sábado, 16 de julho de 2011

Deus repousou na manjedoura

Ricardo Gondim

Há algum tempo, intrigado, comecei a questionar porque Jesus Cristo escandalizou fariseus, saduceus e doutores da lei. Nenhuma novidade me ocorreu: há séculos os judeus aguardavam o Messias. Eles viviam na expectativa política de que um Ungido se levantaria em nome de Deus. Nos setores mais politizados, o Messias viria como o grande libertador – uma encarnação melhorada e glorificada de Moisés; um Dom Sebastião dos tempos antigos. Para segmentos religiosos ortodoxos, o Messias chegaria para renovar os princípios da Torá. O cumprimento da Lei representaria uma renovação espiritual que resgataria o povo para um novo tempo.

Mas além dessa grande espera, Paulo também diz que Jesus foi loucura para os gregos. O Nazareno se revelou um retumbante fracasso porque nunca deixou colar nele as expectativas judaicas e depois, nem as gregas, sobre as ações da divindade. Via-se claramente que em Jesus Deus não se parecia com o Movedor Imóvel de Aristóteles. Ele colocava teologia e filosofia de ponta cabeça.

Se o Deus dos fariseus zelava pelo cumprimento estrito da lei, Jesus a tornava flexível pela misericórdia. Quando perdoou a mulher apanhada no próprio ato do adultério, deixou claro que o poder do amor dobra a rigidez da lei: “Onde estão os teus acusadores. Eu não te condeno, vá em paz e não peques mais”. Nos casos da siro-fenícia, do centurião romano, da “impura” devido a uma menstruação crônica, do endemoninhado gadareno, do cego da calçada, fica claro que qualquer um pode aproximar-se de Deus sem exigências ou protocolos religiosos. Quando Jesus estava por perto, esvaziava-se a ideia de “não-eleito”.

Jesus não comparou Deus a um fiscal punitivo, mas a um pai machucado. No alpendre, enquanto espera a volta do filho perdido, os olhos úmidos do pai eram os olhos de Deus. Sim, mesmo desolado, o velho corre ao encontro do filho sujo, mal cheiroso e o cobre de beijos.

Ricardo Peter intuiu corretamente o porquê do ódio dos fariseus contra Jesus:

Os fariseus começaram a perceber que Jesus estava mudando radicalmente a maneira de entender quem é Deus. Este Deus teria podido provocar confusão e dispersão entre as pessoas religiosas. O comportamento do Deus anunciado por Jesus, do Deus que demonstra um amor incondicionado pelos pecadores, começava a colocar o Deus dos fariseus na sombra. Tinha início uma luta de ‘Deus contra Deus.

A religião judaica antecipara um Deus mais forte que os antigos baalins, que causaram tanto problema. Jesus andou na contramão, ele tomou sobre si a fragilidade dos serviçais. Os conteúdos de sua causa não lidavam com poder, mas com serviço. Os tempos exigiam um líder que convocasse exércitos com a força letal superior às legiões romanas. Mas o Galileu preferia colocar uma criança no colo e dizer: “Dos tais é o Reino de Deus”.

A ambição era posicionar Israel como nação líder. O messias, certamente, vingaria séculos de opressão impostos por egípcios, persas, gregos e romanos. Mas eis que ele abriu o rolo da lei numa sinagoga e leu: “O Espírito do Senhor está sobre mim e ele me ungiu para pregar boas notícias aos pobres”. Se um homem assim, radicalmente humano, comprometido com a escória do mundo, se dizia a expressa imagem de Deus, tal homem precisava ser assassinado. Um Deus fraco não servia aos interesses da religião – como ainda não serve.

Além desta enorme decepção entre os semitas, os gregos também se horrorizaram. Se Deus encarnou assim, como sustentar as ideias de Aristóteles? Jesus não se assemelhava em nada com o conceito de Deus como “Ato Puro” ou como “Motor Imóvel”. O Rabi de Cafarnaum se movia de “viscerais afetos” por uma viúva a caminho de enterrar o filho, chorava diante da sepultura do amigo (a dor de homens e de mulheres dói em Deus; Isaías é enfático- 63.9 -: “Em toda a angústia deles, foi ele angustiado”.), irritava-se quando a religião oprimia e se deixava molhar pelas lágrimas de uma prostituta. Deus não se mostrara apático.

Volto a Ricardo Peter com sua intuição sobre a revelação de Deus que Jesus brindou o mundo:

O Deus de Jesus assume o humano a tal ponto que liberta o homem da exigência de ser como Deus. Deus contém em si, agora o máximo de humanidade. Deus encontra-se imerso no humano. O ‘Reino’ de Jesus não requer seres excepcionais, melhores que o ‘resto dos homens’, que se preocupam em ser por eles contaminados.

Mas, o que verdadeiramente escandalizou no Deus que Jesus revelava foi sua tremenda inconsistência. Como assim, Deus inconstante? Misericórdia é sempre uma tremenda inconstância. A inconsistência de Deus em reverter sentenças, em anular destinos, em refazer histórias, em anular tragédias, foi a marca mais exuberante da vida de Cristo. Até o fato de seu ensino ser vazio de dogmatismos, desestabilizava qualquer teologia. E talvez tenha sido este o pingo que entornou a taça da ira dos fariseus: o Deus inabalável, rigoroso e severo do Antigo Testamento estava ausente nas palavras, gestos e atitudes do filho de Maria.

Ainda hoje, os que distinguem entre o Deus dos fariseus e o Deus de Jesus acharão boas razões para decretar sua morte. O reino que ele inaugurou entre os homens não encontra paralelo com os reinos deste mundo. Seus ensinos não são codificáveis.

Portanto, o Deus que nasceu em uma manjedoura continuará despercebido dos poderosos. Ele só será notado nas realidades singelas e pequenas: grãos de mostarda, meninos e meninas, ovelhas indefesas, desempregados em calçadas, servos inúteis, indignos, filhos pródigos, prostitutas, leprosos, cegos, mendigos, estrangeiros, soldados e exorcistas informais.

Deus poderia escolher muitas maneiras para mostrar-se real, mas preferiu nascer em uma periferia esquecida; optou viver de um jeito que pode ser, poeticamente, comparado ao de um cordeiro.

Soli Deo Gloria

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Na África, maior campo de refugiados do mundo sofre com superlotação, falta de comida e água

Aden Salaad, de dois anos, olha para sua mãe (fora de quadro) enquanto ela lhe dá banho em uma bacia no hospital do Médicos Sem Fronteira, onde ele recebe tratamento para má nutrição
Aden Salaad, de dois anos, olha para sua mãe (fora de quadro) 
enquanto ela lhe dá banho em uma bacia …


RIO - Construído há 20 anos para abrigar 90 mil pessoas vindas da guerra civil da Somália, os acampamentos de Dadaab, no Quênia, são considerados o maior campo de refugiados do mundo, abrigando hoje mais de 350 mil somalis. De acordo com uma previsão do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), até o final deste ano Dadaab será a residência de 450 mil pessoas, o equivalente à duas vezes a população de Genebra. Nos primeiros quatro meses do ano, foram mais de 41 mil novas chegadas.


Além de conflitos internos, a Somália e outros países da África Oriental, como Etiópia e o próprio Quênia, passam pela pior seca dos últimos 60 anos. Nesta terça-feira, a ONU chamou a atenção para a crise humanitária na região, onde a temporada sem chuvas atinge cerca de 11 milhões de pessoas, e fez um apela a comunicada internacional.

- O custo humano desta crise é catastrófico. Nós não podemos nos dar o luxo de esperar - disse o secretário-geral da ONU, Ban ki-moon - Nós admitimos que temos que fazer de tudo para evitar que essa crise se aprofunde.

Um relatório divulgado em maio deste ano pelo Médicos Sem Fronteiras mostra como a realidade dos campos de Dadaab - composto por três acampamentos Dagahaley, Hagadera e Ifo, onde 9% das crianças chegam desnutridas e 60% das famílias vem com pelo menos um familiar doente.

Para receber a porção de comida - três quilos por quinzena, as famílias devem esperar, em média, 12 dias. Os utensílios de cozinhas e roupa de cama demoram mais de um mês. Durante este período, os recém-chegados precisam se virar em temperaturas médias de 50 graus, buscando alimentos no deserto e fugindo de animais selvagens, principalmente de ataques de hienas, frequentes na região.

- Cheguei com seis parentes. Temos um pedaço de terra na área dos recém-chegados, mas não temos nada para construir um abrigo. Não temos plástico, nem tendas. Temos apenas os nossos cartões de registros, mas ainda esperamos por nossa porção de comida. É muito perigoso aqui. Temos medo que animais selvagens comam nossas crianças durante a noite - contou Fatima a funcionários do Médicos Sem Fronteiras, 15 dias após chegar ao Quênia, fugida de Mogadishu, na Somália.

Como os acampamentos estão lotados, recém-chegados devem esperar do lado de fora dos campos ou procurar abrigo em casa de parentes, como é o caso de Hassan, de 39 anos, que, ao lado da mulher e cinco filhos, divide tenda com a irmã outros oito parentes. Segundo o Médicos Sem Fronteiras, cerca de 25 mil pessoas vivem do lado de fora dos acampamentos.

A ONU tinha um projeto de abrir um novo campo de refugiado no local, uma extensão do complexo de Ifo, com mais instalações, que serviriam para acomodar 40 mil pessoas, mas a obra foi suspensa em janeiro deste, depois de muitas negociações com autoridades quenianas. Até o momento, não há sinais de avanço nas conversas com o governo.

Há 20 anos, a Somália não tem um governo central e milícias islâmicas al-Shabbab impediram a entrada de ajuda humanitária nos locais dominados por ele. Segundo os extremistas, a ajuda encorajaria a dependência. Desde de o ano passado, a agência de alimentos da ONU desistiu de ajudar somalis, com medo de colocar seus funcionários em risco diante de "condições de trabalhos inaceitáveis".

Fonte: Yahoo

O Deus que não tem ninguém na sua lista

Repetidamente negado por Paulo Brabo

Nesse momento entra em cena esse sujeito J. Harold Ellens, um psicólogo norte-americano que em seus livros e artigos defende essencialmente uma ideia: a de que a notícia evangelical da graça incondicional e do perdão universal dos pecados não representa apenas a única chance para a salvação espiritual da humanidade, mas a única chance para a salvação dos nossos distúrbios mentais. E que, de fato, não existe diferença entre uma coisa e outra.

Desde que a psicologia ganhou alguma reputação como disciplina e como prática seus méritos, seu vocabulário e suas ênfases tem sido apropriados (ou, alternativamente, questionados) por muitos cristãos a fim de legitimar suas próprias versões da ortodoxia. Ellens, no entanto, está a milhas de distância da banalidade de obras como Jesus, o maior psicólogo que já existiu; do ponto de vista privilegiado ao qual nos erguem as suas reflexões, descortina-se um horizonte desconcertante.

Ellens talvez seja o mais articulado proponente de um movimento de interpretação que até onde sei ainda não tem nome, mas que podemos chamar interinamente de teologia da graça radical (a partir de um dos mais celebrados volumes de Ellens, Radical Grace).

Não há na verdade grande coerência de pensamento entre os proponentes dessa visão, e nem poderia haver. O que pode ser dito a respeito desses caras (e já fui visto bebendo e comendo entre eles) é que intuem antes de tudo que Deus é um sujeito muito mais gentil e desencanado do que sugerem as ortodoxias usuais. Deus não está muito interessado em saber se você fica admirando as pernas de gente do sexo errado e não controla onde você passa suas manhãs e noites de domingo; Deus não vai ficar ruborizado se você engravidar a sua noiva e não vai mandar ninguém para o inferno por acreditar na evolução, por fumar um baseado ou por beijar uma estátua. Esse Deus não tem o rabo preso com ninguém, não aceita subornos e a ninguém rejeita; não tem ilusões, por isso não se rebaixa a aplicar critérios. A característica mais predominante do seu caráter – na verdade a única característica dele a que temos acesso e a única necessária – é seu inflexível cavalheirismo. O que ele quer é que você não machuque ninguém e não se machuque; se for para você se machucar que seja em favor dos outros, mas de modo inteiramente consciente, informado e sem ilusões.

É um Deus que tem muito de hippie; suas únicas diretrizes de conduta são de fato paz e amor: ou, como se diz na linguagem do Novo Testamento, amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo (que são, evidentemente, operações idênticas e equivalentes).

Porém esse é um Deus não se ilude, e sabe que o amor precisa de uma medida, uma diretriz que o extraia do domínio dos discursos para o terreno da prática. Esse parâmetro de grandeza para o amor é a graça, a implacável inclinação divina em aceitar. E essa medida de grandeza ficou estabelecida em sua inteireza na pessoa de Jesus.

O que J. Harold Ellens vem fazendo é articular com todas as letras o que já havia sido sugerido, por exemplo, por Paul Tournier em Culpa e graça. Para Ellens, a graça – entendida como a inclinação inflexível e radical, por parte de Deus, em aceitar o ser humano como ele é – não é apenas um aspecto da salvação ou um a porta de entrada para ela. A graça é a própria salvação.

Em resumo, para Ellens a graça ou é radical (isto é, absolutamente resoluta e invariável) ou é na verdade graça nenhuma. Ela só tem poder curativo se for de fato radical, incondicional e universal: privar a graça de seu caráter incondicional seria privá-la de todo seu poder. Dito de outra forma, a graça só é realmente capaz de curar se não fizer diferença para Deus se você vai ser curado ou não. Essa fragilidade é o único mecanismo da coisa toda, e dela depende toda a sua eficácia.

O toque de uma graça radical – aquilo que Ellens chama de “uma perspectiva graciosa e incondicional de apreço positivo” – é a única solução concebível para nossos entraves, traumas, neuroses e inadequações. Essa graça implacável é o único bálsamo com o potencial de nos aplacar em regime definitivo as doenças do espírito, sendo portanto a única chance que temos de encontrar o bem-estar e de o vermos aplicado neste mundo.

Esse é o poder subversivo do perdão universal dos pecados, apregoado por João Batista e endossado por Jesus. Somente a boa nova (somente essa boa nova) é capaz de agir eficazmente na anulação do poder diabólico da culpa, raiz daquela “ansiedade destrutiva que produz em nós toda enfermidade e todo o pecado”. Quem torna-se livre da culpa torna-se livre, e ponto final.

Isso porque “uma perspectiva graciosa e incondicional de apreço positivo” implica numa aceitação radical ao ponto da mais atordoante descaracterização. A singularidade do Deus de Jesus está em que ele não vai amar você menos se você o rejeitar; não vai amá-lo menos se você o matar. Não vai deixar de aceitá-lo em caso algum. O apreço positivo que ele nutre pelo ser humano é a expressão mais destilada e invariável da pessoa e do caráter dele; o céu e o inferno não teriam como alterá-la um milímetro em qualquer direção, muito menos algo que você puder fazer. “Nada poderá nos separar do amor de Deus”, e nada é muita coisa.

Em termos teológicos, essa visão de um Deus de amor invariável cuja matriz e coroa é Jesus já foi articulada (e questionada) muitas vezes ao longo dos séculos. A tarefa que Ellens tomou sobre si foi a de estabelecer além da dúvida o caráter e o valor terapêutico dessa graça ampla, invariável e arbitrária. Porque se Deus nos ama independentemente da nossa cura, só então a cura torna-se possível – mas, pasme-se, ela então torna-se possível. Se Deus pode nos aceitar como somos, só então nos tornamos livres para mudar. Isso não quer dizer que Deus exige que mudemos; pelo contrário, o cerne e o único poder da coisa toda está em que a aceitação e o apreço divinos pelo ser humano (e o nosso uns pelos outros) devem resistir galhardamente à rejeição, ao desprezo, ao esquecimento, à distração.

Se for assim, e Ellens não demora em apontá-lo1, Dietrich Bonhoeffer estava equivocado quando condenou e chamou de “graça barata” a graça que não produz mudança de vida na pessoa tocada por ela. Chamá-la de qualquer outra coisa que não simplesmente graça, mesmo quando não há mudança de vida, seria invocar o antigo fantasma da culpa e anular qualquer poder terapêutico que a graça poderia ter. Porque, e isso Ellens procura sempre novas formas de explicar, o único poder da graça está em que sua eficácia não depende da sua eficácia. A graça se basta.

A imagem resultante é a de um Deus ao mesmo tempo muito arrebatado e muito na dele. Por um lado, trata-se de um cara apaixonado para além da breguice e da cegueira, uma divindade que decide que nada no passado ou no futuro será capaz de alterar a sua devastadora inclinação em abraçar e aceitar o ser humano. Por outro, trata-se de um Deus absolutamente maduro em termos psicológicos, seu caráter livre por completo dos traumas, ansiedades, histerias, psicoses e neuroses que caracterizam a postura e a conduta dos deuses de sempre. Sua auto-estima e seu apreço por tudo que é humano, bem como seu equilíbrio emocional, em nada dependem da sua capacidade de agradar, da realização de seus projetos e expectativas com relação aos que ama ou de sua própria capacidade em salvar o mundo. O Deus de Jesus é um amante desiludido sem jamais chegar a ser amargo, um amante resoluto sem jamais chegar a ser invasivo.

É um Deus que não se rebaixa ao proselitismo, isto é, um Deus que não quer converter ninguém para além da sacada de que nenhuma conversão é necessária (e que portanto toda mudança é possível). É um Deus sem outro critério que não o amor, que abraça o filho pródigo e espera o mesmo do filho comportado; que dá a mesma recompensa ao cara que suou o dia todo e ao folgado que só apareceu para trabalhar na hora de ir embora. Um Deus que não tem ninguém na sua lista.

Naturalmente, tudo que sabemos a respeito desse Deus cavalheiresco só pode ser intuído a partir da postura e das indicações do Jesus dos evangelhos. Há traços muito claros desse Deus no restante do Novo Testamento e indícios desconcertantes dele no Antigo, mas seríamos por completo incapazes de rastreá-los não fossem a luz e a lucidez providas diretamente pelo próprio Filho do Homem, o rabi galileu de pés empoeirados, o louco crucificado.

Como observou certa vez um perplexo Brennan Manning, Jesus é o único sujeito na conturbada história das religiões a ousar chamar Deus de Pai. E, não custa acrescentar: na conturbada história das relações freudianas, Jesus é o único sujeito a prover para seu pai e para sua relação com ele um caráter maduro e psicologicamente equilibrado.

Ellens é aparentemente culpado de reconstruir o caráter Deus não a partir do dogmatismo das ortodoxias, mas a partir da própria pessoa de Jesus. Seu pecado é acreditar que Jesus pode ser na verdade maior – um cara ao mesmo tempo mais ambicioso e muito menos – do que tudo que a igreja chegou jamais a construir ao redor do seu nome.

Porque se a postura de Deus em relação a nós resume-se a essa atordoante “perspectiva graciosa e incondicional de apreço positivo”, se a graça é de fato tão radical quanto sugerido por Jesus, existe de fato uma esperança para as nossas mais entranhadas patologias. Em meio a nossas mesquinhezas e inadequações, e antes de darmos qualquer passo para longe delas, levanta-se a possibilidade de sermos encontrados pela cura que não buscávamos, a cura com a qual havíamos deixado de sonhar.

Afinal de contas, é esse o sentido primário da palavra grega do Novo Testamento que aprendemos a traduzir como salvação: cura. Ser salvo é ter a saúde restaurada. É por isso que nossa salvação pode representar a saúde do mundo: isso acontece quando decidimos estender ao próximo (graciosamente, porque não haveria outro motivo e outra maneira) a perspectiva graciosa e incondicional de apreço positivo que entrevemos e tocou-nos no Deus singular de Jesus.

Assim, de forma desguardada e gentil, abrem-se os portões do palácio e os loucos, os mendigos e os criminosos recebem permissão para brincar no jardim ao lado dos filhos do príncipe. Ou talvez seria mais correto dizer que são os filhos do príncipe que recebem permissão para tocar a beleza sem intermediários da vida real. Na verdade não faz diferença, e essa é a moral da história. A risada de todos torna-se a mesma debaixo do mesmo sol, e logo todos cansam das simetrias do jardim e escolhem percorrer livremente o mundo. Essa inesperada liberdade adquirida, essa descomunal integridade recuperada, já foi chamada de bem-aventurança; Ellens gosta de chamá-la simplesmente de bem-estar.

Leia também:
NOTAS

«A ideia de Bonhoeffer de que a graça que não produz uma vida radicalmente diferente é “graça barata” é um traição da verdade bíblica sobre a graça. É claro, todos gostariam que a graça de Deus produzisse em cada vida humana o fruto de uma vida integral e santa, mas o caso é que, mesmo quando isso não acontece, a graça permanece incondicional, perdoando e aceitando por completo essa pessoa falha. Bonhoeffer substititui a graça por um antiquado e incorreto moralismo medieval e por uma religião mecanicista. Sua ideia de “graça barata” revela que ele anseia novamente por uma espécie de legalismo e de condicionalismo que nos moldem. A graça, porém, é livre, radical, incondicional e universal, ou então não é graça e não tem nada de boa nova – visto que, se não for assim, não consegue atingir o centro da patologia à qual de outro modo estamos algemados para sempre, sem esperança. Não consegue libertar-nos da ansiedade destrutiva que produz toda nossa enfermidade e pecado.

[...] Bonhoeffer, que compreendia tão bem a graça de tantas maneiras, rendeu-se inadvertidamente à noção de uma graça condicional em suas observações sobre graça barata. Naquele momento de descuido ele cobiça novamente pelo legalismo, obscurecendo o fato de que a graça é gratuita; que pode ser pressuposta eternamente; que é radical, incondicional e universal. Graça condicional é graça nenhuma.» (J. H. Ellens, em Radical Grace). [↩]

terça-feira, 12 de julho de 2011

Do berço à sepultura: a nostalgia do comunismo e o capitalismo em sua forma de sempre

Encarcerado por Paulo Brabo

Numa entrevista para o The New York Herald em 1921, Lenin afirma1:
Algumas pessoas nos Estados Unidos chegaram à conclusão de que os bolcheviques são uma panelinha de homens muito malvados que exerce tirania sobre um vasto número de pessoas muito inteligentes que formariam um governo admirável entre eles mesmos no momento em que o regime bolchevique fosse derrubado.
O admirável sobre essa propaganda anti-comunista é quão tediosamente similar ela tem se mantido ao longo de quase 90 anos, e quão difundida ela permanece. De qualquer modo, visto que essas panelinhas “de homens muito malvados” foram agora derrubadas e substituídas pelos “governos admiráveis” de “pessoas muito inteligentes”, seria o caso de examinar as condições dos países “pós-comunistas” da Europa oriental.

Num comentário em minha postagem anterior, Marx, satanista?, Tamara chamou-me a atenção para uma pesquisa recente feita na Romênia:
Só 27 por cento dos romenos afirmam que o comunismo era “errado”, enquanto 47 por cento responderam que “era uma boa ideia, mas mal aplicada” e 14 por cento acham que foi “uma boa ideia e bem aplicada”. Impressionantes 78 por cento afirmam que nem eles nem suas famílias jamais sofreram debaixo do comunismo.
E tudo isso tomou lugar sob aquele ditador perverso e odiado, Nikolai Ceausescu.

Passemos então para a Bulgária, um lugar que conheço muito bem. Num livro recente, Lost in Transition: Ethnographies of Everyday Life after Communism/Perdido na transição: Etnografias do cotidiano depois do comunismo, Kristen Ghodsee observa uma crescente nostalgia pela era comunista. Mas por quê, especialmente em se tratando de um estado supostamente stalinista? «O que diziam do capitalismo era verdade.»Quando o capitalismo foi repentinamente imposto em 1989, uns poucos estrangeiros com boas conexões e uma nova classe de oligarcas e criminosos locais assumiram os ativos que haviam pertencido anteriormente ao estado – aqueles que chamaríamos de “empresários”. A gente comum sentiu-se roubada, e muitos perderam seus empregos justamente no momento em que o sistema previdenciário do estado era desmantelado. E será que isso só ocorre na Bulgária? De forma alguma: é o capitalismo em sua forma de sempre.

Tenha em mente que esses são estados que eram supostamente modelos de uma ditadura insuportavelmente repressiva. Não estamos falando, por exemplo, da Iugoslávia, que era com frequência tomada como exemplo de um comunismo mais humano e viável. E enquanto falamos da Iugoslávia: quatro em cada cinco pessoas com as quais falo sobre “a antiga I” me dizem que ela funcionava muito bem.

Prevejo que esta seria a brecha para uma resposta bem lubrificada da direita:
“Claro, é natural que os mais velhos tenham saudade das ditaduras e autocracias, porque essas lhes forneciam algumas certezas na vida, por mais difícil que fosse a situação. Mas podemos com segurança ignorar essas debéis nostalgias dos mais velhos…”

Papo-furado. Conheci russos jovens, nascidos depois ou logo antes de 1989, que erguem copos e brindam à antiga União Soviética. Acrescente-se a isso – como informa-me um colega de Kiev depois de muita pesquisa – que apenas um, talvez dois, dos países do bloco oriental chegaram a alcançar o PIB de 1989 – e isso depois de mais de duas décadas de capitalismo.

Talvez, apenas talvez, as pessoas encontrem de fato valor em coisas como cobertura de saúde e educação universais, desemprego zero, dias de trabalho mais curtos e tempo de sobra para encontrar-se e conversar. Talvez, apenas talvez, economias planejadas sejam de fato melhores. Até mesmo o odiado (na Europa oriental) e ex-anti-comunista Zizek parece concluir que o comunismo era superior. Como ele coloca: tínhamos segurança do berço à sepultura, nunca levávamos nossos governantes a sério e tínhamos o Ocidente mítico com o qual sonhar.

Finalmente, há o que um amigo que morava num desses lugares me disse há algum tempo:

“Quando nos ensinavam sobre o capitalismo na escola, todos achávamos que ele não tinha como ser tão terrível quanto diziam. Achávamos que nossos professores estavam inventando tudo aquilo. Hoje, vivendo sob o capitalismo, entendo que o que eles diziam era verdade.”


Leia também:
Партия Ленина
Na mesma moeda
Igreja e capitalismo

NOTAS
  1. Collected Works, vol. 36, p. 538. []

segunda-feira, 11 de julho de 2011

O “complexo Deus” da modernidade

por Leonardo Boff

A crise atual não é apenas de escassez crescente de recursos e de serviços naturais. É fundamentalmente a crise de um tipo de civilização que colocou o ser humano como “senhor e dono” da natureza (Descartes). Esta, para ele, é sem espírito e sem propósito e por isso pode fazer com ela o que quiser.

Segundo o fundador do paradigma moderno da tecnociência, Francis Bacon, cabe ao ser humano torturá-la, como o fazem os esbirros da Inquisição, até que ela entregue todos os seus segredos. Desta atitude se derivou uma relação de agressão e de verdadeira guerra contra a natureza selvagem que devia ser dominada e “civilizada”. Surgiu também a projeção arrogante do ser humano como o “Deus” que tudo domina e organiza.

Devemos reconhecer que o Cristianismo ajudou a legitimar e a reforçar esta compreensão. O Gênesis diz claramente:”enchei a Terra e sujeitai-a e dominai sobre tudo o que vive e se move sobre ela”(1,28). Depois se afirma que o ser humano foi feito “à imagem e semelhança de Deus”(Gn 1,26). O sentido bíblico desta expressão é: o ser humano é lugar-tenente de Deus e como Este é o senhor do universo, o ser humano é senhor da Terra. Ele goza de uma dignidade que é só dele, o de estar acima dos demas seres. Dai se gerou o antropocentrismo, uma das causas da crise ecológica. Por fim, o estrito monoteismo retirou o caráter sagrado de todas as coisas e o concentrou só em Deus. O mundo, não possuindo nada de sagrado, não precisa ser respeitado. Podemos moldá-lo ao nosso bel-prazer. A moderna civilização da tecnociência encheu todos os espaços com seus aparatos e pôde penetrar no coração da matéria, da vida e do universo. Tudo vinha envolto pela aura do “progresso”, uma espécie de resgate do paraiso das delícias, outrora perdido, mas agora reconstruido e oferecido a todos.

Esta visão gloriosa começou a ruir no século XX com as duas guerras mundiais e outras coloniais que vitimaram duzentos milhões de pessoas. Quando se perpetrou o maior ato terrorista da história, as bombas atômicas lançadas sobre o Japão pelo exército norteamericano, que matou milhares de pessoas e devastou a natureza, a humanidade levou um susto do qual não se refez até hoje. Com as armas atômicas, biológicas e químicas construidas depois, nos demos conta de que não precisamos de Deus para concretizar o Apocalipse.

Não somos Deus e querer ser “Deus” nos leva à loucura. A idéia do homem como “Deus” se transformou num pesadelo. Mas ele se esconde ainda atrás do “tina” (there is no alternative) neoliberal:”não há alternativa, este mundo é definitivo.” Ridículo. Demo-nos conta de que “o saber como poder”(Bacon) quando feito sem consciência e sem limites éticos, pode nos autodestruir. Que poder temos sobre a natureza? Quem domina um tsunami? Quem controla o vulcão chileno Puyehe? Quem freia a fúria das enchentes nas cidades serranas do Rio? Quem impede o efeito letal das partículas atômicas do urânio, do césio e de outras liberadas, pelas catástrofes de Chernobyl e de Fukushima? Como disse Heidegger em sua última entrevista ao Der Spiegel: ”só um Deus nos poderá salvar”.

Temos que nos aceitar como simples criaturas junto com todas as demais da comunidade de vida. Temos a mesma origem comum: o pó da Terra. Não somos a coroa da criação, mas um elo da correnta da vida, com uma diferença, a de sermos conscientes e com a missão de “guardar e de cuidar do jardim do Eden”(Gn 2,15), quer dizer, de manter a condições de sustentalidade de todos os ecossistemas que compõem a Terra.

Se partimos da Bíblia para legitimar a dominação da Terra, temos que voltar a ela para aprender a respeitá-la e a cuidá-la. A Terra gerou a todos. Deus ordenou: “Que a Terra produza seres vivos, segundo sua espécie”(Gn 1,24). Ela, portanto, não é inerte, é geradora e é mãe. A aliança de Deus não é apenas com os seres humanos. Depois do tsunami do dilúvio, Deus refez a aliança “com a nossa descendência e com todos os seres vivos”(Gn 9,10). Sem eles, somos uma família desfalcada.

A história mostra que a arrogância de “ser Deus”, sem nunca poder sê-lo, só nos traz desgraças. Baste-nos ser simples criaturas com a missão de cuidar e respeitar a Mãe Terra.

domingo, 10 de julho de 2011

Os recatos pós-cristãos

Paulo Brabo - A Bacia das Almas

“Basta ao discípulo se equiparar ao mestre”.
Mateus 10:25


John Updike, em sua introdução a Soundings in Satanism, sentenciou que nosso mundo se encontra na constrangedora situação de ter superado moralmente o passado que idealiza. “Infelizmente nos tornamos, em nosso protestantismo, mais virtuosos do que os mitos que nos ensinaram a virtude: achamo-os selvageria.”

A parte mais fácil de verificar desse notável veredicto é a última: de fato achamos selvageria muito do que já foi reverenciado como história sagrada. À luz do nosso presente estado de iluminação, a maior parte das narrativas sagradas e de seus heróis parecem-nos desconcertantemente brutais, primitivos e incivis: toscos.
“Somos mais virtuosos do que os mitos que nos ensinaram a virtude.”
Mesmo para os que se consideram judeus ou cristãos praticantes, é difícil acompanhar sem revirar o estômago a barbárie de grande parte das histórias tradicionalmente edificantes da Bíblia. Como manter um piedoso distanciamento diante de exemplos como a das filhas de Ló, que embebedaram o pai e mantiveram relações sexuais com ele na tentativa (bem-sucedida) de gerar descendentes porque queriam povoar uma terra que julgavam (erroneamente) deserta? Que dizer da moral dúbia de Jacó, que enganou seu pai cego a fim de extorquir dele a benção que pertencia por direito a seu irmão mais velho – sendo que esse mesmo Jacó receberia mais tarde o selo de aprovação de Deus, teria seu nome mudado para Israel e se tornaria o ancestral dos israelitas? Como perdoar os onze irmãos de José, que por inveja venderam seu irmão como escravo a uma caravana de mercadores – e que se tornariam páginas depois (com José) os patriarcas das doze tribos de Israel? Que dizer de Judá, que freqüentava prostitutas impunemente e foi reverenciado ancestral do rei Davi e de Jesus? Ou do próprio Davi, que assassinou com dolo o marido da mulher que cobiçava, tornou a viúva sua favorita e aparece no placar bíblico como “homem segundo o coração de Deus”? Nossa sensibilidade talvez resista à noção dos sacrifícios diários de animais, dos fogos eternos e do derramamento ritual de sangue exigidos pela liturgia judaica, mas como não tremer diante das populações indígenas de Canaã extirpadas pelo povo de Israel – homens, mulheres, crianças e animais exterminados não apenas com a permissão de Deus, mas segundo suas ordens explícitas?

Se foram histórias como essas que nos ensinaram a virtude o nosso parece ser um caso claro, não previsto pela injunção de Jesus em Mateus 10:25, de discípulos inconformados que acabaram superando o mestre. O teísmo é opção cada vez mais difícil de engolir, em grande parte porque sabemo-nos melhores do que essas figuras que devemos oficialmente admirar – canastrões tão pouco sofisticados em sua selvageria que nem como exemplo negativo funcionam mais.

Updike está certo, portanto, ao observar que hoje em dia julgamos rudes e pouco civilizados os mesmos eventos, rituais e narrativas que foram considerados universalmente edificantes durante grande parte da história. Concordo em parte, como se verá, que foi com essas antigas histórias que aprendemos a virtude; sua hipótese central, de que superamos moralmente esses mitos formadores e os heróis que os povoam, requererá porém cautelosa refutação.

continua…
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