terça-feira, 8 de novembro de 2011

As Divinas Gerações

Paulo Brabo - A Bacia das Almas
Fonte : http://www.baciadasalmas.com/2011/as-divinas-geracoes/

“Dieu d’Abraham, Dieu d’Isaac, Dieu de Jacob”
non des philosophes et des savants.
Blaise Pascal, Mémorial (1654)



De todas as lendas que sustentam os fundamentalismos cristãos, talvez nenhuma seja mais infundada – e por certo nenhuma é mais útil – do que a ideia de que há um único modo de se ler e de se entender a Bíblia, um modo de interpretação que permaneceu inalterado ao longo dos milênios e que corre nos nossos dias o risco de ser miseravelmente derrubado pelas licenciosidades interpretativas e morais dos liberais.

Reza a lenda que esse método fechado de interpretação – e usam-se para descrever sua autoridade palavras fortes como “literal” e “inerrante” – é eterno, fora do tempo e inteiramente impermeável às variações da história. Desse modo, a lenda exige que Lutero interpretou a tradição bíblica da mesma forma que Paulo, que a interpretou da mesma forma que Jesus, que a interpretou da mesma forma que Esdras, que a interpretou da mesma forma que Isaías, que a interpretou da mesma forma que Davi, que a interpretou da mesma forma que Moisés, que a interpretou da mesma forma que Abraão.

A ortodoxia não pode existir sem a lenda de uma exegese fora do tempo, porque quando diz que a Bíblia é a inerrante Palavra de Deus o fundamentalista não está dizendo apenas que o texto bíblico é eterno e imutável, mas também, e em especial, a sua interpretação. Para que a própria ideia de fundamentalismo faça sentido, a história e suas novidades devem se manter inteiramente incapazes de lançar novas luzes hermenêuticas sobre a letra da revelação. Qualquer possibilidade de interpretar-se a Bíblia a partir da nossa presente condição deve ser encarada como insidiosa tentação, pelo que a única interpretação autorizada deve necessariamente ter sido definida, sem margem de manobra, não só quando nós mesmos entramos em cena, mas desde sempre.

O fundamentalista, portanto, não é quem lê a Bíblia literalmente, mas quem não consegue enxergar qualquer diferença entre a Escritura e a sua compreensão pessoal dela. Na prática, trata-se de alguém apaixonado não pela inerrância de um texto sagrado, mas pela inerrância da sua própria interpretação. E, como não quer ter de reconhecer que sua leitura é tão seletiva e historicamente condicionada quanto qualquer outra, o fundamentalista precisa batalhar ostensivamente para que não apenas o texto, mas também sua interpretação autorizada se mantenham inalterados diante de novos contextos.

O problema com essa noção de uma interpretação bíblica que permaneceu inerrante e imutável ao longo dos séculos, inteiramente imune às influências dos fatos novos e da passagem do tempo, é que ela é espetacularmente negada não só pela história, mas pela própria narrativa bíblica.

O que impulsiona o drama da revelação na Bíblia são precisamente os modos através dos quais as novas perspectivas sociais e históricas constrangem os israelitas e seus herdeiros a retrabalhar e reinterpretar um corpo antigo e mais ou menos fixo de tradições bíblicas, de modo a encontrar nele novos significados e novos desafios à luz desconcertante do momento presente.

Nesse sentido, a Bíblia não é o registro da realidade eterna dos feitos divinos, mas a história das reformulações da imagem divina que os homens se viram forçados a fazer diante da realidade cambiante dos fatos. Não é a descrição de um Deus imutável, mas a descrição progressiva e cumulativa das feições divinas que os homens creram que o próprio Deus ia revelando a partir dos indícios da história.

É a própria Bíblia, portanto, que nos ensina que novas circunstâncias não apenas permitem, mas requerem novas interpretações de um mesmo corpo de tradições bíblicas. Os cronistas, os salmistas, os profetas, Jesus e Paulo (bem como os que foram registrando as suas histórias) – todos esses propuseram interpretações das tradições bíblicas que se distanciavam sensivelmente do ensino da ortodoxia da sua época. E, muito declaradamente, não o fizeram movidos por outra coisa que não a perspectiva privilegiada que sua posição na linha do tempo concedia a cada um. O testemunho coletivo dessas vozes intra-bíblicas é que as revoluções da história fornecem chaves de interpretação que quem deseja aproximar-se da divina herança não se pode dar ao luxo de ignorar.

Os eventos que influenciaram e alteraram a interpretação das tradições judaico-cristãs dentro do intervalo em que o cânone da Bíblia foi composto incluem, só para citar os mais importantes:

o estabelecimento em Davi e Salomão de uma monarquia unificada, dotada de um local centralizado de adoração e de um sacerdócio especializado. A ascensão da monarquia acabou abafando as ênfases anárquicas e num governo descentralizado que parecem ter prevalecido nas tradições mais antigas – como atestam, por exemplo, muitos trechos do Pentateuco e todo o livro de Juízes. Um testemunho sobrevivente da hesitação que predominava anteriormente com relação à monarquia aparece no discurso de divina advertência em 1 Samuel 8. A história de Israel até o momento da ascensão da monarquia e do sacerdócio centralizado teve de ser literalmente reescrita (isto é, reinterpretada) à luz da nova forma de governo. Para uma comparação entre tradições e interpretações por vezes abertamente antagônicas, é sempre útil contrastar os livros de Samuel e de Reis à narrativa de Crônicas.
a destruição do reino do Norte pelos assírios (em 721 a.C.) e mais tarde (em 587 a. C.) a destruição de Jerusalém e a dissolução do reino do Sul pelos babilônios, com a consequente vida nacional no exílio. As invasões dos assírios e a destruição do reino do Norte fizeram com que as antigas tradições fossem reinterpretadas como favorecendo a tribo de Judá, berço do reino sobrevivente. Porém as expectativas de um “trono eterno” para a linhagem de Davi foram demolidas juntamente com o Templo um século e meio depois. Vivendo na diáspora, os exilados de Judá viram-se obrigados a rever suas noções estabelecidas sobre misericórdia, fidelidade e soberania divinas. Longe da pátria e impedidos pela falta do Templo de continuar oferecendo os sacrifícios prescritos pela Lei, acabaram concluindo que haviam em grande parte interpretado erroneamente a letra do Pentateuco. As novas circunstâncias levaram-nos a entender que uma rígida religiosidade exterior não era o que Deus valorizava ou requeria de Israel em primeiro lugar, mas sim uma postura de misericórdia e um coração contrito. Nessa releitura das antigas tradições consiste o bojo da proclamação dos profetas.
a conquista do Oriente Médio por Alexandre, o Grande, e a resultante helenização das regiões em que viviam os judeus. Os judeus no exílio tiveram de aprender a manter a identidade nacional/religiosa diante da competição das culturas em que estavam inseridos, e foram nisso notavelmente bem sucedidos. Porém a cultura grega, que tomou conta do mundo conhecido a partir das vitórias de Alexandre, mostrou-se eloquente e cativante demais para ser evitada indefinidamente. Logo as ideias dos gregos estavam influenciando o modo como os judeus liam seus próprios textos e pesavam sua própria herança. Essa influência acabou remodelando a tradição bíblica de muitas formas. Em primeiro lugar, a Bíblia hebraica foi traduzida – isto é, reinterpretada, visto que traduzir é interpretar – para a língua grega. Quando citam a Bíblia hebraica, os autores do Novo Testamento (que escreviam em grego) fazem uso dessas versões e das interpretações que elas trazem embutidas em si. Segundo, muitos intérpretes judeus (dos quais o mais ilustre foi Fílon de Alexandria) procuraram conciliar as tradições judaicas com a filosofia grega, aplicando ao mesmo tempo os métodos de interpretação dos pensadores gregos aos seus próprios textos sagrados. Finalmente, a ênfase grega no indivíduo parece ter influenciado diretamente a composição e a teologia da terceira porção da Bíblia hebraica, em que a devoção nacional e coletiva (que prevalecia nos textos mais antigos) é substituída pela relação pessoal do adorador para com o seu Deus.
o ministério e a morte de Jesus de Nazaré. Levando a um novo extremo a herança subversiva dos profetas que o precederam, Jesus propôs uma radical reinterpretação das tradições do Antigo Testamento. Para Jesus, a vitória do Deus de Israel sobre seus competidores nada tinha dos êxitos políticos, econômicos e militares que os judeus vinham sonhando para o seu futuro. O iminente reino de Deus deveria representar uma reformulação intransigente e universal do espírito humano, uma revolução de beleza, cavalheirismo e graça que evitaria todas as armadilhas dos sistemas de poder e de manipulação que governam este mundo. Frases como “vocês ouviram o que foi dito… eu porém digo a vocês…” e “não vim anular, mas cumprir” apenas atestam que era de modo muito consciente que Jesus vinha propor a completa reformulação da posição sobre Deus, justiça, nação, valor e identidade que prevalecia na ortodoxia dos seus dias. A vida frugal, o ensino subversivo e a morte prematura de Jesus levaram os primeiros cristãos a reavaliar por completo o que pensavam que o Antigo Testamento dizia sobre a pessoa e a obra do Messias – bem como sobre todos os sonhos de Deus para a humanidade.
o ministério e os escritos do apóstolo Paulo. Paulo entendeu mais e antes do que qualquer outro que a singularidade da pessoa e da obra de Jesus representavam um convite à transformação não apenas da nação judaica, mas do mundo inteiro. Ele dedicou a vida à dupla tarefa de divulgar a boa nova império adentro e de vasculhar as tradições bíblicas em busca de confirmação para seu parecer sobre a primazia de Jesus e sobre a natureza de seu próprio ministério. Paulo foi o primeiro a ousar reinterpretar a Bíblia inteira à luz da pessoa de Jesus, e o que encontrou deixou maravilhadas gerações de leitores.
A Bíblia contém em si mesma, portanto, numerosos precedentes para a reinterpretação da natureza da revelação à luz de novas circunstâncias históricas. Como epitomado na postura de Jesus, essas novas leituras não requerem a invalidação da autoridade das antigas tradições; o que pedem é uma nova e generosa reavaliação das implicações dessas tradições para os desafios e particularidades do momento presente.

Essa variedade nas cores da exegese intra-bíblica demonstra que a própria Bíblia não ignora que é da condição humana interpretar as tradições que respeitamos de um modo que faça mais sentido dentro de nossa própria perspectiva histórica e conceitual. Seu testemunho é que não há um modo único e “literal” de se entender a significância do legado bíblico. E mais: quando feito de mente aberta e com um coração compassivo, interpretar-se as antigas tradições à luz das demandas do presente pode nos proporcionar uma visão mais clara a respeito de Deus, não uma visão deturpada ou desrespeitosa.

E que a interpretação da Bíblia não se manteve estática depois que o cânone estava concluído a história dá testemunho mais do que abundante. Alguns dos eventos que representaram gatilhos para profundas reinterpretações das tradições bíblicas:

a destruição de Jerusalém e de seu Templo, em 70 d.C., resultado da revolta dos judeus contra a ocupação romana;
a perseguição romana contra os cristãos;
o fato de que o cristianismo foi se tornando um movimento predominantemente gentio, acompanhado de um crescente rancor contra os judeus dentro do movimento;
a promulgação do cristianismo como religião legal do império romano, pela mão do imperador Constantino;
os concílios cristãos e o fechamento do cânone;
a cisão entre o cristianismo ocidental e o oriental;
a Reforma e Contra-Reforma;
a difusão do pensamento racionalista e materialista e as revoluções científica e industrial;
o Holocausto dos judeus europeus pela mão dos nazistas;
a secularização definitiva da cultura no século XX e os ventos da pós-modernidade no terceiro milênio.
A análise dessas e outras instâncias demonstra que o conceito de uma interpretação bíblica que permaneceu estática, isenta e inalterável ao longo dos milênios, até os nossos dias, é na melhor das hipóteses equivocado – e, na pior, mentiroso.

O estudo desses exemplos ajuda a provar ainda que interpretar a Bíblia a partir da nossa perspectiva histórica pode, em muitos casos, significar simplesmente interpretar a Bíblia em nosso próprio favor. Essa narrativa (que também é a nossa) demonstra que a exegese bíblica pode ser usada como ferramenta arbitrária de dominação, de divisão e de exclusão.

Restam porém os casos (como o de Jesus e o dos profetas) em que a reinterpretação das tradições bíblicas à luz do momento presente promove uma noção mais avançada e madura de Deus, resultando numa relação mais saudável entre os homens. O que essas instâncias positivas têm em comum é que o Deus descrito por elas é sempre mais misericordioso e menos tribal, mais inclusivo e menos vingativo do que a figura divina que prevalecia anteriormente. As interpretações que fazem a revelação avançar falam de um Deus cada vez menos obcecado com a justiça e cada vez mais obcecado com o amor. Falam, numa palavra, de um Deus maior: o Deus que já gostamos de chamar de criador mas que preferiu ser chamado de Pai.

E ninguém soube falar dessas coisas com mais intimidade do que Jesus. Como indicado por ele, um Deus maior não é o requer mais amor para si, mas o que espera mais amor entre os homens. Um mundo mais justo não é aquele em que Deus pode exercer sem impedimentos o seu poder, mas um mundo em que os homens renunciem em favor uns dos outros à busca insensata pelo poder. Fiel não é quem pede a Deus misericórdia sobre si mesmo, mas quem concede misericórdia aos outros.

* * *

Se não deve haver dúvida de que a interpretação bíblica não permanece estática, mas é renovada pela perspectiva de cada época (e, num certo sentido, de cada leitor), cada um permanece livre para reagir como quiser diante dessa notícia. Para alguns, essa contínua reformulação é clara indicação de que cada época acaba criando o seu Deus à sua própria imagem e semelhança. Para outros, é indicação de que o da Bíblia não é o Deus fora do tempo dos filósofos e dos sábios, mas o Deus de Abraão, Isaque e Jacó – o Deus que se revela no calor da história.

Talvez, como fazia Jesus, seja necessário renovar continuamente a crença de que a divindade continua trabalhando: de que não concluiu a sua criação e permanece se des-cobrindo como cada vez maior e mais ambicioso – na prática, um Deus cada vez mais invisível, mais recatado e mais indistinguível do exercício da mais simples e ardente humanidade.
Related Posts with Thumbnails