Paulo Brabo - Bacia das Almas
É o paradoxo das nossas vidas. Nunca tivemos  tanta liberdade para moldar nossas vida do modo como queremos, mas nunca  estivemos sujeitos a tantas pressões nos dizendo o que é desejável.
David Rowan, The Times, 6 de setembro de 2003
 
 
Parece estar suficientemente demonstrado que, quando o ocidente  abandonou a noção (antes bastante popular) de que a pobreza é uma  virtude, foi com a ardente aprovação da Reforma Protestante – e  provavelmente por direta inspiração dela.  O que ainda não sabemos avaliar são todos os resultados que essa  mudança de paradigma lançou futuro adentro. Algumas dessas flechas estão  apenas começando a nos atingir; outras já nos atravessaram as pernas e o  coração. 
 
Mesmo antes da era da mecanização, alguns observadores, avaliando  essa formidável transição, olharam com nostalgia para o passado e com  temor para o futuro. Hoje em dia discute-se se um mundo que não acredita  em Deus irá manter-se abraçado à ética; naquela época discutia-se se um  mundo que acredita na ambição e no lucro pode alegar estar abraçado a  Deus.
 
Quando a revolução industrial era menos do que uma promessa e a era  da informação menos do que um sonho, esses sujeitos enxergavam o que  hoje deveria ser visto como lugar-comum: que a ganância, liberta de suas  cadeias ancestrais e alimentada pela tecnologia, poderia se mostrar a  chave da destruição do mundo e da mais fatal cegueira da história da  humanidade. 
 
Em seu A Vida de Fausto, de 1791, Friedrich Maximilian Klinger coloca na boca de Satã algumas dessas profecias:   
Em breve, o perigoso veneno da sabedoria e da ciência  contaminará a todos! Sua fantasia inflamar-se-á para criar milhares de  novas necessidades. Loucura, dúvida e intranquilidade e novas  necessidades alastrar-se-ão, e eu duvido que meu terrível reino possa  abarcar todos aqueles que serão contaminados por esse veneno sedutor.
 
 
Uma prolongada associação de homens diminui suas  inclinações para a sua fé e para sua raça, e habitua-os a aplicar seus  pensamentos e esforços à tarefa de adquirir conforto material. As  necessidades, bem como as artes de satisfazê-las, tornam-se mais  complexas; o ambicioso requer tanto tempo para conhecer e ganhar  habilidade nessas artes que não tem mais tempo para a silenciosa reunião  de ideias e a atenta consideração do mundo interior. Se um conflito  surge, seu interesse presente lhe parece representar mais; desse modo  fenecem as belas flores de sua juventude, da fé e do amor, dando lugar  aos frutos amargos do conhecimento e da possessão. 
 
Acho especialmente relevante e lúcido que esses autores tenham  entendido, de seu posto há duzentos anos, de onde não tinham como saber o  que hoje sabemos, que o segredo da vitória final da ganância residiria na manipulação das necessidades.
 
 
Novalis enxergou que necessidades mais complexas requerem mais  recursos e mais tempos para serem satisfeitas. O mero tempo necessário  para aprendermos a nos tornar “produtivos” e a nos mantermos assim pode  estar sequestrando partes muito legítimas da existência – porções e  pausas de vida que perdemos inteiramente de vista enquanto corremos  atrás do vento. Antes dos engarrafamentos e dos shopping centers,  Novalis entreviu que a tarefa de nos tornarmos consumidores eficazes  pode estar nos subtraindo o privilégio e a tarefa mais essencial de  viver.
 
Klinger olhou ainda mais longe, e na mesma página diz duas vezes que a  chave da manipulação e da ruína da humanidade residirá na “criação de  necessidades”. Antes da televisão de tela plana e do iPad, ele entendeu  que o homem abraçará os pés do diabo para não ter de resistir ao apelo  de “novas necessidades”.
 
Essas profecias falam de um momento no futuro em que os homens  finalmente dominariam a arte de transformar o que é supérfluo em  necessidade. Essa hora, naturalmente, já chegou. Mais do que Novalis  jamais poderia sonhar, aprendemos a validar nossa humanidade através  daquilo que consumimos. E, numa vertigem que levaria Klinger à loucura, a  subsistência dos sistemas do mundo absolutamente depende da criação e  da divulgação insaciável de novas necessidades. 
 
Até mais ou menos recentemente, a durabilidade de um produto era  encarada como valor: os produtos eram feitos e comprados para durar.  Esse paradigma, no entanto, não funcionava a serviço de um capitalismo  que depende do consumo sem pausa para sobreviver. As indústrias  aprenderam não apenas a lançar novos produtos (coisa que fizeram desde o  começo), mas a encaixá-los num rigoroso programa de obsolescência  programada. Mesmo quando compradas para durar, as coisas passaram a ser  feitas para não durar. Hoje em dia um produto apresenta falhas  técnicas muito antes do que já foi considerado aceitável, e o custo do  conserto e da manutenção se mostra muitas vezes maior do que o custo da  aquisição de um produto novo. O verdadeiramente notável nessa equação é  que aprendemos a deixar de ficar indignados com isso, devidamente  aplacados pelas vantagens anunciadas do novo produto-necessidade.
 
O último estágio da transição de valor do durável para o instantâneo  ocorreu quando as indústrias deixaram de ocultar o seu projeto de  obsolescência programada e passaram a anunciá-lo aos quatro ventos como  evidência de compromisso com a inovação. Hoje não há quem compre um  equipamento eletrônico desconhecendo que daqui a um dia ou dois, talvez  antes, um equipamento com mais botões estará ocupando o mesmo lugar na  estante. Não há quem compre um iPhone 4 sem saber que este ano ainda  deve sair o 5. A perspectiva da obsolescência deixou de ser um problema e  passou a ser um componente legítimo do produto, um de seus mais  irresistíveis atrativos.
 
E, como diz a piada, com esses dez por cento nós vamos vivendo. Os  profetas continuam falando e sendo solenemente ignorados, porque  ouvi-los seria morder a mão que nos alimenta – ou mais propriamente,  seria deixar de morder a mão que estamos consumindo: a nossa própria.  Ivan Illich explica além da dúvida  que nos tornamos tão habituados às soluções da tecnologia que ficamos  cegos ao fato de que estamos sendo aprisionados por elas. As soluções  que deveriam tornar a vida mais fácil, bem como a obediente satisfação  das necessidades novas e complexas que nos vende o sistema, pouco  fizeram além de criar novos problemas, e crônicos. Entre eles estão as  chamadas “doenças da opulência”, invenções do nosso sucesso em canalizar  o nosso modo de vida de modo a perseguir a prosperidade – coisas como  obesidade, depressão, ansiedade, hipertensão e diabetes. Essas novas  doenças aplacamos com novos remédios, é claro, porque seria pedir demais  que nos rebaixássemos a mudar de vida. Para que o sistema continue  rodando, nada nem ninguém – nem nossa própria qualidade de vida nem o  esgotamento dos recursos do mundo – deve ser considerado motivo legítimo  para atrasarmos o relógio e voltarmos ao ritmo das meras necessidades,  as antigas.  
Onde o supérfluo é visto como necessário, o próprio conceito de  necessidade é sequestrado e esvaziado para sempre. Havia uma coisa  importante que era necessário eu dizer para concluir, mas dizê-lo neste  mundo não faz sentido.