segunda-feira, 7 de junho de 2010

Os discursos ausentes: Jesus morreu em seu lugar

Paulo Brabo - Bacia das Almas

Para começar por aquilo que incessantemente ignoramos ou esquecemos: a doutrina da morte substitutiva de Jesus (a noção de que Jesus morreu a fim de satisfazer em nosso lugar algum requerimento ligado à coerência interna da divindade) foi articulada pela primeira vez mil anos depois de Cristo, por Anselmo (1033-1109). Talvez seja necessário reler este parágrafo.

A tradição cristã defendeu desde sempre, a partir de indicações do Novo Testamento, a dupla noção de que a morte de Jesus foi de alguma forma necessária, e de que a passagem de Jesus pela terra – incluindo sua vida, morte e ressurreição – ocasionou de um modo misterioso mas inequívoco a Singularidade, a plenitude dos tempos, a redenção dos homens. Porém Anselmo foi o primeiro a tomar sobre a si a tarefa de montar um sistema teológico que explicasse exatamente porque a cruz havia se mostrado necessária, e de que modo a obra de Jesus havia ocasionado a redenção.

E para ele tudo tinha sido uma questão de honra.

Segundo Anselmo, a obrigação primeira de todos os homens é devolver a Deus a honra que lhe pertence por direito. Pecar é essencialmente sonegar a honra devida a Deus: é ao mesmo tempo roubá-lo de sua dignidade e desonrá-lo. O problema está em que, como a honra é a característica mais inegociável da natureza divina, Deus não é livre para perdoar o pecado por um simples ato de vontade: “nada é menos tolerável na ordem das coisas do que uma criatura tomar do Criador a honra que lhe é devida sem repor aquilo que tomou”. O pecado gera um débito, diante do qual a reparação da dignidade divina só pode ser obtida de duas formas: [1] pela punição implacável dos devedores ou [2] pelo satisfação da dívida, o que só ocorre quando se devolve a Deus mais do que foi tirado dele.

A redenção, então, se resumiria nisso: o homem deve devolver a honra que roubou de Deus; como só um homem deve satisfazer esse débito e como só um Deus é capaz de efetuá-lo, foi necessário que o homem-Deus fosse obediente até a morte para reparar essa injustiça e restaurar o prestígio divino.

A teologia de Anselmo (que acabou sendo conhecida como doutrina “satisfacional” ou, de modo ainda mais revelador, doutrina “comercial” da redenção) é, como todas, reflexo rigoroso da época em que foi concebida. A ideia de satisfação era fundamental na justificação do sistema corrente de penitências; a ênfase no ressarcimento era característica da obsessão romana/latina com o Direito Penal; e, finalmente, os conceitos de honra ferida e de compensação da honra através da obediência eram parte essencial da estrutura ideológica do feudalismo em que Anselmo vivia1.

A primeira e maior falha na doutrina de Anselmo é também aquela que geraria mais graves consequências no futuro. Ao limitar a redenção à satisfação de um débito e ao limitar essa satisfação à obediência da cruz, Anselmo isolou a morte de Jesus do restante de sua obra de vida. A obsessão com os méritos da morte acabaria tornando a vida de Jesus irrelevante – como se sua vida não tivesse feito parte parte do seu esforço redentor. Nas palavras de Harnack: “Esse Deus-homem não precisava ter pregado e fundado um reino; nenhum discípulo precisava ter sido reunido: dele só era requerido que morresse.”

Em segundo lugar, se a redenção é essencialmente uma estratégia de Deus para recuperar o seu próprio prestígio, seu motivo não está fundamentado – a despeito da insistência das Escrituras neste ponto – no seu amor aos homens, mas no amor ao prestígio. Anselmo inaugurou um universo em que Deus mandou seu filho ao mundo por sua causa, não nossa. Ao contrário do que parecem insistir os autores bíblicos, a ênfase da reparação não está na reconciliação entre as partes, mas na restauração da mesma sorte de prestígio que um vassalo deve reconhecer ininterruptamente no suserano.

Finalmente, se a satisfação do débito é tão absolutamente incontornável e central na economia da redenção, em que a morte de Jesus tem a significância de uma transferência bancária, Deus é em última instância incapaz de perdoar, ao contrário do que sugerem a Bíblia e a tradição. Se o único modo de apagar a dívida é o inevitável ressarcimento, a fim de aprendermos a perdoar, desligar e esquecer devemos recorrer a um exemplo que não seja Deus. Orar pedindo “perdoa as nossas dívidas” passa a ser uma incorreção teológica e uma temeridade.

A doutrina de Anselmo ganhou poucos aderentes e causou quase nenhum impacto por 400 anos. Seu duvidoso mérito foi ter servido de base para a teologia da Reforma, que ecoa, será inevitável lembrar, com os mesmos temas: pagamento de débito, substituição, a redenção jurídica de uma condenação inalienável.

Lutero começou onde Anselmo havia começado, com a noção de que Deus não é livre para perdoar os pecados por um ato de livre vontade, porque o perdão do pecado não punido seria essencialmente injusto. Porém, ao contrário de Anselmo, que postulava que a redenção visava preservar a dignidade de Deus, Lutero sustentou que o que estava sendo protegido era a ordem moral do universo, que absolutamente requer alguém em quem se descarregar os débitos morais gerados pelo pecado.

Em Lutero a característica incontornável de Deus não é a sua honra, mas a sua justiça. Ao contrário do que havia sugerido Anselmo, a satisfação do pecado não pode ser obtida através da obediência, mas através da punição.

Se Anselmo havia drenado todo mérito da vida de Jesus e concentrado o mérito em sua morte, Lutero deu o passo seguinte nesse projeto de alienação. Para Anselmo, somos resgatados porque Jesus obedeceu quando nós é que deveríamos ter obedecido; para Lutero, somos resgatados porque Jesus foi punido quando nós é que deveríamos ter sido punidos. O mérito da morte de Jesus não foi ativo, como Anselmo havia pensado (obediência), mas meramente passivo (punição). Nas palavras de Jonathan Edwards, o moço:

Ouso dizer ainda que, não apenas a redenção de Cristo não consistiu essencialmente em sua ativa obediência, como sua ativa obediência não teve qualquer papel na redenção.

Se Anselmo havia conferido ao mundo um Deus obcecado com sua própria dignidade, Lutero deu ao mundo um Deus que não apenas imolou o seu Filho Amado, mas derramou sobre ele toda a ira e toda a maldição, porque sua justiça absolutamente requeria que ele descarregasse essas penas sobre alguém. Está dito na Confessão Saxã (1551) de Melâncton: “tamanha é a severidade da sua justiça que não pode haver reconciliação a não ser que a penalidade seja paga. Tamanha é a intensidade da ira de Deus que o Pai eterno não pode ser aplacado a não ser pela morte de seu Filho”.

Em conformidade com isso, Lutero deixou abundantemente claro que o seu Deus era limitado e definido pela justiça e não pelo amor. Seu Deus não tinha obrigação alguma de ser misericordioso, mas absolutamente não tinha como deixar de ser justo.

A Reforma ganhava assim um discurso – em vocabulário contemporâneo, um “diferencial”. Em Lutero a redenção encontrava uma explicação que ganharia tremenda popularidade porque refletia, num momento de absoluta transição, todo o espírito da nascente era Moderna. Ao mesmo tempo em que os homens descobriam e começavam a brincar com as Luzes que conduziriam aos movimentos nacionais e à Revolução Industrial, a Reforma oferecia uma doutrina em que a morte de Jesus não tinha apenas um significado (o que muito evidentemente não lhe bastava), mas uma lógica e um mecanismo: uma utilidade.

De tão imbuídos que estávamos no espírito dos tempos, tornamo-nos incapazes de enxergar que uma doutrina que nega qualquer significado ao trajeto terreno da encarnação, que não vê mérito na obediência do Filho do Homem, que postula um Deus incapaz de perdoar sem o recurso da satisfação, um Deus que é Justiça em tamanho grau que não pode dar-se ao luxo de ser Amor – não tem direito a requerer para si qualquer relação com o Deus de Jesus.

Porque, se em última instância o pecado não pode ser perdoado sem o gosto da satisfação, Lutero revelou um mundo em que a graça não é efetivamente graça e efetivamente não pode ser. Este é um universo em que tudo requer pagamento, em que nada pode ser livremente perdoado e em que toda condenação é inalienável (embora algumas sejam felizmente transferíveis). Na doutrina de Lutero Deus não vence a Lei, mas é vencido por ela mesmo no seu mais glorioso instante. A misericórdia não triunfa sobre o juízo, porque o juízo é de pedra e nem mesmo Deus pode conferir a ele um coração de carne.

O curioso está em que o Novo Testamento não nega que o pecado gera um débito; tanto em Jesus quanto em seus cronistas, a ideia de dívida é uma das figuras mais comumente associadas à noção de transgressão. Porém, ao contrário do que sugerem Anselmo e Lutero, a posição da boa nova não é de que o débito requer inescapavelmente o pagamento por parte do devedor ou de um seu substituto. Ao contrário; os evangelhos insistem que a solução da Magnanimidade para o débito não é a satisfação, mas a clemência, o indulto, o perdão: assim no batismo, assim nas parábolas, assim no “setenta vezes sete”, assim na oração do Pai Nosso, assim na absolvição dos executores diante da cruz. “A miseriórdia triunfa sobre o juízo” quer dizer isso mesmo: o amor triunfa sobre a satisfação.

Cada um a seu modo, Anselmo e Lutero abraçaram a Empresa Teológica, que é o esforço muito humano e contraditório de tentar defender a qualquer custo aquilo que em cada momento da história é tido como a coerência interna da divindade. A teologia nasce do amor à ordem, não do amor a Deus. Anselmo afirma claramente que sua doutrina parte do pressuposto de que o universo não deve permanecer desordenado (inordinatum). Não é de admirar que tanto ele quanto Lutero tenham defendido com unhas e dentes a teoria da satisfação, porque é uma doutrina que impõe alguma lógica sobre o que parece não ter razão alguma. No fim das contas o perdão puro e simples representa a maior e mais espetacular das desordens, e esse escândalo os homens moverão terra e céu para deslocar de seu campo de visão.

O Deus da Bíblia, ao contrário do que sugerem essas distrações, é inteiramente incapaz de encontrar satisfação na agonia, na punição e no castigo, que representam mais adequadamente as preferências de Moloque. Muito claramente, e disso dão testemunho todas as parábolas (que são a expressão mais precisa da realidade da redenção), o que pode satisfazer a divindade é somente a integridade voluntária, somente o retorno filial, somente o abraço incondicionado da demanda pela bondade, pela aceitação e pelo amor. É quase criminoso que tenhamos demorado tanto tempo para condenar a noção de que Deus possa se satisfazer com menos.


Leia também:
O amor é mais severo do que a justiça
O clamor que provoca
A sedução da ortodoxia



NOTAS
1. “O pecado”, explica Anselmo, desligando o conceito do campo da ética e deslocando-o para o da política, “é uma afronta à sua infinita majestade”.
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