eles. José, ao fim da sua jornada, sabe quem é e o que representa para os outros – conhece sua identidade1 – mas seus irmãos não sabem quem são e tampouco conhecem sua relação com quem estão falando. Magnânimo, José escolhe repartir sua nova identidade de forma a acolher, salvar e restaurar sua família. E finalmente, numa reviravolta adicional, José sabe reconhecer, nos incidentes aparentemente arbitrários que o levaram àquela posição, a identidade generosa e a mão oculta e redentora do próprio Deus: “Assim, não fostes vós que me enviastes para cá, e sim Deus, que me pôs por pai de Faraó, e senhor de toda a sua casa, e como governador em toda a terra do Egito. Deus me enviou adiante de vós, para conservar vossa sucessão na terra e para vos preservar a vida por um grande livramento” (Gênesis 45:8,7).
Cabe supor que Deus esteja falando incessantemente conosco, e esteja fazendo isso através dos velhos recursos literários da passagem do tempo e das máscaras da identidade. Não estamos naturalmente entendendo o que ele está querendo dizer, mas essa ignorância faz aparentemente parte integrante de todo roteiro; se tudo der certo, não seremos prejudicados demais por essa ignorância, nem será ela permanente.
Somos a narração em primeira pessoa de uma história que aguarda em tremente expectativa uma reviravolta. A passagem do tempo, entre os presentes de sua liberalidade, acabará talvez resolvendo o mistério da nossa identidade.
1 O Conde de Monte Cristo de Dumas é, naturalmente, uma reelaboração da história de José, dependendo dos mesmos recursos da passagem do tempo e recorrendo às mesmas máscaras de identidade. Quem é de fato Edmund Dantès: um marinheiro ingênuo de dezenove anos, um prisioneiro sem perspectivas ou um nobre rico mas definido pelos seus rancores? Diante de quem o Conde de Monte Cristo baixará a sua máscara?

quinta-feira, 26 de abril de 2012

O desenraizamento dos santos

Paulo Brabo 


Para ser profeta é preciso ser santo, e os santos verdadeiros são um terrível embaraço, fastio e enfado. A singularidade da sua postura não tem, por um lado, como não ser interpretada como presunção; por outro, não tem como não ser presunção. Sua lucidez, que poderia talvez fazer bem a seres consistentes como anjos ou demônios, é veneno mortal para quem a tem e para os que são a contragosto submetidos a ela. Não fomos feitos para vislumbrar a verdade; quanto mais sermos expostos diretamente a ela; quanto mais em nós mesmos. Deus nos livre da santidade: a verdade é um espelho que mata.

A fim de escapar de ser destruído pela presunção inerente à sua condição – aquilo que Paulo chama de “excelência das suas revelações” – o santo sente intuitivamente que os caminhos legítimos que lhe restam são a anulação e a autodepreciação ou o hermetismo. Ser digno da lucidez de Deus requerá constante patrulhamento interior, a fim de adiar a morte que essa lucidez exige e pressupõe. Deus oferece aos verdadeiros santos dois destinos, não ser nada ou não ser compreendido. Se tudo der certo, caberá ao santo o esquecimento; se der errado, a fama e a simultânea incompreensão. De uma maneira ou de outra o santo experimenta antecipadamente a aniquilação da frustração, e é nesse sentido indistinguível de Deus.

O verdadeiro santo é o que floresce em incessante agonia: gente miserável como Nietzsche, como Kierkegaard, como Fernando Pessoa, como Tolstói. Os méritos de santos radiantes, vitoriosos e incontornáveis, como Chesterton, são imediatamente cancelados em seu bom-mocismo e proselitismo.

“É NECESSÁRIO DESENRAIZAR-SE”.

Simone Weil (1909-1943) foi uma mulher insuportável, idealista, ativista, engajada, asceta, iluminada e francesa. E também uma santa. Para escândalo dos pais abastados, recusou-se aos cinco anos a comer açúcar, porque ouviu que os soldados no front estavam privados dele. Pela mesma razão abandonou a carreira confortável de professora e foi trabalhar durante a Depressão entre gente operária numa fábrica da Renault, recusando-se a comer mais do que a ração dos proletários e participando ativamente de todos os piquetes e greves com que acenavam as lutas de classe. Problemas de saúde obrigaram-na a deixar a fábrica, mas ele aproveitou a deixa para juntar-se à causa dos radicais republicanos na sangrenta Guerra Civil da Espanha, jurando ao mesmo tempo jamais usar a arma que lhe colocariam nas mãos.

Simone Weil entregou-se quase que casualmente ao cristianismo, através de uma antiquada experiência mística – no momento em que, atormentada por uma implacável enxaqueca e recitando um poema de George Herbert, ouvia um canto gregoriano na Abadia de Solesmes.

Weil havia experimentado a “união mística”, e jamais abandonaria depois disso o abraço de Jesus. Porém, santa como era (e certamente por essa razão), recusou até o fim todas as facilidades e respostas fáceis providas pelo cristianismo institucional. Simone Weil, que amava contradições e paradoxos e os mitos de todas as culturas, permaneceria até o fim uma santa secular.

Mais até mesmo do que Dietrich Bonhoeffer, Weil parece ter compreendido o tremendo distanciamento e alienação que uma era pós-religiosa exigiria de um louco que ousasse neste mundo louco perseguir a loucura de seguir Jesus. O novo santo, propuseram Weil e Bonhoeffer em vidas e vocabulários distintos, teria abrir mão do conforto de todos os rótulos, até mesmo do que lhe seria mais caro, o do próprio cristianismo.

Em seu prefácio a Waiting for God, Leslie A. Fiedler explica assim essa terrível posição:

Associar-se ao contexto de uma religião particular, sentia ela, teria por um lado exposto Weil ao que ela chamava de “patriotismo eclesiástico”, com a conseqüente cegueira para as falhas do seu próprio grupo e as virtudes dos outros; por outro, teria separado Weil da condição dos seres comuns aqui embaixo, que permanecemos todos “alienados, sem raízes, em exílio”. O mais terrível dos crimes é colaborar com o desenraizamento de outras pessoas num mundo já por si mesmo alienado; porém a maior das virtudes é desenraizar-se por amor ao próximo e a Deus. “É necessário desenraizar-se,” escreve Weil. “Corte a árvore, faça dela uma cruz e carregue-a para sempre”.

* * *

Nietzsche dizia que os cristãos de hoje, depois de dois mil anos de conforto, haviam se tornado incapazes de apreender o tremendo paradoxo que tinha sido, nos primeiros séculos da nossa era, conceber algo como “Deus na cruz” (talvez tenha sido por compaixão a essa gente que Nietzsche recriou o paradoxo com o seu conhecido “Deus morreu” – e ele acrescenta, desnecessariamente, com uma devoção de beata: “nós o matamos”).

Ler Simone Weil é deparar-se com os paradoxos do cristianismo em linguagem horrivelmente lúcida, sem maneirismos e sem disfarces. Nietzsche fingia crer que a moral cristã é impensável; Weil corrige essa generosidade, e esclarece que tudo no cristianismo é rigorosamente impensável e terrível e vertiginoso e paradoxal.

“PRECISÁVAMOS DA ENCARNAÇÃO PARA IMPEDIR QUE ESSA SUPERIORIDADE SE TORNASSE UM ESCÂNDALO”.

Um único exemplo deverá por enquanto bastar para emblemar o que quero dizer. Weil anota: “O sofrimento é superioridade do homem em relação Deus. Precisávamos da Encarnação para impedir que essa superioridade se tornasse um escândalo”.

O sofrimento é superioridade do homem em relação a Deus.

Weil cria (com os místicos medievais judeus, que talvez nunca tenha lido) que para dar espaço para o universo que tencionava criar Deus se recolhera, se diminuíra, retirara-se do universo para que o universo pudesse existir. As implicações dessa iniciativa eram, como em tudo que Deus coloca a mão, terríveis e impensáveis. Os paradoxos! Se Deus se recolheu, a soma de Deus mais o universo mais todas as suas criaturas é ainda menor do que Deus. Se o sofrimento é superioridade do homem em relação a Deus, somos deuses a quem Deus concedeu (paradoxalmente) um privilégio que ele mesmo nunca conheceu – ou não conhecera em plenitude – antes de Jesus. Semelhantemente, ele nos convida a que sejamos pequenos deuses que o imitem naquilo que ele, Deus, recusou-se a fazer: apegar-se à superioridade da sua condição.

Mais do que isso: apenas a renúncia, o altruísmo, a abstenção, são neste mundo atos verdadeiramente criativos – em que espelham o retraimento, o desenraizamento criativo de Deus. Nossa obsessão com a auto-afirmação, justamente ao contrário do que parecia sugerir Nietzsche, é que é essencialmente redundante e niilista.

* * *

Meu amigo Ricardo Gondim, depois de me consultar sobre que autor me interessava e eu não tinha ainda lido, mandou-me três livros de Weil de presente. Simone Weil, que teve poucos amigos, anotou certa vez no seu diário: “nunca busque a amizade… nunca se permita sequer sonhar com a amizade… a amizade é um milagre!”

Eu, que tenho sido constantemente interrompido, embriagado, inteiramente nocauteado e pejado pela bem-aventurança da amizade, não encontro o que dizer para contrariá-la.


quarta-feira, 25 de abril de 2012

Em louvor dos pecadores

Fonte: A Bacia das Almas

Em grande parte, depois de conviver por décadas com gente santa, só fui conhecer Jesus pessoalmente através dos pecadores.

Não fui encontrá-lo na igreja, onde insistíamos que ele morava e onde falávamos metade do tempo sobre ele. Na igreja encontrei meus amigos mais bem-intencionados, muito deles assustadoramente queridos e carentes, mas oprimidos como eu debaixo de um sistema fundamentado em medo e desejo. Por mais que eu simpatizasse com o calor da instituição e com o mérito das boas intenções, nada eu testemunhava ou vivia da satisfação inerente, a generosidade, a paixão e a terrível liberdade que os evangelhos atribuíam ao Filho do Homem. Cantávamos, chorávamos e nos abraçávamos debaixo do mesmo teto piedoso, mas ali não estava o espírito de Jesus.

Não encontrei-o nem me afastei dele na Federal, onde meus mentores evangélicos tinham alertado que eu encontraria amigos irresistivelmente devassos e correria o risco incessante de idéias sediciosas, construídos os dois para abalar minhas convicções. As idéias eram ralinhas e as companhias inofensivas, a grande maioria tão ou mais careta, casta e ultraconservadora quanto eu. Havia algum coleguismo e bons parceiros de truco, mas também não pouca competividade, intolerância e altivez (talvez tanto quanto na igreja), e o espírito de Jesus não estava ali.

Mas Deus teve misericórdia de mim, este santo, e permitiu que eu convivesse de perto com pecadores. Isso, em inúmeros sentidos importantes da palavra, me salvou.

Como eu suspeitava, os pecadores não se entregam como nós na igreja a pecados mesquinhos como a hipocrisia, a mentira e o orgulho; abrem eles mão desses amadorismos e tratam da coisa em si, da sem-vergonhice mais vital, sensorial e carnal – sexo, drogas e rock’n’roll.

Finalmente estava eu no mesmo recinto que pecadores de verdade, gente indecorosa, sensual e auto-indulgente; drogados, homossexuais, bêbados, libertinos, prostitutas, poetas; safados, depravados, corruptos, lascivos. Habituei-me ao doce perfume da maconha, visitei os mais variados mocós, vi carreiras de cocaína se armarem e desaparecerem; sentei-me ouvindo Janis Joplin numa sala que eu visitava pela primeira vez, olhando para um homem dormindo onde acabara de cair, enquanto um casal transava e curtia drogas no quarto ao lado e outros faziam churrasco lá atrás. Comprei camisinhas que não eram para mim. Ajudei a pagar um tolete quando o dinheiro faltou. Visitei bares gays porque estavam na moda e meus amigos sabiam por isso que lá seria mais fácil descolar uma pedra de fumo ou, paradoxalmente, uma garota.

É natural que fora uma cervejinha ou outra me mantive sóbrio e casto durante todo esse período – não que, naturalmente, fizesse diferença. Mantive-me um santo – um carola, amado ternamente por eles apesar disso – entre pecadores. Eu me sabia mais ou menos resistente às seduções da carne e talvez estivesse ainda sustentando a ilusão de que poderia “fazer diferença” no meio daquela pobre gente. Talvez estivesse procurando mais um motivo extravagante para me orgulhar, de ser capaz de manter minha integridade à prova de balas mesmo convivendo com os mais baixos e corrompidos. A esta altura, não sei dizer o que esperava.

Mas sei dizer o que não esperava: não esperava encontrar entre os pecadores, e pela primeira vez na vida, a terna experiência do espírito de Jesus.

Não em mim. Neles.

Posso garantir que até aquele momento eu só conhecia a postura de Jesus e dos primeiros cristãos de ouvir falar. Os evangelhos atribuem ao Filho do Homem tremendas paixão, vitalidade, generosidade e independência; o livro de Atos e as cartas falam de cristãos que “tinham tudo em comum” e “eram de um só coração”. Em seus momentos mais idealistas Jesus fala em amar os inimigos, dar a outra face, emprestar sem esperar receber de volta, oferecer um banquete a quem não tem como retribuir. Paulo descreve um mundo sem preconceito de sexo, raça ou classe social. João garante que Deus é amor, e que o amor abre mão de qualquer traço de temor.

Paradoxalmente, este mundo definido em termos positivos poucos cristãos chegam em qualquer medida a experimentar. Escolhemos nos definir não por essas qualidades afirmativas – aquilo que o Apóstolo chama de “fruto do Espírito” – mas pelo que é negativo e paralisante e opressor contra os outros e nós mesmos: a culpa, a mesquinhez, a repressão, a neurose, a negação, o niilismo. O mundo em que todos se aceitam e se amam, embora faça parte da nossa pregação nominal, nos é aterrorizante por natureza. Tudo na nossa postura batalha contra ele. A “gloriosa liberdade dos filhos de Deus” não nos interessa. Alguém me dê depressa um líder carismático e um rol muito claro de mandamentos – é só o que pedimos.

Entre os pecadores encontrei um universo livre da superficialidade de igreja e da irrelevância burguesa da faculdade. Aqui estava um mundo que escolhia se definir, na prática e não a partir de qualquer discurso ou demagogia, pela aceitação e pelo amor. Aqui estava gente que tinha tudo em comum, até mesmo – onde está, Mamom, a tua vitória? – o dinheiro. Gente que ignorava rótulos de classe, sexo e conta bancária para se tratar como gente no sentido mais fundamental da coisa. Gente que se recusava a ser manipulada pelo desejo e pelo temor, e fazia isso entregando-se a um e mandando às favas o outro.

A comunhão que experimentam, descobri, não tem limites; sua generosidade, que não espera recompensa que não o instante, não tem paralelo. Os pecadores abrem suas portas uns para os outros a qualquer momento do dia ou da noite; repartem sua droga, seu dinheiro, sua casa e seu pão sem qualquer trâmite ou transação, seja com um irmão importuno ou com o desconhecido em que acabam de tropeçar. Emprestam, terrivelmente, sem esperar receber de volta. Carregam quem precisam ser carregado, descolam um trampo para quem precisa, tiram a camisa para quem vomitou na roupa, emprestam a chave do carro para quem não tem onde fumar, providenciam o apartamento de alguém na praia para o que foi expulso de casa, repartem sem chiar ou cobrem o tanque de gasolina. Trabalham tanto para os outros quanto para si, acolhem com graça incondicional; são compassivos até para com os que não os toleram, longânimos com os que todos já decidiram ser melhor rejeitar. Convivem sem traumas com a consciência, apavorante para nós, de que não são melhores do que ninguém.

Entre os pecadores não transita apenas a legitimidade de quem recusa-se a ter o que esconder: rola, senhoras e senhores, um amor – e tão forte que lança fora todo o medo. São gente boa no sentido afirmativo da coisa. Gente sensualista, mas raras vezes desonesta. Auto-indulgente, mas sempre generosa. Pecadora, mas não proselitista. Matam-se, mas o que fazem pelos outros é só resgatar. Morrem, mas abraçados.

Não é difícil entender porque Jesus curtia tanto a companhia dos pecadores e não escondia seu orgulho em associar-se a eles. A integridade existe e a verdadeira comunhão não é uma impossibilidade: os pecadores legítimos não as desconhecem. Louvados sejam nas alturas os grandes pecadores, porque uma porção fundamental de Jesus sobrevive na Terra apenas através deles.

Arrependo-me, naturalmente, de não ter pecado tanto quanto devia com meus amigos pecadores. Eu, que não consigo viver nem de longe tão perto da inteireza de Jesus quanto eles, deveria ter lhes dado pelo menos essa satisfação.

* * *

Leia também:
O fariseu e o cobrador de impostos



terça-feira, 24 de abril de 2012

Repensar moldura


Ricardo Gondim

Ninguém vive fora de algum círculo. Quando escrevi o livro “Pensando Fora da Caixa” não sugeri o abandono de molduras. Não se pensa sem paradigmas. Propor anarquia intelectual é desatino. Nietzsche afirmou corretamente: “O nada nega a si mesmo”. Quem procura sair de formas busca mudar de lente ou de pedra de arranque. Não cogita cometer suicídio intelectual. Talvez tente criticar pressupostos; quem sabe, desobedecer bitola; com certeza, abrir algum cadeado.

Repensar moldura significa coragem de rir enquanto probos pensadores posam, com olhar compenetrado, de senhores da razão. Não há nada mais ridículo, e ao mesmo tempo engraçado, do que presenciar debate em que acadêmicos discutem a irrelevância do óbvio. Rubem Alves expressou seu desdém por essa moinha árida, que consome filósofos, teólogos e teóricos. Pensar nem sempre garante sentir. Como não desejava refletir o mundo como um espelho frio, disse: “É isso que me separa dos filósofos: sou um amante. Tenho um caso de amor com o universo…”. Para celebrar a vida é preciso esse namoro.

Repensar moldura significa não temer o mundo da sensibilidade. É preciso ousadia para chorar quando o riso se torna fácil e a alegria, banal. Na gargalhada dos medíocres, o pranto se torna virtude. Se galhofa expressar complacência, chegou a hora de lamentar. Compadecer, igual asofrer com, precisa migrar dos imperativos e virar privilégio.

Repensar moldura significa manter acesa a flama da esperança e em tempos cínicos, sonhar. Esperança se define como a teimosia de plantar uma árvore mesmo se não há mais idade para descansar à sua sombra.

Repensar moldura significa aprender a disciplina da prece. É fazer da contemplação o alimento de uma fé que zomba do pessimismo, acredita em outro mundo possível, pisa os grilhões do destino e profetiza um porvir, em que justiça e paz se beijam.

Repensar moldura significa escolher estrada menos trilhada. Quando a multidão preferir os píncaros, descer aos vales. Se todos acharem que lodaçais crescem, sacudir a lama e alçar o voo das águias.

Repensar moldura significa não ter medo de andar para trás. É desprezar o progresso, achincalhar o sucesso, voltar à idade menina de falar na língua do “P”, apaixonar-se perdidamente,  assombrar-se com a escuridão, ver o mundo grande, fechar os olhos ao grotesco e perceber anjos e fadas ao derredor.

Repensar moldura significa assumir-se. Canhotos não precisam envergonhar-se do canhotismo. Baixinhos não devem se sentir inadequados. Orientação sexual não define caráter. É revoltar-se com as etiquetas imbecis de uma cultura burguesa que parasitou em costumes franceses e, depois, emulou o pior dos Estados Unidos.

Repensar moldura significa desvencilhar-se de afirmações piegas, ridiculamente sentimentais. É preferir a franqueza áspera dos “sem-religião” ao invés da carolice desencarnada dos alienados e por fim, constatar que o ateísmo ético supera em muito a canalhice praticada em nome de Deus.

Soli Deo Gloria

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Dê-me um monoteísmo e moverei o mundo

Fonte: A Bacia das Almas

A forma da religião de um estado
é moldada a partir de sua forma de governo.
Aristóteles

Na competição dos deuses estatais com as religiões de mistério no mundo romano de dois mil anos atrás, o cristianismo entrou como contendente tardio e azarão inconteste. Tratava-se, considere, de uma facção impopular de uma religião que já era por si mesma bastante impopular, o judaísmo. Que esse partido controverso tenha se tornado em pouco mais de 300 anos a religião oficial do mais ambicioso e bem-sucedido império do planeta e da história – e que duraria depois disso mais mil anos – é mistério com variáveis demais para se deslindar.

Verdade é que quando pediu a seus discípulos que contra qualquer oposição anunciassem sua boa nova “até os confins da terra”, Jesus parecia não estar prevendo que em três séculos essa pregação contaria com patrocínio dos cofres do Império, o aval nominal do Imperador e a proteção dos mesmos exércitos que o pregaram na cruz.

É natural que, como toda religião de estado, o cristianismo (tendo perdido qualquer relação mais do que nominal com o ensino de Jesus) foi abraçado como ferramenta política. Dito de outra forma, a nova doutrina não teria sido abraçada se não se mostrasse de alguma forma vantajosa para os seus patrocinadores.

A questão está em determinar o que no cristianismo fez com que ele parecesse politicamente mais atraente para o Império do que os deuses do Olimpo ou as exuberantes religiões de mistério.

Parte importante da resposta está na própria noção de império. O Império Romano, instituído meras três décadas antes de Cristo, era ele mesmo uma novidade quando a o cristianismo despontou como opção no mercado espiritual. Por cinco séculos de definição Roma tinha sido a sede de uma enorme e bem-sucedida República parlamentar, governada democraticamente por um senado. A noção de monarquia, embora viesse ganhando adeptos depois da trajetória brilhante de Alexandre, o Grande, era considerada importação indesejável do oriente; os romanos viam a si mesmos como filhos da democracia, e os proponentes do jogo do Império tiveram de recorrer a todo tipo de artifício a fim de legitimizar a sua posição.

“A ASCENSÃO DO IMPÉRIO PROMOVEU O CRESCIMENTO DO MONOTEÍSMO DEVIDO À RELAÇÃO ÍNTIMA ENTRE A FORMA DE RELIGIÃO E A FORMA DE GOVERNO”.

A primeira providência, temporária, foi associar a nova forma de governo à velha religião. “Em 13 a.C. Augusto assumiu o título dePontifex Maximus, sumo-pontífice, o que concedeu a ele uma aura de santidade e provou-se tão eficaz que os imperadores subseqüentes, tanto pagãos quanto cristãos, o retiveram”, conta S. Angus em sua obra sobre as religiões de mistério.

A segunda providência, definitiva, foi abandonar o politeísmo parlamentar dos deuses do Olimpo e escolher uma religião que refletisse adequadamente a nova forma de governo. Embora outras religiões de mistério estivessem fundamentadas no monoteísmo, o cristianismo acabou sendo a escolha da vez, talvez pela vantagem adicional da associação: da mesma forma que um homem, Jesus, representara legitimamente Deus na terra, o mesmo se poderia esperar do Pontifex Maximus.

Estava feita a estercada: o cristianismo acabou dando certo da forma errada. Jesus alcançou a glória que repudiara no seu ensino e a associação política de que fugira por toda sua vida.

Explica Angus:

“A ascensão do império promoveu o crescimento do monoteísmo devido à relação íntima entre a forma de religião e a forma de governo. Um governante supremo sobre a terra tornava natural e inevitável que os homens cressem num único Ser Supremo no universo”.

Dê-me um monoteísmo e moverei o mundo – lição da história que nenhum político posterior deu-se ao luxo de esquecer.

* * *

Pela mesma razão, aprenda comigo, o capitalismo é a incontestada religião estatal dos nossos dias: não teria sido abraçada se não se mostrasse vantajosa para os seus patrocinadores.

Não é injusto, portanto, que o ponto culminante da produção e do consumo anual girem ao redor do aniversário de Cristo. Não é injusto que o capitalismo se aproprie das ruínas de São Nicolau para erigir sobre elas o altar de Papai Noel. Os símbolos da velha religião são sempre utilizados para legitimar a nova, e é o novo monoteísmo que move o mundo.

Não saia de casa sem ele.


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A monarquia de Deus
As Variedades da Experiência Capitalista
O culto da performance



domingo, 22 de abril de 2012

Porque parti

Ricardo Gondim

Depois dos enxovalhos, decepções e constrangimentos, resolvi partir. Fiz consciente. Redigi um texto em que me despedia do convívio do Movimento Evangélico. Eu já não suportava o arrocho que segmentos impunham sobre mim. Tudo o que eu disse por alguns anos ficou sob suspeita. Eu precisava respirar. Sabedor de que não conseguiria satisfazer as expectativas dos guardiões do templo, pedi licença.

Depois de tantos escarros, renunciei. Notei que a instituição que me servia de referencial teológico vinha se transformando no sepulcro caiado descrito pelos Evangelhos. Restou-me dizer chega por não aguentar mais.

Eu havia expressado minha exaustão antes. O sistema religioso que me abrigou se esboroava. Notei que ele me levava junto. Falei de fadiga como denúncia. Alguns interpretaram como fraqueza. Se era fraqueza, foi proveitosa, pois despertava para uma realidade: o Movimento Evangélico vinha se transformando em cabide de oportunistas; permitindo que incompetentes, desajustados emocionais e – por que não dizer?  – vigaristas, se escorassem nele.

Não há sentido em gastar os poucos dias que me sobram em remendar panos rotos. Para que continuar no mesmo arraial de pessoas que me desconsideram e que eu desconsidero? Deixei de tolerar os bons modos de moralistas (sexuais) que não se incomodam em transformar a casa de Deus em feira-livre.

Verdade, desisti. Desisti, porém, de apenas um segmento religioso. Que eu já não trato como lídimo representante do caminho do Nazareno. Larguei o esforço de recauchutar um movimento carcomido de farisaísmo.

Mas saio assustado. A fúria dos severos defensores da reta doutrina, confesso, me surpreendeu. Há alguns anos experimento o peso do rancor religioso. Nada mais perigoso do que um crente assustado; e nada que assuste mais um crente do que a transgressão da ortodoxia. Amigos me voltaram as costas. Estranhos se intrometeram em minha vida particular. Fui traído. Antigas invejas se fantasiaram de zelo pela verdade, e parceiros se transformaram em inimigos. Senti o escarro do desdém.

Embora tenha repetido, não me deram atenção. Eu nunca me atrevi solucionar os paradoxos filosóficos ou os mistérios teológicos que se arrastam há séculos. Não sou ingênuo: as Esfinges modernas, iguais às míticas, devoram o fígado de incautos que se imaginam donos da verdade.

Meu adeus foi ético. Passei a evitar a parceria de gente a quem eu jamais confiaria a carteira. Eu tinha que partir. Se critérios éticos não bastarem para definir o acampamento onde cravamos nossa tenda, há algo muito errado em nossa credibilidade. Nervoso com o carreirismo de gente que não hesita em vender a alma, preferi caminhar por outra estrada.

Rejeito a bitola que qualquer grupo -  fundamentalista ou não – chancelou e recomendou. Não aceito que tradição, escola ou cânone, cerceiem a minha capacidade de arrazoar. Rechaço obediência servil. Odeio timidez intelectual. Aliás, a única chancelaria que admito é da consciência. Creio que posso ser movido pelo mesmo Espírito que inspirou, e capacitou, homens e mulheres no passado. Erros teológicos, enquanto não produzirem intolerância, ódio ou preconceito, tenho certeza, estão perdoados.

Quero reaprender a viver. Vou buscar a trilha onde menos homens e mulheres andam de dedo em riste. Anseio por fazer-me amigo de gente espirituosa, leve, risonha, que sabe desafogar a alma.

Por condescendência, alguém disse que não sou teólogo, apenas poeta.  Apesar de não me achar digno de ser chamado poeta, sorri de felicidade. Que honra! Poetas não acendem fogueira. Tenho certeza que Miguel de Serveto gostaria de ver-se na companhia de trovadores.

Pretendo amar e apreciar, sem extravagância, as coisas mínimas: o tirocínio dos meninos, o desabrochar da paixão na menina em flor, a conversa de bons amigos. E no final do dia, ao rever as horas, saber celebrar a paixão de simplesmente existir.

Saio para instruir-me na adoração. Necessito transformar genuflexão em serviço. Quero descer do alto dos meus privilégios e estender a mão ao mortiço que jaz em alguma estrada poeirenta. Desisti de uma espiritualidade que se contenta em implorar favores à Divindade. Em minha partida, acalento o desejo de encarnar Deus. E assim dizer: não vivi em vão.

Soli Deo Gloria
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