quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Metáforas desconcertantes do divino

Ricardo Gondim

Nietzsche disse que só acreditaria no Deus que soubesse dançar. As implicações filosóficas e existenciais dessa afirmação são enormes. Entre algumas: contingência, liberdade humana, o uso da sabedoria no improviso, desmonte da existência engrenada. Dizer que Deus dança significa que a vida pulsa com liberdade. Começo, meio e fim não jazem nos grilhões da necessidade.

Em desagravo à espiritualidade nietzscheniana, atrevo-me dizer que o Deus que dança não é estranho ao relato bíblico.

Sofonias (3.17) descreve Deus se regozijando com júbilo, cheio de brados de alegria. Deus se deleita tal qual o pai que se surpreende com a pergunta criativa do seu guri, igual ao professor que aceita ser ultrapassado pelo aluno, parecido com a mãe que se encanta com a bailarina que nasceu de suas entranhas. A alegria divina ou humana vem da percepção gostosa de um momento que, mesmo esperado, podia nunca acontecer. Isso desengrena o futuro e cria o insólito. Só o imprevisto tem força de gerar alegria ou decepção.

Os profetas não economizavam predicados portentosos para o Divino: Senhor dos Exércitos, Todo Poderoso, Rei, Santo Juiz. Mas, diferentemente das divindades gregas que, posteriormente, seriam descritas a partir dos absolutos da metafísica, os judeus se valeram de histórias, contos e parábolas para descrever Elohim Javé. Sem a aura de sacralidade das antigas divindades, eles não tiveram medo de dizer que Deus assobia – Isaías 5.26, 7.18. “Assobiarei para eles e os ajuntarei, pois eu já os resgatei…” (Zacarias 10.8). Nietzsche, estou certo, não teria muito problema em crer num Deus que assobia.

Um dos mais celebrados atributos dos deuses foi a constância. Contudo, Javé não se sente constrangido a comportamentos padrões. Os escritores o descrevem como um Criador arrependido, depois que constata o aumento da perversidade entre os filhos dos homens: “Então o Senhor arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra, e isso cortou-lhe o coração” (Gênesis 6.8). Javé também se arrependeu de extrapolar sua severidade  ao anunciar a destruição de uma cidade: “Tendo em vista o que eles fizeram e como abandonaram seus maus caminhos, Deus se arrependeu e não os destruiu como tinha ameaçado” (Jonas 3.10).

Com o fluir da história, certos mandamentos caducam, perdem a razão de ser, e merecem ser descartados. No período pós-exílio babilônico, foi necessário acabar com a lógica sacrificial de imolar animais inocentes. Os holocaustos se mostraram inúteis na transformação de pessoas. Jeremias teve peito de desdizer o que se considerava mandamento. Para ele, Javé  nunca havia ordenado derramamento de sangue  (quando, de fato, o Senhor exigira que se imolassem animais).

“Assim diz o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel: ‘Juntem os seus holocaustos aos outros sacrifícios e comam a carne vocês mesmos! Quando tirei do Egito os seus antepassados, nada lhes falei nem lhes ordenei quanto a holocaustos e sacrifícios. Dei-lhes, entretanto, esta ordem: Obedeçam-me, e eu serei o seu Deus e vocês serão o meu povo. Vocês andarão em todo o caminho que eu lhes ordenar, para que tudo lhes vá bem’” (Jeremias 7.21)

Numa expressão chula, no Brasil chamam o homem traído de corno. Embora o termo esteja completamente desconectado do hebraico, o profeta não teve vergonha de comparar a sua sorte à do Senhor. E de usar a própria história para fazer paralelo entre deslealdade conjugal e espiritual. Para escancarar a dor da infidelidade, Oseias, corneado por sua mulher, Gômer, disse que Israel fazia o mesmo com Deus. “Vá, trate novamente com amor sua mulher, apesar de ela ser amada por outro e ser adúltera. Ame-a como o Senhor ama os Israelitas, apesar de eles se voltarem para outros deuses e de amarem os bolos sagrados de uvas passas” (Oseias 3.1).

O mosaico de metáforas atribuídas ao Divino é minimizado na teologia pelo termo técnico de antropomorfismo. Mas, os exegetas que procuram construir uma imagem de Deus sem essas inúmeras metáforas, acabam com um Deus apático, distante, indiferente, inacessível. Ao anularem as múltiplas descrições bíblicas, ficam com o Motor Imóvel aristotélico.

Jesus de Nazaré ousou desmontar todos os devaneios que  antigos nutriam sobre Deus. O Evangelho de João diz que “ninguém jamais viu a Deus, mas o Deus Unigênito, que está junto do Pai, o tornou conhecido” (Jo 1.18). Quando Felipe pediu para ver o Pai, Jesus não hesitou: “Quem me vê, vê o Pai”. Portanto, a metáfora mais verdadeira de Deus encarnou e foi reconhecida em Jesus, o Cristo.

Em Jesus,  Deus bate à porta e espera ser recebido para um jantar. Em Jesus, Deus relativiza as exigências cerimoniais de dias e espaços sagrados para preservar vidas. Em Jesus, Deus ama sem se impor – ainda ressoam de seus lábios a escandalosa condicional: “Se alguém quiser me seguir…”.

Creio que Nietzsche era ateu da Causa Primária, do Relojoeiro, do Supremo Arquiteto, do Superintendente da Meticulosa Providência. Ele desprezou meras caricaturas distorcidas do Pai que mandou preparar churrasco para um grande baile. Não consigo imaginar Deus sentado, observando a festança do dia da volta do Filho Pródigo. Naquele dia, Ele dançou.

Soli Deo Gloria

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Monoteísmo e responsabilidade


A Bíblia demitologiza a natureza e mitologiza a história.

Alan F. Segal,
Life After Death – A History of the Afterlife in Western Religion

No princípio era um caos, e as mitologias pré-bíblicas dão abundante testemunho disso. Antes que o monoteísmo aparecesse para colocar ordem no universo, o homem enxergava a si mesmo como um pontinho na superfície da Terra à mercê das forças arbitrárias e antagônicas da natureza, forças que eram personificadas em deuses especializados, temperamentais e geograficamente localizados. A riqueza e as contradições da experiência eram explicadas pelas iniciativas e pelas interações de um pulverizado panteão de divindades que, para complicar as coisas, raramente conviviam entre si de modo pacífico.
Cada deus tinha sua área de atuação e sua descrição de cargo, mas tinha também seus desafetos, seus preferidos e suas invejas. Havia, por exemplo, o deus da tempestade e do trovão; havia o deus do mundo inferior, a deusa do amor e da guerra (porque não há diferença), a deusa da colheita, o deus do vinho, o deus do mar, o deus-touro da fertilidade, a deusa-mãe de múltiplas tetas. Cada aspecto do mundo natural, cada manifestação do seu poder, era regido e representado por uma personalidade sobrenatural: o sol, a montanha, os rios, os lagos, as inundações, o fogo, a chuva, a morte, o ciclo da vida. Esses personagens eram pais e mães, cônjuges e amantes, filhos e filhas, irmãos e irmãs, parceiros e inimigos – uma árvore inteira de deuses, e eram como nós: apaixonados, invejosos, caprichosos, inconstantes, imprevisíveis, lascivos, promíscuos, ocasionalmente generosos, frequentemente cruéis.
Os seres humanos eram, na melhor das hipóteses, marionetes e instrumentos dessas entidades; na pior, joguetes debaixo de seus caprichos. Todos os deuses deviam ser respeitados, e muitos precisavam ser temidos; alguns precisavam ser apaziguados, e muitos podiam ser dobrados de modo a fornecer recompensa e proteção – mas não se ignorava também que agradar um deus podia acabar despertando a ira e a fúria de outro deus que por alguma razão estivesse de mal com o seu.
Tomadas juntas, as interações entre os deuses, bem como entre deuses e homens, explicavam cada aspecto deste universo. As mitologias da natureza elucidavam todo enigma e anulavam toda perplexidade: se as colheitas faltavam, se a peste alargava sua foice, se o mar engolia os navios, se os rios subiam e a chuva descia, era porque suas divindades tutelares estavam irritadas, entediadas ou tomadas de fúria vingativa. Na verdade, a natureza não era vista como uma coisa só, mas como a eterna pendência entre antagonismos e contrastes. A complexidade da experiência era aclarada pela variedade desse pano de fundo mitológico, pelas inter-relações dos condôminos sobrenaturais entre os quais havia sido loteado o domínio natural.
Mas isso era antes, quando a terra era sem forma e vazia e havia trevas sobre a face do abismo. Quando Deus disse haja luz e houve luz, nada mais seria como era. Em uma única página, a primeira, o Gênesis drenou todos os poderes do mundo natural e acumulou-os nas mãos da divindade una. Eras antes que Nietszche explicasse que os homens havíamos assassinado Deus, o Gênesis declarou a chacina pública de todas as milhares e milhares de divindades que o precederam.
No Gênesis, a natureza não é explicada pelas tensões entre personalidades arbitrárias que se antagonizam, mas pela harmonia entre forças colocadas em andamento pelo único Deus. Nesta natureza não pode haver caos nem conflito, por isso não pode haver mitologia – o mundo não é uma selva, mas um jardim antisséptico não contaminado por sereias, náiades, sátiros, centauros, iaras, elfos, caiporas ou ninfas.
Nesta terra solitária só há Deus e o homem, e tudo na experiência é explicado pela dança tragicômica entre esses dois personagens. A história é essa curva desenhada na luta entre o braço divino e as pernas do homem. Nas palavras de Alan F. Segal, o Gênesis demitologiza a natureza e mitologiza a história.
A história dos primórdios de Gênesis é nesse sentido um prólogo necessário para a apresentação da ideia de aliança – um daqueles acordos através dos quais se desenrolará a relação entre Deus e os homens. Porque, ao contrário do mundo mitológico em que os contrastes da experiência eram explicados pelo embate entre deuses antagonistas, debaixo da aliança as vicissitudes e paradoxos da vida são explicados pela obediência e pela desobediência – ou seja, o homem deixa de ser joguete dos deuses e passa a ser essencialmente responsável por tudo que lhe acontece no curso da história. Segal: “a boa sorte e o infortúnio passavam a depender de variáveis controláveis: o comportamento do povo”.
O empreendimento do Gênesis, portanto, foi desbastar o universo de deuses e de mitologias e de arbitrariedades, e colocar no centro o homem e a responsabilidade pessoal. É por isso que na narrativa o homem tem de ser o único elemento na criação feito à imagem e semelhança de Deus, porque o ser humano deve compartilhar com a divindade dos pesados privilégios da autonomia e da responsabilidade. É por isso que a primeira coisa que acontece ao ser humano, a aventura primordial que definirá todos os aspectos da sua condição, é apropriar-se da contraditória dádiva discernimento moral – o conhecimento do bem e do mal, – tornando-se nisso semelhante ao próprio Deus.
Como se vê, o monoteísmo parece ter sido ingrediente essencial na invenção da ideia de responsabilidade pessoal. O Gênesis dá na verdade interessantíssimo testemunho de que as duas coisas nasceram juntas. O único Deus despovoou as trevas, tornou nulas as superstições e moldou a terra como um lugar equilibrado e justo, deixando o ser humano em pé no meio do seu jardim, livre para escolher a sua própria direção. O homem deixou de acreditar que vivia à mercê dos caprichos de forças além do seu alcance e passou a enxergar a si mesmo como sendo responsável por tudo que acontece ao seu redor. O mundo deixou de ser um incompreensível campo de batalha de forças competidoras e passou a ser, talvez pela primeira vez, um uni-verso: um domínio único e coerente amarrado por uma lógica subjacente e fundamental.
Num sentido amplo, a narrativa dos primórdios em Gênesis acabou gerando uma visão de mundo sem precedentes na antiguidade, uma cosmovisão tão irresistível e singular que despejou sem cessar consequências ao longo dos milênios; seus desdobramentos e ondas de choque não cessam de nos atingir mesmo nos nossos dias.
A visão de mundo da narrativa da criação em Gênesis é proto-científica, porque é precursora da noção de um mundo que é governado por uma ordem subjacente, e não pelo caos; é proto-humanista, porque escanteia o sobrenatural e coloca o ser humano no centro do palco; é proto-positivista, porque fala de um mundo explicado e definido por ordem e progresso.
E, como sugerido por Hegel e por Lacan, o Gênesis prefigura ainda um mundo que finalmente se sentirá à vontade para viver sem Deus, porque ao matar os antigos deuses (que eram as ferramentas que os seres humanos usavam para tocar o real) ele abre espaço para a organização do inconsciente através da articulação e do discurso – através, digamos, do logos.
Mas isso pode não ser uma coisa boa, e essa é outra história que a Bíblia se ocupará de contar.
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