quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Teodicéia

Ed René Kivitz

Acho que Epicuro foi quem formulou a questão a respeito da relação entre a onipotência e a bondade de Deus. A coisa é mais ou menos assim: se Deus existe, ele é todo poderoso e é bom, pois não fosse todo-poderoso, não seria Deus, e não fosse bom, não seria digno de ser Deus. Mas se Deus é todo-poderoso e bom, então como explicar tanto sofrimento no mundo? Caso Deus seja todo-poderoso, então ele pode evitar o sofrimento, e se não o faz, é porque não é bom, e nesse caso, não é digno de ser Deus. Mas caso seja bom e queira evitar o sofrimento, e não o faz porque não consegue, então ele não é todo-poderoso, e nesse caso, também não é Deus. Escrevendo sobre a Tsunami que abalou a Ásia, o Frei Leonardo Boff resume: “Se Deus é onipotente, pode tudo. Se pode tudo porque não evitou o maremoto? Se não o evitou, é sinal de que ou não é onipotente ou não é bom”.

Considerando, portanto, que não é possível que Deus seja ao mesmo tempo bom e todo-poderoso, a lógica é que Deus é uma impossibilidade filosófica, ou se preferir, a idéia de Deus não faz sentido, e o melhor que temos a fazer é admitir que Deus não existe.

Parece que estamos diante de um dilema insolúvel. Mas Einstein nos deu uma dica preciosa. Disse que quando chegamos a um “problema insolúvel”, devemos mudar o paradigma de pensamento que o criou. O paradigma de pensamento que considera o binômio “onipotência/bondade” como ponto de partida para pensar o caráter de Deus nos deixa em apuros. Existiria, entretanto, outro paradigma de pensamento? Será que as palavras “onipotência” e “bondade” são as que melhor resumem o dilema de Deus diante do mal e do sofrimento do inocente? Há outras palavras que podem ser colocadas neste quebra-cabeça?

Este problema foi enfrentado por São Paulo, apóstolo, em seu debate com os filósofos gregos de seu tempo. A mensagem cristã era muito simples: Deus veio ao mundo e morreu crucificado. Pior do que isso: Deus foi crucificado num “jogo de empurra” entre judeus e romanos, isto é, diferentemente dos outros deuses, o Deus cristão foi morto não por deuses mais poderosos, mas por homens. Sendo Deus, jamais poderia ser morto por mãos humanas, e sendo o Deus onipotente, jamais poderia nem mesmo ser morto. Paulo, apóstolo, estava, portanto, diante de um dilema semelhante ao proposto por Epicuro: Deus era uma impossibilidade filosófica.

Foi então que os apóstolos surgiram com uma resposta tão genial que os cristãos acreditamos que foi soprada pelo Espírito Santo: antes de vir ao mundo ao encontro dos homens, Deus se esvaziou da sua onipotência, isto é, abriu mão do exercício de sua onipotência, e por amor, deixou-se matar por eles. (Eu disse que “Deus abriu mão do exercício de sua onipotência”, bem diferente de “Deus abriu mão de sua onipotência”).

O apóstolo Paulo admitia que não era possível pensar em Deus sem considerar o binômio bondade/onipotência. Optou pela palavra amor, assim como o apóstolo João, que afirmou “Deus é amor”. Jesus de Nazaré foi Deus encarnado na forma de Amor, e não Deus encarnado na forma de Onipotência. Os cristão não dizemos “Deus é poder”, dizemos “Deus é amor”.
Isso faz todo o sentido. Um Deus que viesse ao encontro das pessoas em trajes onipotentes chegaria para se impor e reivindicar obediência irrestrita, impressionando pela sua majestade e força sem iguais. Jung Mo Sung adverte que “a contrapartida do poder é a obediência, enquanto a contrapartida do amor é a liberdade”. Também assim pensou o apóstolo Paulo, ao afirmar que o que constrange as pessoas a viver para Deus é o amor de Deus (demonstrado na morte de Jesus na cruz). Não é o poder de Deus que cativa o coração das gentes, mas sim o amor de Deus.

Na verdade, “Deus não tinha escolha”. Ao decidir criar o ser humano à sua imagem e semelhança, deveria criá-lo livre. Desejando um relacionamento com o ser humano, deveria dar ao ser humano a liberdade de responder voluntariamente ao seu amor, sob pena de ser um tirano que arrasta para sua alcova uma donzela contrariada. Somente o amor resolveria esta equação, pois somente o amor possibilita a liberdade para que o outro possa inclusive rejeitar o amor que se lhe quer dar.

André Comte-Sponville é um ateu confesso (sei que vou levar pedradas) que discorre a respeito do amor divino como poucos que já li. Acredita que o amor divino é um ato de diminuição, uma fraqueza, uma renúncia. Usa os argumentos de Simone Weil: “a criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos do que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser. Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele. As religiões que conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e sua presença secreta aqui embaixo, essas religiões são a verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da grande Revelação. As religiões que representam a divindade como comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo são falsas. Mesmo que monoteístas, são idólatras”.

Você já imagina onde quero chegar. Isso mesmo, entre a onipotência e a bondade de Deus existe a liberdade do homem, e o compromisso de Deus em respeitar esta liberdade. Isso ajuda a entender porque existe tanto sofrimento no mundo. O mal não procede de Deus e não é promovido ou determinado por Deus. O mal é conseqüência inevitável da liberdade humana, que teima em dar as costas para Deus e tentar fazer o mundo acontecer à sua própria maneira. Diante do mal e do sofrimento, o Deus com os homens, encarnado em Amor, também sofre, se compadece, tem suas entranhas movidas de compaixão. E morre. O Deus Amor encarnado em Jesus de Nazaré é assim, entre matar e morrer, prefere morrer.

Mas você poderia perguntar por que razão Deus não acaba com o mal. Isso é simples: Deus não acaba com o mal porque o mal não existe, o que existe é o malvado. O mal não é uma entidade ao lado de Deus. O mal é o resultado de uma ação humana em afastar-se do Deus, sumo bem. O monoteísmo cristão afirma que há um só Deus, e que o mal é a privação da presença de Deus. Os cristãos não somos dualistas que postulamos a existência do bem e do mal. O mal é apenas a ausência do bem. Por isso, o mal não existe, o que existe é o malvado, aquele que faz surgir o mal porque se afasta de Deus, o supremo e único bem.

Ariovaldo Ramos me ensinou assim, e completou dizendo que “para acabar com o mal, Deus teria que acabar com o malvado”. Mas, sendo amor, entre acabar com o malvado e redimir o malvado, Deus escolheu sofrer enquanto redime, para não negar a si mesmo destruindo o objeto do seu amor. Por esta razão Deus “se diminui”, esvazia-se de sua onipotência, abre mão de se relacionar em termos de onipotência-obediência, e se relaciona com a humanidade com base no amor, fazendo nascer o sol sobre justos e injustos, e mostrando sua bondade, dando chuva do céu e colheitas no tempo certo, concedendo sustento com fartura e um coração cheio de alegria a todos os homens.

A equação amor e liberdade na relação entre Deus e o homem resulta um escândalo: um Deus que sofre por amor. E quando Deus sofre, o homem sofre. Ou, na verdade, Deus sofre porque o homem sofre, isto é, Deus sofre porque ama o homem que sofre.

fonte: Blog do Ed René Kivitz

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Sudão: uma população acostumada ao sofrimento

Na Renascer, os fiéis conseguem ter riquezas, roupa, alimentos e alegria através de uma simples oração:




...mas esta balança injusta, só pende para o lado deles, enquanto isto no sudão, crianças do Reino tem que conviver todos os dias com o sofrimento.


Darwinismo Social

Frei Betto *

Adital -
A catástrofe na região serrana do Rio de Janeiro é noticiada com todo alarde, comove corações e mentes, mobiliza governo e solidariedade. No entanto, cala uma pergunta: de quem é a culpa? Quem o responsável pela eliminação de tantas vidas?
Do jeito que o noticiário mostra os efeitos, sem abordar as causas, a impressão que se tem é de que a culpa é do acaso. Ou se quiser, de São Pedro. A cidade de São Paulo transbordou e o prefeito em nenhum momento fez autocrítica de sua administração. Apenas culpou o excesso de água caída do céu. O mesmo cinismo se repetiu em vários municípios brasileiros que ficaram sob as águas.

Ora, nada é por acaso. Em 2008, o furacão Ike atravessou Cuba de Sul a Norte, derrubou 400 mil casas, deu um prejuízo de US$ 4 bilhões. Morreram 7 pessoas. Por que o número de mortos não foi maior? Porque em Cuba funciona o sistema de prevenção de catástrofes naturais. No Brasil, o governo promete instalar um sistema de alerta... em 2015!


O ecocídio da região serrana fluminense tem culpados. O principal deles é o poder público, que jamais promoveu reforma agrária no Brasil. Nossas vastas extensões de terra estão tomadas pelo latifúndio ou pela especulação fundiária. Assim, o desenvolvimento brasileiro se deu pelo modelo saci, de uma perna só, a urbana.

Na zona rural faltam estradas, energia (o Luz para Todos chegou com Lula!), escolas de qualidade e, sobretudo, empregos. Para escapar da miséria e do atraso, o brasileiro migra do campo para a cidade. Assim, hoje mais de 80% de nossa população entope as cidades.

Nos países desenvolvidos, como a França e a Itália, morar fora das metrópoles é desfrutar de melhor qualidade de vida. Aqui, basta deixar o perímetro urbano para se deparar com ruas sem asfalto, casebres em ruínas, pessoas que estampam no rosto a pobreza a que estão condenadas.

Nossos municípios não têm plano diretor, planejamento urbano, controle sobre a especulação imobiliária. Matas ciliares são invadidas, rios e lagoas contaminados, morros desmatados, áreas de preservação ambiental ocupadas. E ainda há quem insista em flexibilizar o Código Florestal!

Darwin ensinou que, na natureza, sobrevivem os mais aptos. E o sistema capitalista criou estruturas para promover a seleção social, de modo que os miseráveis encontrem a morte o quanto antes.

Nas guerras são os pobres e os filhos dos pobres os destacados para as frentes de combate. Ingressar nos EUA e obter documentos legais para ali viver é uma epopeia que exige truques e riscos. Mas qualquer jovem latino-americano disposto a alistar-se em suas Forças Armadas encontrará as portas escancaradas.

Os pobres não sofrem morte súbita (aliás, na Bélgica se fabrica uma cerveja com este nome, Mort Subite). A seleção social não se dá com a rapidez com que as câmaras de gás de Hitler matavam judeus, comunistas, ciganos e homossexuais. É mais atroz, mais lenta, como uma tortura que se prolonga dia a dia, através da falta de dinheiro, de emprego, de escola, de atendimento médico etc.

Expulsos do campo pelo gado que invade até a Amazônia, pelos canaviais colhidos por trabalho semiescravo, pelo cultivo da soja ou pelas imensas extensões de terras ociosas à espera de maior valorização, famílias brasileiras tomam o rumo da cidade na esperança de uma vida melhor.

Não há quem as receba, quem procure orientá-las, quem tome ciência das suas condições de saúde, aptidão profissional e escolaridade das crianças. Recebida por um parente ou amigo, a família se instala como pode: ocupa o morro, ergue um barraco na periferia, amplia a favela.

E tudo é muito difícil para ela: alistar-se no Bolsa Família, conseguir escola para os filhos, merecer atendimento de saúde. Premida pela sobrevivência, busca a economia informal, uma ocupação qualquer e, por vezes, a contravenção, a criminalidade, o tráfico de drogas.

É esse darwinismo social, que tanto favorece a acumulação de muita riqueza em poucas mãos (65% da riqueza do Brasil estão em mãos de apenas 20% da população), que faz dos pobres vítimas do descaso do governo, da falta de planejamento e do rigor da lei sobre aqueles que, ansiosos por multiplicar seu capital, ignoram os marcos regulatórios e anabolizam a especulação imobiliária. E ainda querem flexibilizar o Código Florestal, repito!

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

EUA: Caldo de cultura fascista

Frei Betto

Adital -

Caldo de cultura é quando fico atado a um videogame treinando matar figuras virtuais. Segundo a Newsweek, o videogame mais vendido nos EUA em 2010 foi o Grand Thief Auto 3 (O grande roubo de carros 3). O jogador progride quanto mais crimes comete. Se o jogador rouba um carro e mata um pedestre, a polícia passa a persegui-lo. Se atira no policial, o FBI aparece. Se assassina o agente federal, os militares entram no caso... Caldo de cultura é quando meu irmão luta no Afeganistão, assim como meu pai fez no Iraque e meu avô no Vietnã.

Caldo de cultura é, aos 23 anos, entrar numa loja e comprar, sem a menor burocracia, uma pistola Glock 9mm e um pente extra que me permite disparar 33 tiros seguidos sem precisar descarregar - como fez Jared Lee Loughner, em Tucson (Arizona), no sábado, 8/1, matando 6 pessoas, entre as quais o juiz federal John M. Roll, e ferindo gravemente várias, inclusive a deputada democrata Gabrielle Giffords.




Os EUA estão num impasse. A eleição de um presidente negro com discurso progressista não foi digerida por amplos setores racistas e conservadores. O que deu origem ao mais recente caldo de cultura fascista -o Tea Party, liderado por Sarah Palin, ex-governadora do Alasca e candidata a vice-presidenta pelo Partido Republicano em 2008.


O movimento Tea Party situa-se à direita do Partido Republicano. Para seus adeptos, as liberdades individuais estão acima dos direitos coletivos. Embora muitos sejam contra a guerra, eles coincidem com os ultramontanos ao reprovar a união de homossexuais e a legalização de imigrantes, e defender a abstinência sexual como o melhor preservativo ao risco de aids.


Obama é uma decepção para muitos de seus eleitores. Nas eleições legislativas de novembro foi alta a abstenção entre jovens, negros e latinos que nele votaram. Não parece saber lidar com a crise econômica que afeta o país desde 2008. Muitos perderam suas casas devido ao estouro da bolha especulativa; 8,5 milhões de trabalhadores ficaram sem emprego e 8 milhões carecem de seguro-desemprego. O próprio governo admite que em 2012 a taxa de desemprego ultrapassará 8%.


Malgrado o Nobel da Paz, Obama não pôs fim às guerras no Iraque e no Afeganistão; não reduziu a ameaça terrorista; não avançou no quesito ambiental; não melhorou as relações com Cuba; não reformou o projeto de lei de imigração; e não tem segurança de que sua reforma da saúde será aceita pelo atual Congresso.


Hoje, os EUA estão mais à direita do que na eleição de Obama. No pleito de novembro, o Partido Republicano avançou 63 cadeiras. Agora, são 242 deputados republicanos e 193 democratas.


Obama sente-se encurralado. Não ousa como Roosevelt nem inova como Kennedy. Já agradou os republicanos ao contrariar sua promessa de campanha e anunciar, a 6 de dezembro, a prorrogação dos privilégios tributários aos mais ricos, herança da era Bush. Deu um Papai-Noel de US$ 4 trilhões à elite usamericana. E reduziu de 6,2% para 4,2% o imposto recolhido da folha de pagamento e destinado a financiar a Seguridade Social, agora com menos US$ 120 bilhões!


E o Senado, onde os democratas mantêm maioria, desaprovou, a 18 de dezembro, a legalização de 11 milhões de indocumentados que vivem nos EUA.


A democracia fica ainda mais ameaçada desde que a Suprema Corte, há um ano, deu sinal verde para as grandes corporações financeiras abastecerem o caixa dois das campanhas eleitorais. Estima-se que nas eleições de novembro os republicanos angariaram US$ 190 milhões, e os democratas a metade. E a turma da privatização da saúde contribuiu com US$ 86,2 milhões para tentar boicotar a reforma proposta por Obama ao setor. Em suma, o modelo usamericano de democracia é refém do dinheiro.


O novo Congresso vai bater forte na tecla de corte de gastos do governo. Isso significa, num país em crise, reduzir os serviços sociais e multiplicar a exclusão social e a criminalidade. Inclusive a dos fanáticos como Loughner, convictos de que as cabeças que não pensam como as deles merecem uma única coisa: bala.


Frei Betto é escritor, autor de "Cartas da Prisão" (Agir), entre outros livros. www.freibetto.org> - twitter:@freibetto


domingo, 23 de janeiro de 2011

Como fazer poesia após Auschwitz?

Helena Beatriz Pacitti

Hoje eu gostaria muito de escrever um texto ou uma crônica bonita. Não consigo. Estou triste, enlutada pelas notícias da catástrofe do Rio de Janeiro.

Folheio as páginas do jornal de Domingo e me detenho na denúncia: “As prefeituras de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo foram alertadas regularmente pelo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do Rio de Janeiro (Crea-RJ) sobre a ocupação desordenada das encostas nos últimos dois anos. A afirmação é do presidente da entidade, Agostinho Guerreiro. “Fizemos contatos regulares por meio dos engenheiros filiados ao Crea-RJ e nunca obtivemos resposta. Isto não é novidade. Em Niterói, mesmo após a tragédia do Morro do Bumba, a prefeitura não respondeu aos nossos demais alertas”, lamentou Guerreiro. Ele afirmou que o planejamento urbanístico da ocupação do solo na Região Serrana é “próximo de zero”.”

Busco encontrar, no diagnóstico das mortes anunciadas pelas chuvas de todos os anos, os prováveis agentes etiológicos da mais recente tragédia fluminense. No fundo, no fundo a gente sabe que essa dolorosa perda de vidas poderia ter sido evitada; ao menos, amenizada.

A quem atribuir a responsabilidade ou culpa pelas mortes?

“Causas naturais”? Não se culpe a Natureza. Não se responsabilize as costas largas de Deus. Não se responsabilize o destino.

O ser humano é o responsável.

Seres humanos que estão por trás das gestões públicas federais, estaduais e municipais e que conscientemente não destinaram as verbas necessárias para as obras de contenção e prevenção de alagamentos e desmoronamentos.

Seres humanos que ocupam cargos em prefeituras tecnicamente despreparadas e que permitem tanto a ocupação de encostas pelos menos favorecidos como construções de grandes condomínios de luxo em nome do turismo.

Seres humanos que, ainda abastados financeiramente, subornam os fiscais e constroem mansões nas encostas para ter a melhor vista.

Seres humanos menos favorecidos, que fazem seus barracos nos morros porque não podem comprar lotes normais.

Seres humanos infiltrados em governos, organizações, empreendimentos, corporações, negócios, que se omitem propositadamente nas ações políticas contra o aquecimento global e seu impacto sobre os ecossistemas e modos de vida no planeta, e que implicariam em mudanças drásticas do modo de produzir e consumir.

Theodor W. Adorno foi o filósofo que afirmou que “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de porque se tornou impossível escrever poemas.”

Exageradamente pessimista? Talvez Adorno tivesse a sua razão. Como não concordar em parte, enlutada pelo Rio de janeiro de 2011 e seus personagens – centenas de seres humanos mortos pela ação ou “inação” de seres humanos outros que se dissolvem no anonimato de cargos públicos? Que, mesmo após omissões, desvios e interesses acumulados ao longo do tempo, jamais admitem erros, jamais se retratam, jamais se arrependem?

Aos poucos, não é só o homem que recebe favorecimento ilícito ou suborno, ou o homem que desvia as verbas públicas, ou o homem que treina seu rosto para mentir para as câmeras, mas o homem que tem a sua humanidade corroída.

Por isso hoje, quando a poesia parece interditada, muda e perplexa, me acode a frase de Graciliano Ramos: “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”

Então parafraseio o mestre. Hoje a palavra não enfeitará, ela será feita apenas - e apenas – para não esquecer.


fonte: Timilique!
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