sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Deus fala

Deus sempre falou com a humanidade. Falou na história, pela história. E acredito que Ele ainda fala.

Eu o ouço. Não se espante, não fiquei louco. O que aconteceu é que passei a ouvir com mais atenção. Treinei meus ouvidos. Ajustei minha interpretação. Procurei o caminho da sensibilidade. Da humanização. Do amor.

O ouço na risada do bebê que brinca com a comida; na gritaria das crianças que correm no parque; às vezes sua voz tem tom feminino, de mãe aconselhando filho, outras, tom masculino, de pai fazendo piada pra ver a filha sorrir.

O escuto no lamento diante do acidente; no silêncio desesperado do marido que perde a esposa prematuramente; no grito agudo da mulher que é abusada; no choro de fome das crianças do sertão; no sussurro envergonhado de quem é excluído; nas palavras desamparadas de quem não tem onde dormir ou o que vestir; muitas vezes sua voz é rouca por causa de sua garganta sedenta.

Ouço Deus nas palavras das hospitaleiras que recebem pessoas em casa, servem comida à vontade e cedem a cama; ouço Deus pela voz do professor que luta para educar; nos lábios de quem reage contra a injustiça; nas palavras apressadas do médico para que a vida não se vá; sua voz é nítida e forte saída da boca do bombeiro que orienta buscas no morro soterrado.

Ouço sua angustia diante das absurdas injustiças sociais, de toda opressão econômica e política; ouço seu protesto na voz de quem se sente palhaço votando; sua voz é fraca nos lábios de quem foi humilhado, mas forte quando emitida por quem quer dignidade.

Já ouvi sua voz serena conceder paz e perdão ao errante; já escutei suas palavras misericordiosas ditas ao culpado; ouço-o nas palavras de quem não perde a esperança diante do caos; na confiança de quem acredita no amor; no trincar de dentes do menino soldado que não desisti da vida.

Sua voz é afinada no canto da faxineira que levanta de madrugada para sustentar os filhos; é empoeirada no pedreiro que não almoça para poder jantar; é molhada na boca da lavadeira que alimenta o pai doente; é amarga na boca de quem tem amor ausente.

Voz de justiça nos lábios do juiz íntegro, do advogado responsável; voz de igualdade social emitida pelo economista banqueiro dos pobres; voz profética na boca do padre que denuncia a indiferença, na boca o pastor que aponta a corrupção.

Ouço-o na beleza das palavras do poeta; na música do compositor apaixonado; nas mãos de instrumentistas habilidosos; nas páginas dos escritores vislumbrados com o mundo; na arte de quem reverencia a vida humana.

Sua voz nunca tem tom de poder, de soberania, de imposição. Ao contrário, o ouço na fraqueza do nazareno crucificado.

Deus se revela pela Palavra. Palavra encarnada, jogada na vida, mundana. Por isso é possível ouvi-lo.

A questão, então, não é se Deus fala; é quem está disposto a ouvi-lo.

Lucas Lujan

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Desigualdade social no Brasil

O Brasil é rico mas não é justo.
Frei Betto


Frei Betto *

Adital -
Relatório da ONU (Pnud), divulgado em julho, aponta o Brasil como o terceiro pior índice de desigualdade no mundo. Quanto à distância entre pobres e ricos, nosso país empata com o Equador e só fica atrás de Bolívia, Haiti, Madagáscar, Camarões, Tailândia e África do Sul.

Aqui temos uma das piores distribuições de renda do planeta. Entre os 15 países com maior diferença entre ricos e pobres, 10 se encontram na América Latina e Caribe. Mulheres (que recebem salários menores que os homens), negros e indígenas são os mais afetados pela desigualdade social. No Brasil, apenas 5,1% dos brancos sobrevivem com o equivalente a 30 dólares por mês (cerca de R$ 54) O percentual sobe para 10,6% em relação a índios e negros.

Na América Latina, há menos desigualdade na Costa Rica, Argentina, Venezuela e Uruguai. A ONU aponta como principais causas da disparidade social a falta de acesso à educação, a política fiscal injusta, os baixos salários e a dificuldade de dispor de serviços básicos, como saúde, saneamento e transporte.

É verdade que nos últimos dez anos o governo brasileiro investiu na redução da miséria. Nem por isso se conseguiu evitar que a desigualdade se propague entre as futuras gerações. Segundo a ONU, 58% da população brasileira mantém o mesmo perfil social de pobreza entre duas gerações. No Canadá e países escandinavos este índice é de 19%.

O que permite a redução da desigualdade é, em especial, o acesso à educação de qualidade. No Brasil, em cada grupo de 100 habitantes, apenas 9 possuem diploma universitário. Basta dizer que, a cada ano, 130 mil jovens, em todo o Brasil, ingressam nos cursos de engenharia. Sobram 50 mil vagas... E apenas 30 mil chegam a se formar. Os demais desistem por falta de capacidade para prosseguir os estudos, de recursos para pagar a mensalidade ou necessidade de abandonar o curso para garantir um lugar no mercado de trabalho.

Nas eleições deste ano votarão 135 milhões de brasileiros. Dos quais, 53% não terminaram o ensino fundamental. Que futuro terá este país se a sangria da desescolaridade não for estancada?

Há, sim, melhoras em nosso país. Entre 2001 e 2008, a renda dos 10% mais pobres cresceu seis vezes mais rapidamente que a dos 10% mais ricos. A dos ricos cresceu 11,2%; a dos pobres, 72%. No entanto, há 25 anos, de acordo com dados do IPEA, este índice não muda: metade da renda total do Brasil está em mãos dos 10% mais ricos do país. E os 50% mais pobres dividem entre si apenas 10% da riqueza nacional.

Para operar uma drástica redução na desigualdade imperante em nosso país é urgente promover a reforma agrária e multiplicar os mecanismos de transferência de renda, como a Previdência Social. Hoje, 81,2 milhões de brasileiros são beneficiados pelo sistema previdenciário, que promove de fato distribuição de renda.

Mais da metade da população do Brasil detém menos de 3% das propriedades rurais. E apenas 46 mil proprietários são donos de metade das terras. Nossa estrutura fundiária é a mesma desde o Brasil império! E quem dá emprego no campo não é o latifúndio nem o agronegócio, é a agricultura familiar, que ocupa apenas 24% das terras mas emprega 75% dos trabalhadores rurais.

Hoje, os programas de transferência de renda do governo - incluindo assistência social, Bolsa Família e aposentadorias - representam 20% do total da renda das famílias brasileiras. Em 2008, 18,7 milhões de pessoas viviam com menos de π do salário mínimo. Se não fossem as políticas de transferência, seriam 40,5 milhões. Isso significa que, nesses últimos anos, o governo Lula tirou da miséria 21,8 milhões de pessoas. Em 1978, apenas 8,3% das famílias brasileiras recebiam transferência de renda. Em 2008 eram 58,3%.

É uma falácia dizer que, ao promover transferência de renda, o governo está "sustentando vagabundos". O governo sustenta vagabundos quando não pune os corruptos, o nepotismo, as licitações fajutas, a malversação de dinheiro público. Transferir renda aos mais pobres é dever, em especial num país em que o governo irriga o mercado financeiro engordando a fortuna dos especuladores que nada produzem. A questão reside em ensinar a pescar, em vez de dar o peixe. Entenda-se: encontrar a porta de saída do Bolsa Família.

Todas as pesquisas comprovam que os mais pobres, ao obterem um pouco mais de renda, investem em qualidade de vida, como saúde, educação e moradia.

O Brasil é rico, mas não é justo.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O colapso do Movimento Evangélico

Ricardo Gondim

Dois pastores paulistas se fantasiam de Fred e Barney. Isso mesmo, fantasiados de Flintstone, entre gracejos ridículos, acreditam que estão sendo "usados por Deus para salvar almas". Na rádio, um apóstolo ordena que tragam todos os defuntos daquele dia, pois ele sente que Deus o "ungiu para ressuscitar mortos".

Os jornais denunciam dois políticos de Minas Gerais, "eleitos por suas denominações para representar os interesses dos crentes", como suspeitos de assassinato. O rosário se alonga: oração para abençoar dinheiro de corrupção; prisão nos Estados Unidos por contrabando de dinheiro, flagrante de missionários por tráfico de armas; conivência de pastores cariocas com chefões da cocaína .

Fica claro para qualquer leigo: O movimento Evangélico brasileiro se esboroa. O processo de falência, agudo, causa vexame. Alguns já nem identificam os evangélicos como protestantes. As pilastras que alicerçaram o protestantismo vêm sendo sistematicamente abaladas pelo segmento conhecido como neopentecostal. Como um trator de esteiras, o neopentecostalismo cresce passa por cima da história, descarta tradições e liturgias e se reinventa dentro das lógicas do mercado. É um novo fenômeno religioso.

É possível, sim, separá-lo como uma nova tendência. Sobram razões para afirmar-se que o neopentecostalismo deixou de ser protestante ou até mesmo evangélico.É uma nova religião. Uma religião simplória na resposta aos problemas nacionais, supersticiosa na prática espiritual, obscurantista na concepção de mundo, imediatista nas promessas irreais e guetoizada em seu diálogo cultural.

Mas a influência do neopentecostalismo já transbordou para o "mainstream" prostestante. O neopentecostalismo fermentou as igrejas consideradas históricas. Elas também se vêem obrigadas a explicar quase dominicalmente se aderiram ou não aos conceito mágicos das preces. Recentemente, uma igreja batista tradicional promoveu uma "Maratona de Oração pela Salvação de Filhos Desviados".

Pentecostais clássicos, como a Assembléia de Deus, estão tão saturados pela teologia neopentecostal que pastores, inadvertidamente, repetem jargões e prometem que a vida de um verdadeiro crente fica protegida dentro de engrenagens de causa-e-efeito. Os "ungidos" afirmam que sabem fazer "fluir as bênçãos de Deus". É comum ouvir de pregadores pentecostais que vão ensinar a "oração que move o braço de Deus”.

O Movimento Evangélico implode. Sua implosão é visceral. Distanciou-se de dois alicerces cristãos básicos, graça e fé. Ao afastar-se destes dois alicerces fundamentais do cristianismo, permitiu que se abrisse essa fenda histórica com a tradição apostólica.

1. A teologia da Graça

Desde a Reforma, protestantes e católicos passaram a trabalhar a Graça como pedra de arranque de um novo cristianismo. O texto bíblico, “o justo viverá da fé”, acendeu o rastilho de pólvora que alterou a cosmovisão herdada da Idade Média. A Graça impulsionou o cristianismo para tempos mais leves. Foi a Graça que acabou com a lógica retributiva que mostrava Deus como um bedel a exigir penitência. Devido a Graça entendeu-se que a sua ira não precisa ser contida. O cristianismo medieval fora infectado por um paganismo pessimista e, por isso, sobravam espertalhões vendendo relíquias e objetos milagrosos que, segundo a pregação, “ garantiam salvação e abriam as janelas da bênção celestial”.

Lutero, um monge agostiniano, portanto católico, percebeu que o amor de Deus não podia ser provocado por rito, prece, pagamento ou penitência. Graça, para Lutero, significava a iniciativa de Deus, constante, unilateral e gratuita, de permanecer simpático com a humanidade. Lutero intuiu que Deus não permanecia de braços cruzados, cenho franzido, à espera de que homens e mulheres o motivassem a amar. O monge escancarou: as indulgências eram um embuste. Assim, Lutero solapava o poder da igreja que se autoproclamava gerente dos favores divinos.

Passados tantos séculos, o movimento neopentecostal, responsável pelas maiores fatias de crescimento entre evangélicos, abandonou a pregação da Graça. (É preciso ressaltar, de passagem, que o conceito da Graça pode até constar em compêndios teológicos, mas não significa quase nada no dia-a-dia dos sujeitos religiosos).

Os neopentecostais retrocederam ao catolicismo medieval. É pre-moderna a religiosidade que estimula valer-se de amuletos “como ponto de contato para a fé”; fazerem-se votos financeiros para “abrir as portras do céu”; “pagar o preço” para alcançar as promessas de Deus. Desse modo, a magia espiritual da Idade Média se disfarçou de piedade. A prática da maioria dos crentes hoje se concentra em aprender a controlar o mundo sobrenatural. Qual o objetivo? Alcançar prosperidade ou resolver problemas existenciais.

2. A compreensão da Fé

“A Piedade Pervertida” (Grapho Editores) de Ricardo Quadros Gouvêa é um trabalho primoroso que explica a influência do fundamentalismo entre evangélicos.

“O louvorzão, assim como as vigílias e as reuniões de oração, e até mesmo o mais simples culto de domingo, muitas vezes não passam de um tipo de superstição que beira a feitiçaria, uma vez que ele é realizado com o intuito de ‘forçar’ uma ação benévola da parte de Deus, como se o culto e o louvor fossem um ‘sacrifício’, como os antigos sacrifícios pagãos. Neste caso, não temos mais liturgias, mas sim teurgias, nas quais procura-se manipular o poder de Deus” (p.28).

Ora, enquanto fé permanecer como uma “alavanca que move os céus”, as liturgias continuarão centradas na capacidade de tornar a oração mais eficaz. Antes dos neopentecostais, o Movimento Evangélico já se distanciara dos Místicos históricos que praticavam a oração com um exercício de contemplação e não como ferramenta de como tornar Deus mais útil.

Fé não é uma força que se projeta na direção do Eterno. Fé não desata os nós que impedem bênçãos. Fé é coragem de enfrentar a vida sem qualquer favor especial. Fé é confiança de que os valores de Cristo são suficientes no enfrentamento das contingências existenciais. Fé aposta no seguimento de Cristo; seguir a Cristo é um projeto de vida fascinante.

O neopentecostalismo ganhou visibilidade midiática, alastrou-se nas camadas populares e se tornou um movimento de massa. Por mais que os evangélicos conservadores não admitam, o neopentecostalismo passou a ser matriz de uma nova maneira de conceber as relações com o Divino.

A alternativa para o rolo compressor do neopentecostalismo só acontecerá quando houver coragem de romper com dogmatismos e com os anseios de resolver os problemas da vida pela magia.

O caminho parece longo, mas uma tênue luz já desponta no horizonte, e isso é animador.
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