sábado, 30 de abril de 2011

O porquê do fundamentalismo

Ricardo Gondim

Ao terminar o culto, notei um rapaz, aparentando não mais que 25 anos, entre os que desejavam conversar comigo. Trajava um terno escuro, gravata sóbria e camisa bem engomada. Era meio-dia. O calor insuportável dava uma sensação de desconforto só em vê-lo apertado sob tantas camadas. Ele queria conversar sobre teologia. A hora era imprópria e havia mais algumas pessoas pedindo atenção. Sugeri que me procurasse durante a semana para um bate-papo mais calmo. Dito e feito. Na quarta-feira à tarde, José Antônio (nome fictício) estava em minha sala, novamente trajado com seu paletó grafite.

Logo nas primeiras frases, ficou claro que ele não fazia perguntas. Pela entonação dos questionamentos, bastava trocar os pontos de interrogação por exclamação e eu era severamente exortado. Vez por outra colocava o dedo em riste e pontificava como se acabasse de levantar da cadeira de Moisés. Tive pena daquele rapaz, tão jovem e tão caduco. Não julgo suas verdades, apenas me inquieto com sua postura rancorosa, anacrônica e trancada ao diálogo.

Os estudiosos deste tempo são unânimes em afirmar que experimentamos o recrudescimento do fundamentalismo. Não trato o fundamentalismo como uma categoria teológica, mas como uma atitude comportamental. O mundo experimenta uma crescente animosidade nas discordâncias.

As pessoas se entrincheiram com seus argumentos, não ouvem o arrazoamento dos outros e, ao se sentirem ameaçadas, partem para algum tipo de violência. O fundamentalismo tem se mostrado exuberante na radicalização ideológica dos Estados Unidos, tanto da esquerda como da direita, no isolamento de facções islâmicas e nos preconceitos entre movimentos cristãos, no xenofobismo europeu e nos nacionalismos africanos.

O fundamentalismo não respeita fronteiras de qualquer espécie -- geográficas, cronológicas ou culturais. Um jovem, que ainda não amadureceu sua reflexão, pode ser mais intolerante que um idoso, já bem enraizado em suas convicções. Eu ouvia o José Antônio e pensava: “Este rapaz lê pouco e, quando o faz, nunca terá coragem de aprender com quem não tem a chancela de sua igreja”.

Os fundamentalismos não aceitam contribuição de quem não comunga com os mesmos signos, com os mesmos cacoetes de seu grupo. Os diferentes podem até tentar comunicar alguma verdade, mas serão rechaçados por não serem identificados como “um dos nossos”. Romancistas, músicos, poetas e místicos de outros arraiais estão impedidos de ajudar um fundamentalista a arejar sua mente.

Fundamentalistas desprezam conteúdos e se espantam com rótulos. Aliás, lideranças fundamentalistas adoram xingar com estereótipos. Etiquetam uma pessoa como herege para que seus argumentos fiquem sob judice antes de serem articulados. O pavor de deixar-se contaminar por um apóstata encerra qualquer diálogo.

José Antônio tentava me persuadir de que o futuro da fé cristã jaz no passado. “Temos que voltar”, repetiu várias vezes. Como eu sabia que qualquer iniciativa de estabelecer uma conversa seria frustrada, apenas pensei: “Mas, voltar ao quê?”. A idealização do passado é arma bastante usada por aqueles que enxergam a coragem de pensar fora da caixa como pecado mortal. Veneram teólogos do século 17 como autênticos instrumentos de Deus e consideram os atuais pretensiosos por desejarem articular teologia para sua geração. Mal sabem que muito do que se considera ortodoxo hoje, soou esquisito para alguém do passado.

Depois de quase cinquenta minutos de monólogo, antes que José Antônio tomasse fôlego, consegui dizer que Jesus Cristo foi relativista. Ele relativizou a lei em nome da misericórdia ao perdoar uma mulher apanhada em adultério; relativizou a tradição ao curar no sábado; relativizou sua própria proibição de alcançar os gentios ao atender ao pedido de uma mulher aflita devido à doença da filha. José Antônio arregalou os olhos quando eu disse que Jesus foi um vanguardista. Ele estava à frente do seu tempo quanto à valorização da mulher e o trato com a riqueza.

Minha cartada final, que escandalizou até os fios de cabelo de José Antônio, foi quando eu disse que nem ele nem eu podemos nos arvorar de ter toda a verdade. Jesus afirmou: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8.32). Porém, há pelo menos três verdades para conhecermos, todas inexauríveis: a pessoal, subjetiva, a externa, do mundo, e a de Deus, transcendente. Quem se aventurar a conhecer a si, o mundo que o rodeia e a Deus, deve saber que nunca chegará à sua meta.

Abracei afetuosamente José Antônio quando nos despedimos, mas temi por sua alma. Vi que ele corria o sério risco de perpetuar uma fé amarga, obtusa e, crescentemente, isolada. No escanteio e sem credibilidade, seu cristianismo parecerá com o sal que perdeu seu sabor. Torço para que a geração que me sucederá seja tão assustadoramente revolucionária como foi Jesus de Nazaré.

Soli Deo Gloria

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Ganhei nova fé

Ricardo Gondim

Recebo muitos pedidos para que volte e ser o "Ricardo de antigamente". Impossível voltar ao passado e mais impossível ainda, vestir os andrajos que o tempo corroeu. Muitas coisas perderam ímpeto dentro de mim. Hoje, algumas afirmações se esvaziam antes mesmo de alcançarem meu coração. Certas concepções já não fazem sentido quando organizo a minha existência.

Ganhei nova fé. Não acredito mais na fé como força dirigida a Deus que o induz a agir. Entendo a verdadeira fé como coragem para enfrentar a existência com os valores de Jesus de Nazaré. Fé significa que a verdade vivida e revelada por Cristo basta para que eu encare as contingências do mundo sem desumanizar-me. Minha fé não pretende movimentar o Divino, mas ser pedra de arranque onde impulsiono a caminhada na deslumbrante (e perigosa) aventura de viver.

Já não espero que uma relação com Deus me blinde de percalços. Não acredito, e nem quero, Deus me revestindo com uma armadura impenetrável. Considero um despautério prometer, em meio a tanto sofrimento, que os obedientes e puros passarão pela existência incólumes, sem sofrerem doenças, acidentes, violência.

Ganhei nova fé e considero leviano afirmar que ao orar, mulheres pouparão os filhos de se envolverem com drogas, promiscuidade e outros males. Por que Deus ficaria de mãos atadas ou indiferente diante das opções, muitas vezes atrapalhadas, de rapazes e moças? Seria justo afirmar que se os pais não vigiarem, Deus permitirá a perdição eterna dos filhos? Como Deus induz alguém a se arrepender? Ele força e arrasta, em resposta ao pedido dos pais? Não seria mais responsável ensinar que a "salvação" dos filhos não depende tanto de uma intervenção divina, mas do exemplo dos pais?

Tanto na Bíblia hebraica, o Antigo Testamento, como no ministério terreno de Jesus, há relatos de que Deus se recusa a manipular e coagir para trazer qualquer pessoa para si. Deus é amor. Quem ama se faz vulnerável ao abandono. Um exemplo clássico vem do profeta Oséias que encarnou repudio semelhante ao de Iahvé.

Quando Israel era menino, eu o amei, e do Egito chamei o meu filho. Mas, quanto mais eu o chamava mais eles se afastavam de mim (11.1).

No Evangelho de Lucas, Jesus lamentou sobre a cidade de Jerusalém que, além de repetir o antigo hábito de perseguir os profetas, agora o rejeitava:

Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram! (13.34).

Ganhei nova fé e deixei de acreditar que os que cumprem ritos religiosos vivem um céu de brigadeiro. Não imagino que, ao obedecer corretamente os mandamentos, o mar da vida pare de ser arriscado.

Ganhei uma fé que não precisa orar de olhos fechados, debulhar terços em rezas, pedir ajoelhado, fazer campanhas, interceder ferozmente em vigílias e clamar aos gritos. Sei que o paganismo rodopia nessa lógica, mas agora entendo que Cristo a negou. As vãs repetições acabam expressando a voracidade de uma espiritualidade que contempla ganhar o que outros mortais não conseguiram. Considero esse tipo de devoção puro clientelismo. Murros em ponta de faca, que misturam ilusão com uma esperança bem parecida com os anseios da tartaruga que sonha com as alturas, mas é obrigada a respirar o pó da estrada.

Ganhei uma fé com demandas éticas. Não seria indigno um cristão pedir que Deus lhe ajude a passar em concurso público? Sim, esse tipo de oportunismo em nome de Deus é aberração ética. Em uma enconomia como a latino americana que gera excluídos, não cabe rogar que “o Senhor abra uma porta de emprego”. Não faz sentido conceber que o Todo Poderoso esteja, não se sabe por quais critérios, a recolocar seus eleitos no mercado de trabalho. Ganhei uma fé que luta por mais justiça nos chamados países emergentes, com bolsões miseráveis, onde bilhões sobrevivem com menos de 1 dólar por dia.

Já me indispus com grandes segmentos religiosos. Noto, sim, as idealizações de um movimento que deseja ser tratado como o próprio reino de Deus. Inundado de insinuações de que estou em crise, crisolo, mudo de pele, revisto-me de maturidade. Repito o padrão paulino: "deixo as coisas de menino". Sei que muitos jargões piedosos cumprem o papel ideológico de afastar as pessoas da realidade empurrando-as para o delírio religioso. Mas nesse caso religião e ópio são iguais.

Soli Deo Gloria

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Justiça é o perdão e não a condenação


Justiça é o perdão e não a condenação.

A condenação já ocorreu quando foi praticado a injustiça.

Mas o perdão restaura esta prática.

Deixe seu anseio por justiça ser abraçada pelo perdão e não pela condenação.

Justiça é o sorriso de perdão da criançinha que sopra sobre a dor da ferida que o amiguinho fez, e não a pedra que estava na mão há alguns segundos.

Ela agora foi largada no chão.

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quarta-feira, 27 de abril de 2011

Como é difícil pensar fora da caixa

Ricardo Gondim
Os mais idosos ganham certos direitos com a idade. Não precisam esperar em filas, têm desconto nas bilheterias dos teatros e, no Brasil, não pagam passagem de ônibus. Envelhecer tem outras vantagens menos óbvias. Os mais experientes ganham o privilégio, por exemplo, de se zangarem. Permitimos que reclamem dos barulhos inconvenientes, de casa mal arrumada e de outros detalhes que chateiam. 

Estou longe de tornar-me um velho, mas já reivindico pelo menos um privilégio: quero o direito de me aborrecer com pessoas preguiçosas para pensar. Descobri também um horror: o universo dos indolentes mentais é muito maior do que jamais imaginei. Dou exemplo. Um aluno de teologia visitou meu site e mandou a seguinte mensagem: 

“Ricardo, meu professor advertiu-me que você vem escrevendo muitas heresias e que eu devo fugir de sua influência perniciosa. O que você tem a me dizer? É verdade”? 

Confesso que meu sangue cearense, “cabra da peste”, ferveu. Tive vontade de jogar qualquer escrúpulo às favas, vestir o uniforme de idoso, e responder ao noviço: “Senhor bobão, você acabou de acessar um site com centenas de textos que escrevi nos últimos quatro ou cinco anos. Por que não se dar ao trabalho de ler e tirar, por você mesmo, algumas conclusões?”. 

Imaginei que feriria a sensível piedade do jovem. Apaguei a mensagem, contei até dez e não respondi nada. Mas fiquei remoendo, com vontade de escrever uma única frase: “Realmente, não parece justo que haja tanto empecilho para a liberdade e que seja tão fácil aceitar cabrestos”.

Pensar não é difícil. Pode ser perigoso, mas não é complicado; pode ser trabalhoso, mas não é proibido. 

Prefiro correr o risco de me expor às ameaças de um grupo que me rotula como herege peçonhento a ser encabrestado por um mestre obtuso e preconceituoso. É muito mais digno ter opinião própria do que regurgitar preconceitos mal digeridos por alguém.

A religião tenta preservar-se. Para isso, cria “guantánamos”. Os “Galileus”, que ousam afirmar suas constatações, são odiados por sacerdotes até que se retratem. 

Quando alguém se arrisca e pisa fora do quadrado, é caçado, como João Huss que não se conformou com as viseiras farisaicas que lhe foram dadas. Alguns, como Martin Luther King, que não se curvou ao status quo, precisam sumir.

A religião de certezas não tolera uma espiritualidade que aceite quaisquer incertezas. O fariseu precisa de sistemas herméticos para que sua opinião permaneça. Na base da certeza religiosa está a escassez de diálogo. Merecem castigo os que se abrirem à  verdade que não consta nos autos de fé. Diante do dogmatismo, quem se atreve a pedir explicações ganha o exílio.

A elite eclesiástica rotula de apóstata quem tenta olhar por cima das cercas dadas. Ela acha danoso ver se há vida fora do seu pequeno catecismo. Ao religioso não interessa defender o livre pensar. Melhor criar um ambiente de ojeriza aos “rebeldes” para que se duvide o que eles afirmam antes de mesmo de ser dito.

Lamentavalmente, o problema não vem só do censor. Nem todos gostam da liberdade, alguns preferem a canga, o jugo do espírito de manada; cabisbaixos, obedecem, odeiam, rejeitam, sem questionar.

Há momentos em que as prerrogativas do velho me dão vontade de gritar: “Pense, amigo. Por favor, pense!". Outras vezes fico piedoso e quero, de joelhos, implorar: “Meu irmão, leia; busque adquirir a maior riqueza que alguém pode possuir: o bom senso”.

Acho que já tenho idade de confessar nervosismo com gente que se deixou massificar pelo ambiente religioso. Aprendi na internet o hashtag #faleiepronto; então, vai lá o meu: "Não suporto mais conversar com pessoas que se contentam em repetir jargões e não têm coragem de assumir todas as consequências do que acabaram de dizer". 

Mesmo que fique cada dia mais complicado ler mensagens iguais às que recebi do jovem seminarista, estou decidido: vou continuar. Repartirei ideias, percepções e sentimentos que me são caros. Meu único desejo é contribuir com nossa humanização.

E que Deus me ajude!

Soli Deo Gloria

A Entropia da Instituição

Paulo Brabo - A Bacia das Almas

Foi no dia do lançamento do O que eles estão falando da igreja; conversávamos, os autores que iam chegando, ao redor de uma mesa da cantina do Mackenzie e eu fiz uma das minhas intervenções usuais contra a instituição. Imediatamente, com doses iguais convicção e provocação, o Alessandro Rocha (que eu havia conhecido naquele momento) reagiu apaixonadamente:

– Mas o que é você está dizendo, Brabo? Até parece que você não sabe que a Bacia é uma igreja! Já faz algum tempo que venho pensando em escrever sobre isso, que a Bacia das Almas do Paulo Brabo é uma instituição e que é sem dúvida uma igreja.

E com essa verdade despiu-me ali mesmo, embora tenha tido a gentileza de não delatar-me diante do auditório quando “compomos a mesa” um ao lado do outro alguns minutos mais tarde.

Fazendo isso, o Alessandro (que de resto, e inclusive por isso, descobri naquele dia ser um cara absolutamente notável) abriu uma ferida que venho tentando tratar pelo menos desde meados de 2007. Em retrospecto, foi justamente a convicção de que estava criando uma igrejinha que me fez recolher deste sáite a caixa de comentários, para evitar (ou pelo menos retardar) a ilusão de que formávamos aqui alguma espécie de “comunidade”.

Embora exista oficialmente desde 2004, a Bacia não tomou fôlego até o dia em que fomos encontrados e levados a sério pelo Volney Faustini, isso talvez em algum momento de 2005. Nesse intervalo escrevi protegido e abençoado pela convicção de saber: publico “e ninguém lê” (como me disse naquela época minha irmã Alice, para me incentivar).

O que venho ponderando desde 2007, porque venho lutando contra ela de forma mais ou menos consciente desde aquela época, é essa curiosa e avassaladora tendência humana a institucionalizar (e assim anular) as boas intenções, tendência que mostra-se mesquinha o bastante para se materializar até mesmo em mim, que dou testemunho aberto contra ela, e entre aqueles que afirmam concordar comigo quando digo isso.

Acabei tendo de concluir que a institucionalização tem sua própria entropia, sua própria e particular lei da gravidade. Uma das leis da termodinâmica explica que os sistemas deixados por si mesmos tendem ao caos e à desordem; isso explica, para dar um exemplo que é uma enorme simplificação, porque a mais impecável das casas tende a ficar suja e bagunçada a não ser que você dispenda energia lutando contra essa tendência irreversível. Mas a termodinâmica explica também que a desordem é uma tendência irresistível precisamente porque é na desordem – ou mais, propriamente, na “perfeita desordem interna” – que os sistemas encontram o equilíbrio. Uma casa limpa e arrumada é difícil de manter (isto é, requer para manter-se o dispêndio periódico de energia) justamente porque é uma casa limpa e arrumada é coisa tão evidentemente contrária ao luxuriante caos que se encontra de modo natural no mundo físico.

Esse é o ritmo das coisas no universo físico, mas os sistemas culturais criados pelo homem conformam-se à tendência inversa. Deixados por si mesmos, os sistemais humanos tendem não ao caos (e portanto ao equilíbrio), mas à ordenação, à petrificação e à sistematização. As iniciativas humanas tendem à institucionalização. Os mais selvagens e bem intencionados dos ideais humanos tendem a ser sequestrados a apropriados para sustentar a ordem e a permanência do sistema; nessa entropia inversa, Jesus passa a ser usado como credencial de impérios e Che Guevara se reduz a uma estampa numa camiseta de marca.

A fim de se lutar contra essa tendência dos sistemas humanos à institucionalização é necessário o dispêndio periódico – melhor seria dizer contínuo – de energia. Os movimentos humanos mais vivos e vitais tendem à mumificação e à esterilidade, e essa tendência só pode ser domada enquanto lutamos deliberadamente e continuamente de modo a manter acesa a sua subversão. Num sistema físico, requer-se o dispêndio de energia para se manter a ordem; num sistema cultural, requer-se o dispêndio de energia para se evitá-la. A energia que nos mantém à salvo da petrificação cultural se chama espírito.

Os sistemas humanos tendem à ordem porque em grande parte acreditamos que é a ordem – a iniciativa civilizadora de lutar contra o caos, a decadência e a deterioração – que nos torna humanos. A contradição está em que, embora se alimente dessa intenção tipicamente humana de perpetuar o que é bom, a instituição acaba perpetrando a morte prematura da vida que se propunha a preservar. Consequentemente, para lutar contra a instituição, isto é, para lutar a favor da vida e gerar a raríssima semente da ressurreição, é preciso abraçar – continuamente, deliberadamente, subversivamente – a morte.

Permitam-me então anunciar às claras o que deveria ser evidente, que a Bacia está morrendo e há muito tempo, que está em franco declínio e que sua a única chance de exercer a sua vocação é precisamente morrendo e fechando as portas. Periodicamente dispendo alguma energia na tentativa de retardar o processo humano, que está também em mim, de transformá-la numa instituição. Assim recolho os comentários, assim recuso-me a dar qualquer entrevista, assim declino a todos os pedidos para visitar igrejas e fazer palestras. Trata-se de conduta muito artificial, isto é, requer muita energia, e a requer sempre. Mas ninguém pode lutar contra uma tendência que mata sem dispor-se a morrer periodicamente.

Fique então declarado que a Bacia vai acabar, que está definhando aos poucos e que seu momento final está cada vez mais próximo. Se tudo der certo, eu mesmo e o corpo que fala por mim sobreviveremos a ela, porque nada vale o preço de institucionalização alguma.

E enquanto estou dispendendo a energia necessária para desiludi-lo, meu caro e impenitente leitor, será conveniente lembrá-lo e lembrar-me de quem na realidade sou. Dois livros amarrados às pressas não bastam para esconder os fatos: não sou escritor, não tenho curso superior e duvido continuamente ser o que sempre digo que sou, ilustrador; o testemunho que posso dar é que sou um cara, um ser humano, com tudo de maravilhoso e de mesquinho e de contraditório que a palavra implica. Quando você se sentir tentado a pensar no meu nome ou nas minhas ideias com um mínimo que seja de autoridade ou de solenidade – “como afirma Paulo Brabo”, – esta é a precisa hora de você rever os seus conceitos e de lembrar com quem e de quem está falando.

Nesta confissão sazonal será preciso lembrar que interessam-me não só as pérolas mas também os porcos. Minha alma não fixou residência nas ideias sobre Jesus, na história da igreja na contradição das teologias; frequento com obsessão igual ou maior – e com igual superficialidade – tudo que diz respeito a arqueologia, filologia, ufologia, cinema, software, Segunda Guerra Mundial, sexologia, história, literatura, filosofia indiana, antropologia, fotografia, canetas, cadernos, música pop e brega, histórias de terror, psicologia, neurologia, relíquias de santos, exploração espacial, pintura, filmes de monstro, história da arte, ficção científica, cabala judaica, vodu, alquimia, biologia, culinária árabe, indiana e italiana, aldeias medievais, nudismo, azulejos, literatura de cordel, assassinatos em série, espadas, criptozoologia, antropofagia e nazismo, bem como todas as revistas e embalagens e arquitetura e programas de rádio e selos e arte em ferro e músicas de baile, desde que não sejam da nossa época.

Sou um cara muito tímido mas sinto-me perdidamente atraído por aglomerações humanas, especialmente aquelas mais arbitrárias e transitórias, coisas como feiras, rodeios, exposições-feiras, filas de refeitório e manifestações políticas. O calor altera o meu humor sempre para o pior, mas sinto-me irresistivelmente atraído pela praia no verão – porque é ali que estão as pessoas, e porque emprestam seu charme e sua bendita contradição ao que sem elas seria meros sol, sílica e água salgada, três coisas que uma infinidade de outros planetas além do nosso seriam capazes de oferecer.

Já fui visto por pessoas vivas cavando poços mortos, fazendo salada de frutas, pulando fogueiras, roubando galinhas, beijando homens, despindo mulheres, matando animais, andando descalço em shopping centers, tomando banho pelado em rio, visitando prostíbulos, entrando em boates, saindo de motéis, dando conselhos matrimoniais a sacerdotes, conversando com prostitutas, furando filas, fazendo sexo, dando cursos de vendas, registrando empresas, contratando advogados, fazendo serenatas de amor, esquecendo datas importantes, aceitando tratamento preferencial, cobrindo telhados de casas, criando publicidade para vender produtos de que ninguém precisa – algumas dessas coisas com atenuantes, outras com agravantes, algumas vezes de graça, outras por dinheiro, o que não muda o fato de que me mantenho disposto a fazer um saudável número delas, não necessariamente nesta ordem.

Tudo que já falei e fiz, bem como tudo que deixei de fazer, pode ser mal entendido e será mal entendido e pode muito tranquilamente ser usado contra mim. Não fiz nenhum voto de pobreza, de silêncio ou de castidade, e provavelmente não os recomendaria a ninguém. Com o passamento de Krishnamurti, não deve haver guru que lute de modo mais consciente para se manter antiguru: para se manter menos sério, mais promíscuo, menos confiável, menos estável, mais inclassificável, menos coerente.

Que essa enumeração sirva para lembrar não só que para não ser uma instituição é preciso manter-se uma pessoa, mas que para não ser uma instituição é preciso manter-se um corpo.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Espiritualidade Pós-moderna

Frei Betto
Escritor e assessor de movimentos sociais
Adital

O que caracteriza os tempos pós-modernos em que vivemos, segundo Lyotard, é a falta de resposta para a questão do sentido da existência. Por enquanto, estamos na zona nebulosa da terceira margem do rio.

A modernidade agoniza, solapada por esse buraco aberto no centro do coração pela cultura da abundância. Nunca a felicidade foi tão insistentemente ofertada. Está ao alcance da mão, ali na prateleira, na loja da esquina, publicitada em todo tipo de mercadoria.

No entanto, a alma se dilacera, seja pela frustração de não dispor de meios para alcançá-la; seja por angariar os produtos do fascinante mundo do consumismo e descobrir que, ainda assim, o espírito não se sacia...

A publicidade repete incessantemente que todos temos a obrigação de ser feliz, de vencer, de nos destacarmos do comum dos mortais. Sobre esses recai o sentimento de culpa por seu fracasso. Resta-lhes, porém, uma esperança, apregoam os que deslocam a mensagem evangélica da Terra para o Céu: o caráter miraculoso da fé. Jesus é a solução de todos os problemas. Inútil procurá-la nos sindicatos, nos partidos, na mobilização da sociedade.

Vivemos num universo fragmentado por múltiplas vozes, frente a um horizonte desprovido de absolutos, com a nossa própria imagem mil vezes distorcida no jogo de espelhos. Engolida pelo vácuo pós-moderno, a religião tende a reduzir-se à esfera do privado; olvida sua função social; ampara-se no mágico; desencanta-se na autoajuda imediata.

Nesse mundo secularizado, a religião perde espaço público, devido à racionalidade tecnocientífica, ao pluralismo de cosmovisões, à racionalidade econômica. Sobretudo, deixa de ser a única provedora de sentido. Seu lugar é ocupado pelo oráculo poderoso da mídia; os dogmas inquestionáveis do mercado; o amplo leque de propostas esotéricas.

A crise da modernidade favorece uma espiritualidade adaptada às necessidades psicossociais de evasão, da falta de sentido, de fuga da realidade conflitiva. Espiritualidade impregnada de orientalismo, de tradições religiosas egocêntricas, ou seja, centradas no eu, e não no outro, capazes de livrar o indivíduo da conflitividade e da responsabilidade sociais.

Agora, manipula-se o sagrado, submetendo-o aos caprichos humanos. O sobrenatural se curva às necessidades naturais. A solução dos problemas da Terra reside no Céu. De lá derivam a prosperidade, a cura, o alívio. As dificuldades pessoais e sociais devem ser enfrentadas, não pela política, mas pela autoajuda, a meditação, a prática de ritos, as técnicas psicoespirituais.

Reduzem-se, assim, a dimensão social do Evangelho e a opção pelos pobres. O sagrado passa ser ferramenta de poder, para controle de corações e mentes, e também do espaço político. O Bem identifica-se com a minha crença religiosa. Bin Laden exige que o Ocidente se converta à sua fé, não ao bem, à justiça, ao amor.

Essa religião, mais voltada à sua dilatação patrimonial que ao aprimoramento do processo civilizatório, evita criticar o poder político para, assim, obter dele benefícios: concessão de rádio e TV etc. Ajusta a sua mensagem a cada grupos social que se pretende alcançar.

Sua ideologia consiste em negar toda ideologia. Assim, ela sacraliza e fortalece o sistema cujo valor supremo, o capital, se sobrepõe aos direitos humanos. Como observava Comblin, as forças que hoje dominam são infinitamente superiores às das ditaduras militares.

Aos pobres, excluídos deste mundo, resta se entregarem às promessas de que serão incluídos, cobertos de bênçãos, no outro mundo que se descortina com a morte. Frente a essa "teologia” fica a impressão de que a encarnação de Deus em Jesus foi um equívoco. E que o próprio Deus mostra-se incapaz de evitar que sua Criação seja dominada pelas forças do mal.

Felizmente, nas Comunidades Eclesiais de Base, nas pastorais sociais, nos grupos de leitura popular da Bíblia, fortalece-se a espiritualidade de inserção evangélica. A que nos induz a ser fermento na massa e crê na palavra de Jesus, de que ele veio "para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10).

Fomos criados para ser felizes neste mundo. Se há dor e injustiça, não são castigos divinos, resultam de obra do ser humano e por ele devem ser erradicadas. Como diz Guimarães Rosa, "o que Deus quer ver é a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre e amar, no meio da tristeza. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas cair não prejudica demais. A gente levanta, a gente sobe, a gente volta”.

domingo, 24 de abril de 2011

Oração de Nietzsche: Ao Deus desconhecido

Leonardo Boff

Muitos só conhecem de Nietzsche a frase “Deus está morto”. Não se trata do Deus vivo que é imortal. Mas do Deus da metafísica, das representações religiosas e culturais, feitas apenas para acalmar as pessoas e impedir que se confrontem com os desafios da condição humana.

Esse Deus é somente uma representação e uma imagem. É bom que morra para liberar o Deus vivo. Mas não devemos confundir imagem de Deus com Deus como realidade essencial.

Nietzsche estudou teologia. Eu pude dar uma palestra na Universidade de Basel na sala em que ele dava aulas, quando fui professor visitante em 1998 lá. Essa oração que aqui se publica é desconhecida por muitos, até por estudiosos do filósofo. Por isso no final indico as fontes em alemão de onde fiz a tradução. No original, com rimas, é de grande beleza.

Oração ao Deus desconhecido
Antes de prosseguir no meu caminho
E lançar o meu olhar para frente
Uma vez mais elevo, só, minhas mãos a Ti,
Na direção de quem eu fujo.
A Ti, das profundezas do meu coração,
Tenho dedicado altares festivos,
Para que em cada momento
Tua voz me possa chamar.
Sobre esses altares está gravada em fogo
Esta palavra: “ao Deus desconhecido”
Eu sou teu, embora até o presente
Me tenha associado aos sacrílegos.
Eu sou teu, não obstante os laços
Me puxarem para o abismo.
Mesmo querendo fugir
Sinto-me forçado a servi-Te.
Eu quero Te conhecer, ó Desconhecido!
Tu que que me penetras a alma
E qual turbilhão invades minha vida.
Tu, o Incompreensível, meu Semelhante.
Quero Te conhecer e a Ti servir.

Friedrich Nietzsche (1844-1900) em Lyrisches und Spruchhaftes (1858-1888). O texto em alemão pode ser encontrado em Die schönsten Gedichte von Friederich Nietzsche, Diogenes Taschenbuch, Zürich 2000, 11-12 ou em F.Nietzsche, Gedichte, Diogenes Verlag, Zurich 1994.
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