sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Porque sou voluntário?

Na mesma moeda

Paulo Brabo - Bacia das Almas

Alguém, por favor, tire o Lula de lá. Minha caixa de entrada já não comporta mais os e-mails piedosos que enviam-me incessantemente meus amigos cristãos, denunciando as impenitências de Sua Excelência, especialmente a sua ligação execrável e declarada com o (zulivre!) COMUNISMO.
Por motivos que terei de abordar em outra ocasião, os cristãos evangélicos fogem do COMUNISMO mais do que o diabo da cruz; dito de outra forma, fogem mais do COMUNISMO do que do diabo, e tendem também a substituir um pelo outro.
O capitalismo de certa forma sempre existiu, sendo devidamente denunciado por todos os profetas, até Jesus (na linguagem dele “vem fácil vai fácil” escreve-se “de graça recebestes, de graça dai”) e depois. O mérito de Marx está em que ele expôs claramente o mecanismoeconômico da exploração: demonstrou que no capitalismo todos trabalham um preciso tanto a mais do que deveriam se trabalhassem apenas para merecer o que ganham. Essa “contribuição extra”, essa mais-valia, serve para sustentar o sujeito posicionado acima de cada um na Grande Pirâmide. Uma vez que se reflete sobre essa revelação, passa a parecer injusto que você gaste o seu suor para alimentar a ociosidade e os luxos de quem não se dispõe a ralar como você – ajudando a aumentar, de lambuja, a distância irremediável entre trabalho e capital. O COMUNISMO nada mais é do que a inevitável solução que Marx propôs para corrigir o que ele via como essa injustiça inerente ao capitalismo: o sonho de uma sociedade em que todos trabalhassem apenas o necessário para se garantir que cada um teria o que todos precisam. Nenhuma competição. Nenhuma ganância. Nenhuma exploração. Nenhuma mesquinharia.
Trata-se, como se vê, de projeto extremamente louvável.
Como se sabe, as tentativas de implantá-lo foram catastróficas.
TODAS AS TENTATIVAS DE IMPLANTAR O COMUNISMO FORAM DESASTROSAS. PELO MESMO CRITÉRIO, O CRISTIANISMO DEVERIA SER GRANDEMENTE LAMENTADO.
Creio que qualquer um poderia acenar com esse raciocínio para condenar o COMUNISMO, menos os cristãos.
No que me diz respeito poucas idéias humanas são mais inatacavelmente bem-intencionadas e virtuosas do que a doutrina do COMUNISMO; porém, tendo em vista o precedente histórico, tendo em vista todo o mal realizado na tentativa de implantar a idéia,prefiro não permitir que se tente colocá-lo em prática novamente.
Meu problema é que preciso manter a sobriedade e admitir que o mesmo argumento pode ser usado contra o cristianismo. Para mim nada há de mais esplendidamente belo e virtuoso e transformador do que a mensagem do cristianismo, porém alguém pode sempre argumentar que, na prática, a esmagadora maioria dos esforços em implantá-lo produziram terríveis catástrofes sociais, injustiça e exclusão e preconceito e guerra e derramamento de sangue. Pergunte a qualquer cruzado – até Bush serve.
Tendemos a perdoar as nossas mancadas históricas, mas simplesmente não podemos permitir que doutrinas competidoras façam o mesmo: perdoa as nossas dívidas, mas não as dos nossos devedores. Tendemos também a esquecer que o cristianismo é experiência que vem estado em processo de implantação há dois milênios, e o comunismo há pouco mais de cem anos. Há por certo pelo menos um pagão morto em nome do cristianismo para cada inocente torturado em nome do comunismo.
O cristão pode sempre contra-atacar dizendo que nossas dívidas históricas apenas demonstram que muitos dos que afirmaram estar implantando o cristianismo não estavam imbuídos do verdadeiro espírito do cristianismo. Se fosse comunista eu diria imediatamente: está vendo? Os comunistas que você condena não implantaram overdadeiro comunismo – e assim por diante.
O COMUNISMO NUNCA FOI IMPLANTADO CONFORME IDEALIZADO ORIGINALMENTE. O MESMO PODE PROVAVELMENTE SER DITO DO CRISTIANISMO.
Se formos manter a sobriedade, teremos que admitir que o COMUNISMO nunca foi implantado como idealizado originalmente. Nosso problema é que o mesmo pode provavelmente ser dito do cristianismo. Trata-se evidentemente de um caso em que o desastre da implantação não vem da imperfeição da doutrina, mas da imperfeição dos implantadores.

Retórica à parte, nem todas as experiências de implantação do comunismo terminaram em catástrofe; em parte porque há diversas estirpes de comunismo (como de cristianismo), algumas muito moderadas e sensatas (ao contrário do cristianismo, cujas boas estirpes são as que não abrem mão da insensatez da sua mensagem).
Das experiências de utopia socialista-cristã a que me é definitivamente mais cara é a da Colônia Palma, no interior de São Paulo, perto de Tupã – onde, inspirados pelo mesmo avivamento espiritual que os trouxe no seu sopro para o Brasil, famílias inteiras de imigrantes da Letônia viveram e trabalharam numa fazenda na qual tinham “tudo em comum” – com exceção de seus cônjuges. No que me diz respeito o demérito da Colônia Palma é ter definhado e desaparecido antes que eu pudesse experimentá-la.
Quando visitei a Colônia Palma pela primeira vez, em algum momento da década de 1970, restavam ali algumas dezenas de membros originais, morando em impecáveis galpões comunais de madeira, diante de uma estrada ladeada por palmeiras imperiais e sob a vigilância das cascatas do rio que passava imediatamente atrás. Apenas não havia jovens, que haviam escapado um a um para estudar na cidade grande e só voltaram muito eventualmente para visitar parentes e amigos.
Garantem-me os dissidentes que, pelo critério das nossas sensibilidades contemporâneas, não era nada fácil submeter-se ao rigoroso comunalismo da Palma. Mas seria injusto dizer que a Colônia terminou em catástrofe; apenas desabou debaixo do peso das suas próprias exigências.
Desabou debaixo do peso das suas próprias exigências: é o destino que muitos prevêm ou diagnosticam para o cristianismo.
Embora muitos pensadores comunistas tenham sido e permaneçam cristãos (e embora poucas coisas me atraiam mais do que a estonteante possibilidade da vida em comum), não tenho qualquer simpatia verdadeira pelo comunismo. Pessoalmente inclino-me na direção dos anarquistas cristãos como Tolkien, Jacques Ellul e o pessoal dos Jesus Radicals, cujas idéias não descansam. Basicamente, o poder corrompe e se há governo sou contra.
Perfeitamente sensato era Jesus, que nutria um saudável desprezo pelas instituições políticas e não gastou uma gota de saliva condenando a estrutura falida, opressora, corrupta e tremendamente injusta do governo romano. O que deveríamos aprender com o exemplo dele é não esperar nada de bom de governo algum; que nenhum governo merece mesmo que se fale mal dele; que se o reino de Deus está próximo, somos nós que devemos dar evidência da proximidade dele.
De forma muito teologicamente correta, o que Jesus fazia é justiça com as próprias mãos.
Todo seguidor dele deveria ir e fazer o mesmo.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Trocando a insanidade econômica pela economia solidária

Marcus Eduardo de Oliveira
Adital


É fato inconteste que por meio do comportamento econômico é possível compreender a atual situação do mundo, em suas dimensões econômicas e sociais. E, ao compreender essa atual situação que se desenrola nesse século XXI, com 1 bilhão de pessoas passando fome, segundo dados divulgados pela ONU (Organização das Nações Unidas), torna-se inadmissível aceitar a existência de um modelo econômico que produz riqueza gerando pobreza; que eleva a produção agredindo o meio-ambiente; que fabrica bens à base da subordinação de muitos mediante a precarização cada vez mais intensa das relações de trabalho; que faz uso de trabalho escravo e infantil; que desumaniza as relações econômicas em troca do lucro rápido.

Isso é simplesmente uma insanidade econômica que produz para o gosto de alguns apenas extravagâncias e, em nada, absolutamente em nada, contribui para a efetivação do bem-estar coletivo, distanciando-se, pois, do objetivo principal dos modelos econômicos, qual seja: consolidar o desenvolvimento econômico.

Exemplos dessa insanidade econômica não faltam e ganham, a cada dia, maior visibilidade. Enquanto de um lado poucos ganham muito, do outro, muitos sofrem e nada ganham. Essa insanidade econômica parece não ter limites e se reproduz, por consequência, cada vez mais usando trabalho infantil e escravo. Os exemplos disso saltam aos olhos de todos que querem ver. Lojas de tapetes na Índia, no Nepal e no Paquistão usam quase um milhão de crianças na linha de produção. Vários são os casos em que muitas dessas crianças atingiram a cegueira devido ao longo tempo em que passaram costurando.

As casas de prostituição tailandesas, indianas e birmanesas usam meninas de 10 e 11 anos de idade, numa submissão sexual sem precedentes. De igual forma, em várias cidades da região Nordeste do Brasil, são "vendidos" pela rede internet a estrangeiros em visitas às cidades "programas sexuais" com adolescentes menores de 15 anos de idade.

No Oriente Médio, nas famosas corridas de camelo, os jóqueis são meninos entre 12 e 15 anos "comprados" por comerciantes e tratados com brutalidade, da mesma forma como também são tratados os camelos.

No Camboja, a indústria de tijolos e telhas faz uso de meninos descalços e sem nenhuma proteção para o transporte desse produto. Razão pela qual muitas crianças aparecem com braços, pernas e dedos cortados pelo manuseios dos pesados tijolos.

A Nike, fabricante de calçados esportivos, enquanto enche ano a ano seus cofres e torra fortuna em publicidade, continua usando trabalho infantil na Indonésia. A Adidas, outra marca de reconhecimento internacional, fechou fábricas na Europa e transferiu grande parte de sua produção para a Ásia, aproveitando assim a mão-de-obra de baixíssimo custo.

No estado de Tamil Nadu (sul da Índia) quase 400 mil meninos e meninas trabalham manualmente produzindo cigarros da marca "beddies" vendidos exclusivamente a elevado preço no mercado local. O "salário" desses meninos e meninas não ultrapassa 30 centavos de dólar por hora.

Os brinquedos distribuídos junto aos lanches das redes alimentícias Mc Donald´s, Bobs e Burger King, em mais de 140 países, são feitos por crianças com idade entre 11 e 14 anos em galpões sem nenhuma ventilação, a maioria deles localizados em Taiwan. Essas crianças chegam a trabalhar entre 10 e 12 horas por dia em troca de ninharias ao final do mês; grande parte delas apresentam queimaduras em mãos e braços, mediante o uso de componentes químicos. No entanto, em 2008, somente a rede Mc Donald´s anunciou um lucro recorde de US$ 4,3 bilhões (US$ 3,76 por ação) atendendo, em média, 58 milhões de consumidores por dia.

Ainda em termos de brinquedos infantis, talvez os casos mais infelizes aconteçam nas fábricas na China, onde trabalham 70 milhões de crianças e adolescentes. Esse país asiático é o maior exportador de brinquedos do mundo, usando aproximadamente 6 mil fábricas situadas na maior parte na chamada "terra dos brinquedos", a província de Guangdong (sudeste do país).

Desse local procedem, por exemplo, o boneco "Buzz Lightyear" (do desenho "Toy Story"), um dos mais populares da Walt Disney. Há ainda uma ampla gama de produtos da empresa Mattel, a fabricante das bonecas "Barbie". A mão-de-obra infantil usadas nessas fábricas é remunerada a 13 centavos de dólar por hora, numa jornada diária de 14 horas de trabalho. Por sua vez, em 2007, o lucro da Mattel atingiu US$ 379,6 milhões (US$ 1,05 por ação).

No Brasil, apesar da lei estabelecer 16 anos como a idade mínima para o ingresso no mercado de trabalho, mais de 5 milhões de crianças e jovens entre 7 e 15 anos trabalham nesse país, segundo pesquisa do IBGE - grande parte delas na agricultura.

De acordo com dados da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e do Programa Internacional de Eliminação do Trabalho Infantil ( IPEC ), base 2006, existem no mundo cerca de 350 milhões de crianças entre 5 e 16 anos envolvidas em alguma atividade econômica. Entre elas, cerca de 250 milhões são submetidas a condições consideradas de exploração, o que equivale a uma criança em cada seis no mundo. Destas, 170 milhões trabalham em condições perigosas e 76 milhões têm idade inferior a 10 anos. A maior parte deste "exército de mini-trabalhadores" (entre 5 e 14 anos de idade) vive na Ásia (127 milhões) e na África e Oriente Médio (61 milhões).

Na América Latina e Caribe são 17,4 milhões. Os países industrializados e o leste europeu não são exemplos de boa conduta nesse problema, uma vez que abrigam pelo menos 5 milhões de crianças trabalhando. Uma parte menor, mas dramaticamente consistente, desse contingente de trabalhadores é vitima de escravidão e destinada, por exemplo, à atividade de prostituição - número estimado em 8,4 milhões de crianças no mundo.

Em Bombaim, nos bordéis localizados na rua de Falkland, as meninas mais jovens e bonitas são exibidas em jaulas ao nível da rua para atrair clientes. Muitas mulheres são ali despejadas por traficantes, mas muitas são definitivamente "vendidas" pelos pais ou pelos maridos. Estima-se que atualmente 90 mil mulheres - metade das quais despachadas a partir do Nepal para a Índia - trabalham como prostitutas nessa cidade. A violência, as doenças, a subnutrição e a falta de cuidados médicos reduzem a esperança de vida para menos de 40 anos dessas pobres trabalhadoras.

Todos esses poucos (diante de uma infinidade) exemplos fazem parte de um modelo econômico insano que privilegia os ganhos financeiros em detrimento do sofrimento e da dor.

No mesmo instante em que crescem os lucros de empresas como a Nike, Adidas, Matell, das redes alimentícias Mc Donald´s e similares, dos fabricantes de tapetes do Nepal, da Índia e do Paquistão, cresce a dor e o sofrimento de milhões de indivíduos que "contribuem" com horas e horas de trabalho para os ganhos exorbitantes desses grandes conglomerados que superam em importância econômica várias nações. Não por acaso, nesse pormenor, 51% das cem maiores economias do mundo são corporações, e não países.

Enquanto esse modelo econômico perverso não for alterado, o alargamento dos bolsões de pobreza, miséria e indigência será constante. Enquanto o próprio conceito de economia não incluir em suas análises a valorização e a participação do indivíduo, nenhuma mudança será possível. Nesse sentido, enquanto a economia não for solidária e participativa, o modelo econômico atuante será o de sempre: excludente e individual, guiado unicamente pelo egoísmo e pela insensibilidade perante o sofrimento de muitos.

Por Economia Solidária entendemos um sistema econômico em que o indivíduo seja o ponto central na organização da atividade econômica e, acima de tudo, em que os direitos sociais sejam estabelecidos como princípios reguladores da economia. Economia Solidária pressupõe que a responsabilidade seja coletiva, e não individual; onde haja a união do capital ao trabalho, unindo o trabalho associativo (ajuda mútua) entre associações, cooperativas e agências de fomento.

No entanto, não nos iludamos: a mudança para uma economia solidária e participativa exigirá tempo. Necessitará, nas palavras de Riane Eisler, autora de The Real Wealth of Nations, [A Verdadeira Riqueza das Nações], "modificações nos valores culturais e institucionais". Mas, não tenhamos dúvidas: se um número suficiente de pessoas se mobilizar, ela terá lugar.

Dessa forma, a economia precisa urgentemente mudar em prol da melhora de vida dos mais necessitados. Uma economia mais justa e solidária é perfeitamente possível e, com ela, não haverá perdedores - todos ganharão. Diante disso, resta nos mobilizarmos e nos inserirmos participando da economia solidária; afinal, entendemos que a economia (enquanto ciência) deve se pôr exclusivamente à serviço de diminuir as diferenças sociais que são, infelizmente, cada vez mais gritantes.

* Marcus Eduardo de Oliveira é economista e professor universitário - Mestre pela USP em Integração da América Latina e Especialista em Política Internacional - Autor dos livros "Conversando sobre Economia" (ed. Alínea) e "Provocações Econômicas" (no prelo).

José não existe. Por isso, o Congresso o ignora

Blog do Sakamoto


José nasceu no Maranhão, mas mora no Piauí. Nesses Estados, os trabalhadores acabam fugindo do desemprego nas grandes cidades e da falta de condições para cultivar sua própria terra para outros lugares movidos por histórias de serviço farto. José deixou sua casinha em uma favela na periferia da capital Teresina e foi se aventurar no Sul do Pará para tentar dar melhores condições de vida à sua esposa e ao seu filho de quatro meses. Logo chegando, perdeu um dedo da mão ao cortar madeira. “Me deram duas caixas de comprimido: uma para desinflamar e outra para tirar a dor”, conta. Além disso, só um cala a boca. Depois, foi limpar o pasto para o gado e levantar cercas. O “gato” (contratador de mão-de-obra que faz a ponte entre o empregador e o peão) havia o encontrado na rodoviária quando estava passando fome e prometido um bom emprego. Bom emprego… A carne que lhe era dada estava podre, casa de vermes. O pagamento do salário ficava na promessa havia dois meses. Só o trabalho, que lhe comia a mão de tanto aplicar veneno sem proteção, era uma certeza diária. Se não tivesse sido libertado pelo governo federal naquele momento, ia se afogar no seu próprio suor em comemoração ao seu 17º aniversário alguns dias depois.
Tirei esta foto de José tempos atrás, durante a operação de fiscalização que o resgatou. Hoje se comemora o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. Assim como ele, quase outras 40 mil pessoas já foram retiradas dessas condições desde 1995. Muito se fez para combater o problema, mas muito falta a ser feito. Por exemplo, combater de forma eficaz a pobreza, garantindo acesso a serviços públicos e a oportunidades e não apenas se preocupando com a renda.
E o pior de tudo é ter que ouvir, ano após ano, da boca de nobres deputados federais e senadores, que José não existe. E, por isso, aprovar leis sobre o tema (como a que confisca terras em que esse crime for encontrado) é um fato completamente insano. Coisa de louco.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Adivinhe quem vem para jantar

Luiz Felipe Pondé

VOCÊ NAMORARIA o porteiro do seu prédio? “O quê?!” Assusta-se a leitora, nesta segunda-feira, dia 31 de janeiro.

Hoje, o ano novo já mergulha na corrida sonambúlica de todos os anos velhos. Claro que seus planos para 2011 não darão certo.

Provavelmente você continuará menos amada do que gostaria, ganhando menos do que gostaria, com os mesmos amigos chatos, os mesmos namorados bobos (os melhores já estão “ocupados”, como sempre, ainda que você possa, como sempre, tentar tomá-los das suas melhores amigas) e pegando o trânsito idiota de todo feriadão para ir a praias que são cheias de gente brega e mal-educada. Aquelas mesmas que invadem os aeroportos com seus quilos de bagagem e sua alegria de praça de alimentação.

Calma, talvez eu esteja apenas enganado, e em 2011 aconteça tudo que aquela vidente picareta disse para você que ia acontecer.

“Que diabos este colunista está querendo dizer com essa história de eu namorar o porteiro do meu prédio?” Mas, claro, ela não responde a minha pergunta, porque uma pergunta como essa pode revelar que ela não é tão legal quanto gosta de fazer parecer em jantares inteligentes.

Essa pergunta não é minha propriamente, mas de um amigo meu bem esquisito. Ele fez essa pergunta em meio a uma discussão sobre ter ou não ter preconceitos, e achei que era muito bem pensada. Na realidade, a conversa nasceu do meu desgosto com o estilo de vida “praça de alimentação”. Esse meu desgosto deixa muita gente “legal” indignada.

Pessoalmente, suspeito fortemente de gente “legal” e “indignada”, confio mais em gente blasé.

Imagine você, toda bonita, magra na medida certa, dieta de baixo impacto calórico e bem-sucedida na profissão, mãe de um filho de 12 anos preocupado com o aquecimento global, enquanto deixa o quarto sempre desarrumado, até que você se descabele e comece a berrar “arrume esse quarto, menino!”. Agora imagine você saindo com o porteiro de seu prédio, de mãos dadas, num desses restaurantes chiquinhos que você frequenta.

Do que vocês conversariam? Que tal sobre sua revolta contra preconceitos e contra injustiça social? Que tal um beijo na boca bem gostoso em nome da igualdade social? Você já viu aquele filme “Adivinhe Quem Vem para Jantar”, com Sydney Poitier? Veja.

Antes que o plantão dos humilhados e ofendidos grite, também sou contra injustiça social e contra preconceito. Hoje todo mundo que sabe comer de boca fechada também sabe sofrer pelas criancinhas da África. Atualmente, ser contra injustiça social e contra preconceitos é tão banal quanto ler horóscopo todo dia de manhã.

Incrível como, suavemente, todos os ideais sociais modernos tombam, como o cristianismo já tombara desde a Antiguidade tardia, à hipocrisia social de salão.

Agora, imagine você, caro leitor, homem moderno, sensível, machista nem pensar, que acredita em redes sociais, que diz por aí que não tem medo de mulher (mentiroso, todo homem tem medo de mulher, principalmente quando está interessado nela).

Imagine que sua filha está a fim do porteiro do seu prédio. Imagine ela saindo com ele. Ele dirigindo o carro que você deu para ela. Que tal eles irem a algum churrasco na laje que ele frequenta? Ou, quem sabe, ir a alguma dessas igrejas por aí onde o Espírito Santo “baixa” e as pessoas pulam e gritam feito loucas “Aleluia, aleluia!”?

Que tal se sua filha quiser se casar com ele? Você paga pelo casamento? Que tal um filhinho com a cara dele? Você visitará a família dele no Nordeste?

Mas, atenção: nada de resort cinco estrelas ou pousadinhas de um holandês doidão que se cansou da Europa e veio em busca de uma natureza selvagem. Hospede-se na casa da família dele.

Agora, imagine nosso belo casal, tirando seus filhos dessas escolas chiquinhas que ensinam aos seus filhos “consciência social” ao preço de quase R$ 2.000 mensais, em bairros “nobres”. Agora pense neles matriculando seus filhos em 2011 (afinal, ano novo, vida nova) numa escola pública onde o filho do seu porteiro estuda.

Agora convide seu porteiro para jantar. Qual é o nome dele mesmo?

fonte: Folha de S.Paulo

Ação sóciopolítica e a justificação pela fé

Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital


Uma das perguntas que comumente se houve quando alguém se dedica a ações e lutas em favor dos mais pobres, dos mais vulneráveis e os mais marginalizados na sociedade é "o que você ganha com isso?”

Esta é uma pergunta razoável, pois de fato, se a ação é realmente bem-intencionada, isto é não visa autopromoção (de si ou do seu grupo, partido ou Igreja), não se ganha muita coisa; e com certeza terá problemas e incompreensões. É claro que no início há o idealismo e o entusiasmo de estar construindo um mundo melhor; e também o reconhecimento de outros que notam a diferença dessas iniciativas. Mas, com o passar do tempo, o entusiasmo do início é substituído pela rotina, os reconhecimentos desaparecem porque não é mais novidade e surge também um certo desencanto com os resultados que ficam muito abaixo das nossas expectativas. E aos poucos vamos desistindo do nosso idealismo e tornando-nos mais "amadurecidos” e nos adaptando ao nosso mundo em redor. O "Espírito do Mundo” acaba nos tomando por dentro, pouco a pouco.

Quando a rotina chega e as frustrações ou decepções vão minando o nosso entusiasmo, é tempo de justificar para nós mesmos a razão da nossa "rebeldia” frente aos valores e práticas do "mundo”. Se não encontramos essa justificação, corremos o risco desistirmos ou de nos "burocratizarmos” nas nossas ações sociais ou na vida religiosa, tornando-nos meros cumpridores de ações e ritos que não questionam o sistema sócio-cultural e o seu espírito, e nem alegram a nossa vida.

As pessoas integradas no sistema capitalista têm as suas aspirações e ações justificadas pelos valores e ideologia (incluindo o sistema religioso) do sistema. Pessoas que descobriram que esses valores e ideologia são desumanizadoras precisam encontrar um outro modo de justificar as suas ações e vidas.

O argumento bastante usado na luta ambiental de que devemos cuidar da natureza para que nós e nossos descendentes possamos ter uma boa vida é alternativo à ideologia neoliberal, mas não é suficiente para justificar as ações em favor dos excluídos. É uma justificação ainda centrada na noção da preservação de "nós”, de "nossos interesses”. Não é suficiente para justificar lutas e solidariedade em favor dos mais excluídos do campo que compõe o "nós” (por ex., pessoas que estão morrendo na miséria em algum ligar perdido no mundo ou mulheres que são submetidas à violência e opressão em nome de valores religiosos e culturais considerados sagrados pela sua comunidade).

Quando não há nenhum sistema de pensamento filosófico, jurídico ou religioso reconhecido pela sociedade que justifique essas ações e modo de vida, é preciso recorrer ao ensinamento do Paulo apóstolo: essa "opção pelos pobres e excluídos” é justificada pela fé. Mas, não uma fé em um sentido genérico; como se todo e qualquer tipo de fé fosse humanizador. Paulo estava se referindo a fé em Jesus, que morreu na cruz, condenado pelo sistema filosófico-jurídico-político romano e pela religião a que ele pertencia. Isto é, as ações e a vida de Jesus não podiam ser justificadas pela "razão” vigente, pela "sabedoria do mundo” (cf. 1Cor 3).

Ser cristão (o argumento também vale para membros de outras religiões) não é ter devoção a Jesus, mas sim seguir o caminho de Jesus. Viver como Jesus viveu, como Jesus viveria hoje. O que justifica ser solidário/a com os mais pobres e assumir lutas que não nos gerarão nenhum ganho extra para nós é o desejo de viver como Jesus viveu, desejo de sermos testemunhos/as do amor gratuito de Deus por toda a humanidade.

Madre Teresa de Calcutá (a quem fiz referência no artigo anterior), quando estava pedindo a sua saída da Congregação das Irmãs de Loreto – onde atuava em uma escola para classe média – para trabalhar com as pessoas miseráveis da Índia, justificou este seu desejo (não compreendido pela maioria) escrevendo: "Devo ir-me –a Índia é tão abrasadora como o inferno– mas suas almas são belas e preciosas porque Sangue de Jesus as alcançou”. Esta linguagem religiosa tradicional, escrita em 1923, não deve fazer-nos perder o foco do mais importante: o que a levou a assumir uma vida que sabia que seria muito difícil foi a sua fé de que essas pessoas miseráveis também eram amadas de forma radical por Jesus. A mudança radical da sua vida foi justifica pela sua fé; e a sua vida foi movida pelo desejo, como ela escreveu, de "fazer o mesmo trabalho que Jesus fazia quando estava na terra”.

[Autor, com Hugo Assmann, do livro "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”, Paulus].

domingo, 30 de janeiro de 2011

’É dando que se recebe?’

Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor
Adital
Estamos em tempos de montagem de governos. Há disputas por cargos e funções por parte de partidos e de políticos. Ocorrem sempre negociações, carregadas de interesses e de muita vaidade. Neste contexto, se ouve citar um tópico da inspiradora oração de São Francisco pela paz "é dando que se recebe” para justificar a permuta de favores e de apoios onde também rola muito dinheiro. É uma manipulação torpe do espírito generoso e desinteressado de São Francisco. Mas desprezemos estes desvios e vejamos seu sentido verdadeiro.
Há duas economias: a dos bens materiais e a dos bens espirituais. Elas seguem lógicas diferentes. Na economia dos bens materiais, quanto mais você dá bens, roupas, casas, terras e dinheiro, menos você tem. Se alguém dá sem prudência e esbanja perdulariamente acaba na pobreza.
Na economia dos bens espirituais, ao contrario, quanto mais dá, mais recebe, quanto mais entrega, mais tem. Quer dizer, quanto mais dá amor, dedicação e acolhida (bens espirituais) mais ganha como pessoa e mais sobe no conceito dos outros. Os bens espirituais são como o amor: ao se dividirem, se multiplicam. Ou como o fogo: ao se espalharem, aumentam.
Compreendemos este paradoxo se atentarmos para a estrutura de base do ser humano. Ele é um ser de relações ilimitadas. Quanto mais se relaciona, vale dizer, sai de si em direção do outro, do diferente, da natureza e até de Deus, quer dizer, quanto mais dá acolhida e amor mais se enriquece, mais se orna de valores, mais cresce e irradia como pessoa.
Portanto, é "dando que se recebe”. Muitas vezes se recebe muito mais do que se dá. Não é esta a experiência atestada por tantos e tantas que dão tempo, dedicação e bens na ajuda aos flagelados da hecatombe socioambiental ocorrida nas cidades serranas do Rio de Janeiro, no triste mês de fevereiro, quando centenas morreram e milhares ficaram desabrigados? Este "dar” desinteressado produz um efeito espiritual espantoso que é sentir-se mais humanizado e enriquecido. Torna-se gente de bem, tão necessária hoje.
Quando alguém de posses dá de seus bens materiais dentro da lógica da economia dos bens espirituais para apoiar aos que tudo perderam e ajudá-los a refazer a vida e a casa, experimenta a satisfação interior de estar junto de quem precisa e pode testemunhar o que São Paulo dizia: "maior felicidade é dar que receber” (At 20,35). Esse que não é pobre se sente espiritualmente rico.
Vigora, portanto, uma circulação entre o dar e o receber, uma verdadeira reciprocidade. Ela representa, num sentido maior, a própria lógica do universo como não se cansam de enfatizar biólogos e astrofísicos. Tudo, galáxias, estrelas, planetas, seres inorgânicos e orgânicos, até as partículas elementares, tudo se estrutura numa rede intrincadíssima de inter-retro-relações de todos com todos. Todos co-existem, interexistem, se ajudam mutuamente, dão e recebem reciprocamente o que precisam para existir e co-evoluir dentro de um sutil equilíbrio dinâmico.
Nosso drama é que não aprendemos nada da natureza. Tiramos tudo da Terra e não lhe devolvemos nada nem tempo para descansar e se regenerar. Só recebemos e nada damos. Esta falta de reciprocidade levou a Terra ao desequilíbrio atual.
Portanto, urge incorporar, de forma vigorosa, a economia dos bens espirituais à economia dos bens materiais. Só assim restabeleceremos a reciprocidade do dar e do receber. Haveria menos opulência nas mãos de poucos e os muitos pobres sairiam da carência e poderiam sentar-se à mesa comendo e bebendo do fruto de seu trabalho. Tem mais sentido partilhar do que acumular, reforçar o bem viver de todos do que buscar avaramente o bem particular. Que levamos da Terra? Apenas bens do capital espiritual. O capital material fica para trás.
O importante mesmo é dar, dar e mais uma vez dar. Só assim se recebe. E se comprova a verdade franciscana segundo a qual ”é dando que recebe” ininterruptamente amor, reconhecimento e perdão. Fora disso, tudo é negócio e feira de vaidades.
[Autor de A oração de São Francisco, Vozes 2010].
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