quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Tenho medo do Julio Severo

Há uns poucos anos tive contato com um texto de Julio Severo. Não sabia quem era, como ainda não sei exatamente. Demonstra ser um blogueiro ultraconservador que se tornou conhecido de certo público por suas posturas em assuntos políticos, sociais e religiosos, tratando de temas como o aborto, a eutanásia, o homossexualismo, as esquerdas e a educação sexual. Seu blog é recheado de textos bem escritos, que, de algum modo, cumprem o importante papel de fornecer uma alternativa ao pensamento chamado "progressista", que, na verdade, alberga a defesa de coisas indefensáveis pela Igreja.

Todavia, mesmo sendo eu uma pessoa que pode ser caracterizada como conservadora, Julio Severo me assusta. Eu já considerava muito fortes os seus posicionamentos, para não dizer "radicais". Tudo bem: sou contra o aborto, contra o homossexualismo, contra a eutanásia, contra boa parte das bandeiras da esquerda, contra a educação sexual baseada em princípios mundanos. Mas o cúmulo do absurdo foi a afirmação de Julio Severo no sentido de que o terremoto no Haiti foi uma resposta de Deus à prática do vodu naquele país, com o acréscimo de que, com o apoio do governo às religiões afrobrasileiras, poderiam ocorrer terremotos também no Brasil.

O próprio Julio Severo cita o Cônsul-Geral do Haiti em São Paulo, George Samuel Antoine, com o qual concorda: para eles, africano é amaldiçoado porque mexe com macumba. Andam juntos a Pat Robertson, para quem os haitianos estão pagando por um pacto supostamente feito com o Diabo em prol da Independência, que aconteceria em 1804.

Foi estarrecedor deparar com um texto dessa natureza, que chegou ao meu conhecimento por meio do GENIZAH VIRTUAL - este, sim, um blog que tenho visitado. Julio Severo assusta quando diz que um povo inteiro pode ser alvo do juízo de Deus porque em seu território se pratica o vodu.
Pergunto a Julio Severo (e fiz algumas perguntas em comentário endereçado ao seu blog, mas ainda não sei se foram publicadas):

a) por que Deus não teria livrado os justos que moravam no Haiti, como livrou a família de Ló ao destruir Sodoma e Gomorra?

b) macumba, vodu e santeria são piores que hipocrisia, mentira, maledicência, engano, falso testemunho, práticas pecaminosas conhecidas em nosso meio?

c) quem autorizou o Sr. Julio Severo a fazer declarações tão pesadas? Vive ele os tempos do Antigo Testamento? É um profeta de Deus? Quem lhe deu essa autoridade? De onde lhe vem essa "revelação"?

d) esqueceu ele que a França católica abandonou o Haiti à própria sorte depois de tê-lo dominado por tanto tempo? Que os Estados Unidos protestantes ocuparam o Haiti nos primeiros anos do Séc. XX? Que a ONU aprovou o embargo econômico de 1991? Que, enfim, a comunidade internacional nunca olhou para o Haiti como deveria?

Antes de fazer afirmações como a que fez quanto ao Haiti, o Sr. Julio Severo deveria estudar minuciosamente as causas históricas, sociológicas, econômicas e políticas que levaram aquele país a se tornar um dos mais pobres do mundo - algo que potencializa os danos de uma catástrofe natural. Escrever algo tão sério demanda estudo mais sério, além de redobrada cautela, pois se trata da dor alheia, da miséria alheia, da tragédia alheia.

Não escrevo isso para impingir culpa em ninguém. Apenas apresento aqui minha extrema preocupação com um blogueiro que, embora cumpra um papel importante de fomentar o debate público de temas atuais como os acima citados, numa ótica conservadora, fora do consenso "progressista", acaba se mostrando um baluarte do que pode haver de pior na direita cristã - e olha que a direita cristã tem coisas bem melhores para apresentar.

Posted 21st January 2010 by Alex Esteves da Rocha Sousa

A sacanagem messiânica

Consiste em que, se um dia alguém, para ajudar um faminto, sedento, doente, preso, estrangeiro ou nu, se aproximou dele de cima para baixo, achando-se ele mesmo o messias, esse não O achará.

Por outro lado, aqueles que, para ajudar, se aproximaram de um faminto, sedento, doente, preso, estrangeiro ou nu, despretensiosamente, de baixo para cima, O acharão, sem nem saber ou procurar.

Curiosamente o Messias estará na pele do necessitado e não na do caridoso, na do fraco e não na do forte, na do salvado e não na do salvador (Mt 25:35).

Teologia Livre

domingo, 1 de janeiro de 2012

Esquecer significados e lembrar possibilidades

De longe já dava para vê-lo sentado ao poço. Preferia que não estivesse lá, como nos outros dias. Venho aprendendo a escolher lugares e horas que me ajudem a ficar só. Aquele poço e sua distância de tudo e todos, aquela hora e seu sol a pino traziam menos desgaste que esbarrar naqueles, quaisquer que fossem, cujos olhares espelhassem o pior de mim.

A aproximação acrescentou um dissabor, não bastasse alguém atrapalhar minha solidão, agora ficava evidente que o homem perto do poço era um judeu. Os babados da sua roupa de bom judeu anunciavam um daqueles que se crêem puros a despeito de nossa impureza. Nada é mais opressor que se enxergar tão estranha e detestável nos olhos de quem quer que seja.

Ao poço, o inusitado mostrou a face. Antes que pudesse deixar nítida minha pressa e indiferença, pediu-me água. Eu sei que a cortesia mínima não rejeita água sequer ao inimigo, mas não soube disfarçar minha amargura. Neguei-lhe e lembrei-lhe o óbvio, era homem e eu, mulher; era judeu e eu, samaritana. Fronteiras fortes o suficiente para que nem a mais sofrida angústia licenciasse o encontro. Nenhum preconceito é tão cruel que não possa servir a uma doentia e útil comodidade.

Ainda assim não me livrei do peregrino. Insistiu, apesar da cara de fadiga e dos lábios ressecados, e advertiu-me de estar desperdiçando uma grande chance. Falou-me da água de um jeito estranho. Não tive certeza se tentava me propor um enigma, como fazem os mestres e profetas, ou se de fato conhecia alguma água com poderes mágicos. Mas ofereceu uma água viva que resolveria a sede de uma vez por todas. Fiquei confusa. Não estou acostumada a esses devaneios, coisas de poetas e profetas, ou insanos. Sempre ali, icei baldes de água que, além de mal saciar minha sede, traziam o enfado de um serviço que nunca finda. Aos meus olhos, balde é balde, água é água, e gente nunca faz muito mais que trazer transtornos.

E mesmo depois de interromper o palavrório mostrando o absurdo de oferecer qualquer que fosse a água sem ter ao menos um balde, continuou a falar de tudo como se nada pudesse ser apenas o que sempre foi. Parecia falar de nada que já antes ouvi, como se tudo pudesse ter outra versão.

E falava como se fosse maior que aquele que cavara o poço, Jacó, nosso pai.

Falava como se palavras cavassem poços e baldeassem saciedade.

Talvez um poeta deslumbrado.

Sendo assim, aceitei a proposta da água viva e entrei na brincadeira. Dei ainda um certo tom de seriedade: ‘apenas para não ter mais o trabalho de ir ao poço’. Um silêncio e de novo aquele olhar insano de quem vê através das coisas e engendra o surpreendente. Eu, que queria não voltar ao poço de água, fui convidada por ele a voltar à origem da minha sede. Mandou-me buscar o marido, esse tipo de gente que primeiro abandona a imaginação, para depois abandonar a esperança e o amor.

A brincadeira perdeu a graça. A guinada da água para o coração causou-me vertigens. Lacônica, disse-lhe não ter marido. E não é que sequer esboçou surpresa? Nem um tom escrupuloso. Sabia de todos os maridos que tive e daquele que me toca, mas não me abraça. Senti meu rosto como um livro que se desenrola diante de um leitor. Seria eu tão evidente? Ou ele, um leitor habilidoso de gestos e olhares? Quem?

Poeta, sim. Louco? Com certeza e daqueles que a gente, atordoada, chama de profeta.

Alguém com versões tão diferentes do que a vida toda ouvi. Que fala estranhamente de tudo, mas com tanta graça. Que transfigura o óbvio e enxerga o avesso do que sempre me enfadou. E, sem pá, explora profundidades e, sem balde, baldeia com as palavras novos sentidos e embebe a vida de significados vários. Alguém assim pode me falar de Deus também com surpresa. Salvou-me da culpa de não ser amada, quem sabe salvará o divino do meu tédio?

Fala de Deus, poeta. Baldeia também o divino de outro poço, profeta. Porque tal como esta água, o que de Deus eu sei me angustia mais que sacia. Os samaritanos falam de um que é mais Deus em nosso templo que naquele de Jerusalém. Deus é só isso? Dos judeus ou dos samaritanos? De Jerusalém ou de Gerisim? Do templo que não me quer, ou que não me cabe? Dos homens e suas vaidades másculas e truculentas? Reiventa, poeta. Redescreve, profeta.

Bem naquela hora, uma brisa boa refrescou nossos rostos e a conversa, já tão tensa e grave. Ele, por um instante, pareceu esperar pelo sopro como um cantor aguarda o acorde da harpa. Como um poeta espera a metáfora que libertará a imaginação. Chamou o divino de vento. Desse que sopra selvagem e solto no deserto; desejado, mas indômito. Para além de qualquer estrutura, imprevisível, tão livre que apenas os que também anseiam pela liberdade podem encontrá-lo. Disse que Deus é vento e procura por quem, ao adorá-lo, também vai além dos edifícios e suas rígidas estruturas, tal qual o indomável e inventivo vento, e só assim o encontra de verdade.

Porque a verdade nunca é o que já se disse, mas o que está por dizer.

A verdade nunca é o que a brisa já deixou desenhado na areia, mas o vento que sempre está por soprar e redesenhar o chão de nossa existência.

Então? Vocês não querem vir e ouvi-lo? Ele (re)contou tudo o que tenho feito. Acho que é o Messias. Certamente não o que esperávamos. Mas o Messias. E eu, nossa! Esqueci meu cântaro lá, de tão lembrada que estou de tudo o que ainda posso ser.

Elienai Cabral Junior
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