sábado, 10 de abril de 2010

O que havia sido usurpado

Paulo Brabo - www.baciadasalmas.com

Quando dá a um pobre você não está dando do que é seu,
está devolvendo o que pertence a ele.
Você é quem havia usurpado o que é comum,
aquilo que foi dado para o comum benefício de todos.
Ambrósio de Milão

A ganância, que é idolatria, não é o desejo de acumular riquezas e não é o anseio pela aparente liberdade que as riquezas podem comprar. O verdadeiro motor da ganância é um fetiche mais profundo, mais oculto e mais raramente expresso em palavras, pois trata-se do desejo pelo direito de não depender de ninguém, o vertiginoso direito de poder viver sem qualquer consideração pela vontade e pelas necessidades dos outros.

Em última instância, a ganância é o anseio pelo distanciamento completo dos embaraços do mundo, e seu impulso subjacente é uma completa negação do mundo. A seu modo, portanto, a obsessão pela acumulação de bens é uma espécie de ascetismo, uma forma de negar e afastar-se das complicações da vida. Nosso sonho mais rigoroso é acumular bens e riqueza até que o mundo exterior não tenha absolutamente qualquer modo de nos atingir, até que estejamos perfeitamente a salvo e perfeitamente distintos do mundo.

É precisamente essa ilusão de isolamento a denúncia da parábola registrada por Lucas no décimo-segundo capítulo de seu evangelho, a história do homem rico que decidiu encarcerar-se em celeiros com suas provisões e bens, porque havia angariado suficiência “para muitos anos”. Esse homem havia satisfeito idealmente o coração secreto da sua ganância, porque era (ou se julgava) finalmente independente de tudo e de todos. A história escancara que essa sua autonomia é ilusória, pois explica que Deus decidira secretamente requerer a sua vida naquela mesma noite. Porém, em termos estritos, o homem já conseguira adquirir em vida a estirpe de morte que escolhera para si mesmo, porque a completa separação do mundo e das pessoas, embora seja o alvo ideal de toda a ganância, é uma espécie muito literal de morte. Na história o protagonista deve morrer na mesma noite em que planeja sua independência – porque, no fim das contas, já escolheu a morte. Estando plenamente suficiente, separado das contingências da vida e das necessidades dos outros, já está morto.

Acumular riquezas é construir defesas contra o mundo, e nisso a ganância é indistinguível de qualquer outra obsessão com a morte. Que os ricos e os gananciosos são obcecados pela morte é evidente no que negam a morte continuamente. Recusam-se a mencionar a morte ou a reconhecer o seu poder, mas vivem construindo contra as contingências da vida barreiras que lhes pareçam suficientemente seguras. Todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum. E vendiam suas propriedades e bens e os repartiam por todos, segundo a necessidade de cada um.O homem rico vive percorrendo os limites da sua propriedade, estudando vulnerabilidades e planejando ampliações; ele teme encontrar alguma brecha em seus muros, porque não quer deixar entrar qualquer traço de vida e, consequentemente, de morte.

Quando escolhem neste ponto despojar-se de seus bens em favor de todos os outros, os integrantes da comunidade do espírito estão fazendo precisamente o trajeto contrário, isto é, abraçam sem intermediários a vida e a morte, o mundo e as pessoas. O homem rico da parábola decide construir para si celeiros que deveriam funcionar como barreira efetiva contra a entrada do mundo; inversamente, ao despojar-se dos seus bens os romeiros de Pentecostes estão baixando suas defesas, demolindo as muralhas que os protegiam.

Séculos depois, devidamente iluminado por essas coisas e estarrecido diante delas, coube a Proudhon proclamar sucintamente que “propriedade privada é roubo”. Como observou meu amigo Dan Oudshoorn, isso não quer apenas dizer (como disseram, ver acima, pais da igreja como Ambrósio de Milão) que acumular bens é subtrair sem autorização de um patrimônio que Deus designou a todos e não apenas a alguns; ceder às tentações da propriedade privada não é apenas roubar dos pobres, é roubar a nossa humanidade de nós mesmos – precisamente porque nossos bens acabam exercendo a obscena função de barreira intermediária entre nós e o mundo, entre nós e os outros.

Acumular bens é confessar que nossa identidade e nosso valor estão de alguma forma ligados às coisas que conseguimos angariar ou manter, e não a nós mesmos. Essa é uma admissão desumanizante, e para escaparmos da consciência disso aplicamos o mesmo critério desumanizador aos outros, julgando-os pelo que podem oferecer para nos impressionar e reservando nossa generosidade para os que não carecem dela (isto é, os que podem recompensá-la). A ganância é idolatria porque é essa degradante confissão de insuficiência e de desgraça.

Novamente, é por essa razão que os da comunidade do espírito sentem a necessidade de despojarem-se literalmente dos bens que os amarram e confundem. Quando diluem tão imprudentemente o seu patrimônio, estão confessando em altos brados a suficiência do reino de Deus, onde aos pássaros não falta alimento e onde a elegância das flores é motivo de embaraço para reis e dignatários. Confessar o reino é confessar que nada há que temer e que nenhuma barreira deve ser construída entre o ser humano e a vida, entre um ser humano e outro. É apostar, loucamente, na suficiência do cavalheirismo e da gentileza. Ao mesmo tempo em que se despojam, os novos discípulos dão testemunho de que acreditam que a vida partilhada vale todos os riscos (de que a riqueza não salva) e se mostrará capaz de suprir todas as carências (que a riqueza não satisfaz). É uma confissão insensata mas simetricamente digna de Jesus, e neste momento são todos simultaneamente afixados e identificados com ele na cruz.

Tornaram-se, finalmente, as testemunhas que Jesus havia desafiado que fossem, porque aprenderam a falar tão-somente a linguagem da graça, da generosidade, da inclusividade e da dádiva – a qual, conforme proposto incessantemente pelo Filho do Homem, é a própria linguagem (isto é, a identidade) de Deus.

A reviravolta está em que descobrem, como todos que se embrenham nesse caminho estreito, que nada há mais vantajoso, benéfico e curativo para eles mesmos do que “ajudar” os outros diluindo a vida e demolindo as barreiras que haviam passado a vida erguendo contra os avanços deles. Os romeiros de Pentecostes, que haviam, como todos, acumulado riquezas a fim de garantir a sua própria liberdade contra a ameaça dos outros, deparam-se agora com a maravilha articulada por Moltmann: o momento em que o outro deixa de ser um limite à nossa liberdade e passa a ser uma inesperada extensão dela.

É ainda por essa razão que o seu despojamento deve ser total. Primeiro, para que não acabem incorrendo no que Derrida chama de hostipitalidade – isto é, a complexa rede submersa de conflitos e hostilidades que acompanha necessariamente as relações de hospitalidade. A hospitalidade deve ser radical ao ponto do esvaziamento, do contrário não será de fato hospitalidade. Enquanto houver distinção entre hóspede e anfitrião, entre doador e beneficiado, entre ricos e pobres, haverá cobrança e hostilidade (mesmo que encobertas), e essas são tensões inteiramente incompatíveis com o mecanismo imaculado da graça. Enquanto houver algum apego à propriedade haverá alguma barreira, por isso a completa dissolução, o esvaziamento sem paralelo e sem precedentes. Possuir é manter-se condicionado.

Segundo, porque o despojamento total é o preço do encontro definitivo consigo mesmos, é o momento da morte do ego e da ressurreição, e na qualidade de heróis míticos os peregrinos de Pentecostes não hesitarão em dar esse último passo – que será o seu primeiro. Morrem porque querem viver, dão tudo porque querem ser livres. Quem quiser preservar a sua vida irá perdê-la, já havia profetizado o inclemente paradoxo de Jesus.

E, finalmente, quando se vulnerabilizam por completo, esses homens e mulheres encontram-se consigo mesmos e com uma suficiência que não podiam sonhar que chegariam a experimentar. Abrindo mão daquilo que o rico busca encontrar incessantemente na riqueza, isto é, controle, os peregrinos encontram controle e autodomínio – e encontram-nos num regime permanente que a riqueza, por definição, é incapaz de prover.

Estão, simultaneamente e pela primeira vez, disponíveis para outros – não porque deram aos outros tudo que possuíam, mas porque encontraram-se consigo mesmos e será a primeira vez que os outros poderão vê-los, a cada um, como realmente são. Porque abriram mão das riquezas e dos bens que vinham servindo de barreira entre eles mesmos e os outros, serão finalmente capazes de compartilhar aquilo que, nas palavras de Santo Ambrósio, haviam “usurpado” das outras pessoas, aquilo que havia sido “dado para o benefício comum de todos”.

Não os seus bens, mas eles mesmos.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

CHIMAMANDA ADICHIE



Uma palestra preciosa sobre o valor que todos devemos olhar nos outros, independente de sua realidade.

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dica da Vanessa (@vanessaquim)

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Os recursos necessários

Paulo Brabo - Via Bacia das Almas

Vai ficando claro que esta é uma utopia que não descansará até alçar todos os degraus do sublime e do improvável (se é que existe diferença entre uma coisa e outra): ficamos sabendo logo em seguida que os integrantes da nova comunidade não apenas repartiam sem qualquer critério os seus bens uns com os outros, mas também vendiam suas propriedades e bens e os repartiam por todos, o que deve ser considerado muitas vezes mais insensato. Reter uma quantidade fixa de bens em regime comunal, por mais radical ou exigente que possa parecer, não é o mesmo que dissolver ou dilapidar todo um patrimônio conjunto, transformando-o em dinheiro e repartindo a liquidez resultante com todos – mesmo que seja “segundo a necessidade de cada um”.

O esvaziamento radical que, nesses termos tão descobertos, Jesus havia exigido (e sem sucesso!) de um único candidato a discípulo, é no novo cenário do espírito abraçado sem restrição e sem rancor por todos, com o consentimento ou sob a supervisão dos doze que serviam-lhes de exemplo. “Venda tudo que possui”, Jesus havia dito naquela ocasião, “e dê aos pobres, e venha ser meu discípulo”. E o que um não havia se rebaixado a fazer em privado, agora todos fazem em público.

O que está se materializando aqui é, naturalmente, o eco necessário e tardio dos ultimatos que Jesus apresentou às multidões – como, por exemplo, aquele tremendo registrado em Lucas 14.

Os evangelhos trabalham juntos para explicar que a relação de Jesus com as multidões era no mínimo ambígua. Por um lado, as pessoas despejavam-se de cidades e de distâncias para ouvi-lo e beneficiar-se dele; Quem não se despoja não tem os recursos necessários.por outro, Jesus as ensinava, alimentava e curava, mas muito declaradamente “não confiava nelas”.

A origem muito natural dessa desconfiança está em que, embora as multidões não se negassem a ouvir as insanas exigências que o Filho do Homem deitava diante de todos, um número muito menor – praticamente um punhado, uma dúzia, talvez setenta ou uns poucos mais – permitiram-se efetivamente transtornados e finalmente guiados por elas. Todos ouviam deleitados sobre as reviravoltas e escandalosas inversões do reino, mas poucos abraçavam a inclusividade do arrependimento. Muitos diziam “Senhor, Senhor”, mas poucos faziam o que ele estava dizendo. Muitos assistiam as suas aulas, mas poucos engajavam-se na sua reforma.

Por esses, que aumentavam continuamente o seu ibope mas observavam o reino de longe, o rabi de Nazaré não se deixava enganar. Não só isso; ele se esforçava constantemente para que eles mesmos não se deixassem enganar. Se Jesus volta tantas vezes ao assunto é porque era absolutamente necessário que seus seguidores nominais não passassem a se considerar, em sua posição de meros ouvintes, integrantes da verdadeira revolução.

Pois qual de vocês, querendo construir uma torre, não senta-se primeiro para calcular as despesas, a fim de ver se tem recursos para concluí-la? Para não acontecer que vendo-a inconclusa as pessoas comecem a zombar: “Esse homem começou a construir e agora não tem recursos para terminar”. Da mesma forma, todo aquele dentre vocês que não renuncia a tudo quanto possui não tem como ser meu discípulo.

Ou seja: multidão de fãs sem noção, baixem a bola e sentem aí para calcular os custos do discipulado. E é bom que estejam sentados quando o garçom trouxer a conta.

Diante de riscos tão acentuados e retornos tão transversais, Jesus toma o cuidado de não tirar em momento algum as cartas de cima da mesa. Vez após outra, parábola após parábola, ele vai pontuando que para experimentar o discipulado – isto é, para se enxergar o reino e colocar o pé no terreno virgem do fim do mundo – é preciso despojar-se de todas as coisas. Qualquer um que se desvia por qualquer razão desse formidável crivo não tem cacife para se engajar nessa obra. Melhor nem se envolver.

É essa a lei paradoxal da empreitada do reino: quem não se despoja de tudo que tem não tem os recursos necessários para empenhar-se nela.

O reino é um bem fabuloso que, para se ter, requer-se apenas nada se ter além do reino. Quem não se despoja por completo não tem os recursos necessários para adquirir o reino, justamente porque nada é necessário1. para adquirir o reino. Viver no reino é demonstrar isso, viver o reino é descobrir isso

É por isso que o rico não pode passar pelo buraco da agulha que é a entrada do reino: ele literalmente não tem como passar. Ou, melhor dizendo, ele tem os recursos para não passar. Para entrar, será necessário despojar-se.

Despojar-se é alçar-se literalmente à posição de não-condicionado – aquela vida de completa autodeterminação e completa identificação com o próximo que Jesus desempenhou e ofereceu.

Despojar-se equivale a derrubar Satanás do seu trono, porque representa deitar por terra o medo e o desejo, as algemas que permitimos que ele use para nos impedir de avançar e crescer. Despojar-se é abandonar, de modo muito literal, o medo de perder [as coisas] e o desejo de aferrar-se [as coisas]. É pisar o terrível terreno da liberdade incondicional. É conhecer o sopro do espírito que está finalmente livre para soprar onde quiser.

É por isso que os integrantes da comunidade do espírito acham importante seguir a lição do despojamento até sua aplicação mais crua e literal – vender tudo e tudo diluir entre os necessitados, – porque querem seguir Jesus e para o mesmo lugar. Se é que serão não-condicionados como ele foi, será necessário deixar para trás todas as cargas que os condicionam –Possuir é manter-se condicionado. e possuir, muito evidentemente, é deixar-se condicionar, porque o verdadeiro rico é aquele que não precisa de nada. Disso muitos ouvem falar, mas só o conhece o habitante do reino.

Aqueles de nós que habitam o reino e verdadeiramente o promovem são os que por um lado embrenharam-se no caminho do despojamento radical e, por outro, desenvolveram mecanismos literais para manterem-se o maior tempo possível nessa condição. Falo de gente como Gandhi, como Tolstói, como Madre Teresa, como São Francisco e como alguns amigos que tenho e dos quais você não vai ouvir falar, porque eles preferem assim.

Retenha em mente, portanto, essa única coisa: possuir é manter-se condicionado, e esta é uma regra sem exceção. Por isso, quando você pensar em grandes exemplos de vida ou quando quiser mencionar pessoas edificantes e cheias de luz, pode excluir sem medo da sua lista gente que trabalha para sustentar o conforto de automóveis e casas e computadores e telefones celulares e seguidores e internet banda larga. Quem permanece escravo dessas liberdades pode até falar dele com os lábios, mas não conhece com os olhos o não-condicionado.

Você deve, portanto, excluir da sua lista de notáveis o Paulo Brabo, o Diogo Mainardi, o Ricardo Gondim, o Lula, o Ed René Kivitz, o Barack Obama, o Rubem Alves, o Silas Malafaia e todos os nossos comparsas e antagonistas, porque permanecemos condicionados pela multidão de pequenas facilidades de que ainda não nos despojamos. Somos todos, luzes políticas e faladores públicos, meras distrações profissionais, operando a meio caminho entre o crime e o entretenimento. Nosso método é dar a impressão de que temos um plano e de que sabemos do que estamos falando, e enquanto nos dá ouvidos você mesmo vai adiando a loucura que seria saltar de cabeça no abismo do arrependimento e embrenhar-se na reforma interior e exterior que é também o fim do mundo. Da mesma forma, enquanto nós faladores tivermos em você uma audiência cativa nós mesmos permaneceremos adiando o temerário crescimento pessoal que com nossa voz fazemos você adiar – e nesse esforço conjunto, nessa sedução circular, vamos garantindo que nada de fato aconteça.

Nossa única chance, naturalmente, seria pôr de lado minuciosamente tudo – e isso não porque os pobres carecem dos bens e da atenção que poderíamos repartir entre eles, mas porque carecemos nós de encontrar a paz e a guerra, a vida e a morte passando pelo buraco da agulha que é a entrada do reino.

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