sábado, 8 de janeiro de 2011

A sua recompença

Aí vem você argumentar que é o Estado – o monstro opressor – que dá dinheiro dos contribuintes para os miseráveis gastarem com cachaça e não trabalharem – e eu lhe pergunto três coisas: por que é inadmissível que os pobres não possam ser preferidos pelo governo, pela igreja, pelo Estado, por quem quer que seja, se do ponto de vista do cara mais revolucionário que já houve não há nunca imparcialidade, são as vítimas sempre a serem preferidas? E, além do mais, se o governo está fazendo aquilo que você deveria fazer – dar o dinheiro aos pobres? De onde saiu a regra de que pobres não podem ter seu dinheiro de forma autônoma? A regra de que eles precisam ser porteiros, empregadas domésticas, babás, motoristas, de que eles só valem quando vendem sua força, seu vigor e seu saber prático para o gozo dos poucos de sempre? De onde saiu a regra de que os pobres não podem gastar seu pouco dinheiro da forma que bem entenderem, assim como eu e você gastamos insensatamente o nosso salário?
O princípio mais demoníaco dos últimos dois séculos é o da igualdade de oportunidade. Igualdade de oportunidade é como colocar pra concorrer numa prova de atletismo um rapaz de cadeira de rodas e um atleta. As oportunidades são iguais, as condições, não. Além do mais não gosto da igualdade por si mesma: eu gosto das diferenças! (Veja, eu não disse desigualdade – que é terrível – mas diferenças).

E a luta por igualdade é justamente a luta para que os diferentes possam igualmente manifestar sua vida e seu modo de estar, de falar, de cantar, de abraçar, de se vestir, de dançar e de tomar banho. Nesse caso, eu quero um Estado que trate os desiguais como desiguais: a quem tem menos (dinheiro, poder, saber, espaço) seja dado mais e primeiro; quem tem mais, já tem sua recompensa!

Eu quero um país das cotas raciais e do ProUni (porque negros e brancos, alunos de escolas niveladas e de escolas modelares, nunca tiveram igualdade de condições e não teriam oportunidades iguais), quero o país da Bolsa-Família (porque pobres e ricos nunca comeram as mesmas coisas e não poderiam gozar do mesmo sabor de gastar o seu dinheiro como bem entendem), quero o país das comunidades quilombolas, das reservas indígenas, dos assentamentos bem-estruturados, da agricultura familiar camponesa (porque esses povos nunca tiveram as mesmas condições dos brancos, ricos, urbanos e agroindustriais).
[...]

Na verdade, eu quero o Não-Estado, o Despoder; eu quero a festa de corpos livres, de desejos ardentes, de danças, de músicas, de comida farta, de uma mesa única com todo mundo junto; mas essa realidade que parece impossível, é o Reino do Deus do impossível, que trabalha por nossas mãos, sua por nossos poros e chora com nossos prantos, e que não acontecerá sem a luta incessante contra aqueles que querem acumular, que criam barreiras de separação, que não gostam da inclusão de mais gente, que não querem a participação dos pobres, dos pretos, dos bêbados, dos analfabetos, das crianças, dos poetas e das mulheres!

Por ora, enquanto o Reino não chega, só devemos manifestar a festa da vida em nossa vida, junto de quem está perto de nós, contra a discriminação e a repressão, pela liberdade, pelas diferenças, pela diversidade. Agora, o momento é de não permitir que as forças reacionárias do escuro impeçam a aurora de continuar a clarear o dia. A salvação não virá do governo, mas a continuidade de um governo que permite a liberdade ampla da expressão, que distribui renda, que tira pobres da pobreza e dá voz a quem não tinha é fundamental para destruirmos esse Brasil capenga, dividido e opressivo e tirar de dentro dele o outro Brasil vibrante, colorido, dançante e flamejante, contra o poder e com sabor de vida!

Rondinelly Gomes Medeiros, aplicando curativa Soda Cáustica

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A sucessora

Ma otto son lunghi
Adriano Celentano, em O rapaz da via Gluck


Agora que o presidente desceu a rampa, recebi permissão para falar.
Como se sabe, meu cinismo essencial não apenas estende-se à política, mas deve-se em grande parte a ela. Sobre democracia não chego a compartilhar todas a descrenças de Lovecraft, mas endosso sem qualquer dúvida a iluminada desilusão de Tolkien. Como a esta altura também ninguém deve ignorar, não me considero de esquerda, mas pendo periodicamente em direção a ela devido à minha impenitente simpatia para com o cristianismo e sua insensata ênfase distributiva; pela mesma razão, não sou de direita e nem teria como ser.
Meu respeito para com o ideal cristão, no entanto, é grande demais para que eu me contente com a esquerda; como já devo ter dito antes, o problema com o socialismo é ser ao mesmo tempo idealista demais e de menos. Em termos políticos, só me resta afirmar um anarquismo cristão como esboçado no Novo Testamento, que entende a implantação do reino de Deus como o fim de todos os governos: a formidável negação de toda estrutura de poder e de dominação, em todos os níveis, por mais bem-intencionadas que se mostrem. A negação da legitimidade dos poderes, ao contrário do que tememos os fariseus de todas as eras, não é o reinado do caos: é o intransigente reino da liberdade, da ternura e da responsabilidade universais, em que o regime do amor se prova mais severo do que o da justiça. Muito declaradamente, Deus esvaziou-se em Jesus a fim de mostrar que onde não há poderes, há o reino de Deus. Deus é Despoder.
Naturalmente, um regime subversivo dessa natureza só pode ser implantado de baixo para cima. Por definição os anarquistas não devem se organizar, pelo que a do reino, por vocação, é a revolução que não será televisionada.
Enquanto isso os poderes continuam a dançar, e é uma dança de discursos e portanto de polarização. No que diz respeito à recente ascensão da esquerda no Brasil, interessa-me menos a esperança (quem sabe infundada) que despertou em alguns do que o temor que despertou em outros.
Porém o fascínio de Lula é maior do que o da esquerda; sua importância não se esgota na sua lealdade (ou não) ao ideal socialista. Em grande parte, a singularidade desses oito anos reside no espaço negativo que circundou a figura do ex-presidente – na natureza daquele vasto tudo-aquilo-que-não-é-Lula. Faz pouca diferença se você enxerga Luis Inácio da Silva como uma estrela cujo brilho ofuscou todas as outras ou como um buraco negro que arrastou para dentro de si as energias que serviriam para iluminar o mundo. São anos que ficarão marcados menos pelo que Lula fez ou deixou de fazer do que pelo que ele gerou (e deixou de gerar) ao redor de si.
Em primeiro lugar, o duplo mandato de Lula deixou claro que a democracia no Brasil basta para permitir que qualquer um chegue efetivamente ao poder; essa mesma revelação mostrou ser motivo de júbilo para uns e de horror para outros. Nesse sentido, foram oito anos de comunitária nudez, a reação que oferecemos à ascensão e à postura de Lula dizendo sempre mais sobre nós mesmos do que sobre ele.
Em segundo lugar, há o fato incontornável (já observado por habitantes dos dois hemisférios da esfera política) de que o governo Lula não teve oposição organizada. Trata-se de feito singular por muitas razões, e a menor delas não está em que – depois de duas décadas do seu exemplo – a direita poderia ter aprendido com o PT como se faz oposição eficaz.
Nesses oito anos a direita teve o lastro da revista VEJA, de Reinaldo Azevedo, de Diogo Mainardi, de Olavo de Carvalho, de um canal de TV ou outro, de articuladíssimo blogueiros, de milhões de dólares em empresários e de setecentos milhões de mensagens de email circularmente encaminhadas. Essas vozes denunciaram o presidente Lula como um analfabeto, um despreparado, um vagabundo, um bêbado e uma vergonha nacional, mas deixaram de produzir a derradeira evidência que seria capaz de comprovar o seu próprio cacife para emitir essas opiniões. Os letrados, os preparados, os trabalhadores, os sóbrios e os notáveis da direita mostraram-se incapazes de espremer de suas fileiras uma única voz – uma que fosse, minha gente, dentre tanta gente preparada – capaz de articular publicamente a sua posição e de representar uma alternativa ao governo e oferecer-lhe verdadeira oposição. Durante décadas Lula representou a oposição e falou em nome dela; durante o seu governo não houve um único candidato a candidato a expressar com um pingo de carisma ou autoridade a posição e as ressalvas da direita.
Acho isso grave porque estou também absolutamente convicto que não faz bem a ninguém governar sem oposição – mesmo que se trate de um governante tão claramente bem-intencionado quanto Lula. Cheguei a cogitar de, por amor à esquerda, fundar um articulado partido de extrema direita, para que Lula pudesse beneficiar-se de uma oposição e do saudável contrapeso de um adversário. Mas o que deixei de fazer por amor à esquerda os direitistas mostraram-se incapazes de fazer por amor à sua própria causa. Lula manteve a sanidade e o equilíbrio mesmo sem um opositor para refreá-lo, coisa que não pode ser dita sobre os governantes que o antecederam.
Finalmente, há o enorme espaço que Lula deixou para trás agora que passou de si a faixa. A lacuna é tão grande que Dilma Roussef, mesmo que tivesse em seu favor alguma visibilidade anterior e algum carisma pessoal, não teria como começar a preencher. Por décadas Lula representou o carisma na oposição e por oito anos no poder; agora que desceu a rampa, deixou-nos sem o conforto de um ou de outro.
Dilma nunca foi minha candidata (muito menos Serra, fique claro) e não a conheço; só sei dela que Lula por alguma razão (talvez bem-intencionada, mas sem dúvida política) impôs sobre ela sua benção. Será injusto esperar que qualquer outro representante da esquerda se mostre tão terno e equilibrado quanto Lula; será inocente esperar que qualquer representante da esquerda sem o seu carisma seja tolerado por tanto tempo por uma direita que representa os que têm tanto a perder.
Deste posto, do terceiro dia de quatro anos dos quais nada sei, só posso prever que Dilma, se sobreviver até o final de seu mandato, será inevitavelmente seguida por um candidato de direita.
Há, porém, uma esperança: talvez Lula, o despreparado filho do Brasil, se levante para preencher a lacuna que seus adversários se mostraram impotentes para oferecer. Se quiser, Lula pode muito bem representar a oposição capaz de manter o equilíbrio de Dilma. Quem sabe Lula seja grande o bastante para fazer aquilo de que nenhuma esquerda do mundo foi capaz: assegurar simultaneamente a perpetuação e a singeleza do seu ideal.

Leia também:
Capitalismo, socialismo, alienação e o capeta
Anarquia e cristianismo



fonte: A Bacia das Almas - escrito por Paulo Brabo

A árvore que chora


A árvore que chora
Col. Camargo

"Nos campos e queimadas não se vê o canto dos passarinhos. Tudo perde a sua graça. A mata que é vida dos pássaros e dos homens, aos poucos vem transformando a floresta em um sertão isolado.

Os Pássaros também sentem o desmatamento. Uns choram seus ninhos desbaratados e outros seus filhotes, esmagados pelas árvores tombadas pelo homem, que se diz inteligente.

A floresta é o véu da terra que sustenta o oxigênio, além disso, existe um verde vivo e outras cores que ninguém consegue definir. Enfim, para pintar uma mata do jeito que ela é, sem o sumo das plantas é impossível". (Hélio Melo, in: A experiência do Caçador e Os Mistérios da Caça)

Fonte: Hélio Melo - A Arte imita a Vida 
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