sábado, 14 de abril de 2012

O amor e a dor por um futuro que não virá

Fonte: Adital


Jung Mo Sung
Diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
Adital

O que acaricia uma mulher recém-grávida quando passa as mãos sobre a sua barriga que ainda nem começou mostrar sinais? Na sua imaginação, é o seu neném que ela acaricia; mas se olharmos friamente, esse embrião ou feto ainda não desenvolveu órgãos e o sistema nervoso para que pudesse ser chamado de neném. No fundo, a futura mãe acaricia o futuro que deseja. Ela sabe que carrega dentro de si o seu filho ou sua filha, mesmo que ainda não é, porque a realidade não é feita somente do que é no ato, no momento, mas também aquilo que pode ser, a promessa que o presente carrega dentro de si. Aristóteles já nos ensinou que o que chamamos de real está composto do que é em ato e a potência, aquilo que pode ser.

O amor ao futuro que pode ser e que é desejado alimenta nossa esperança. Essa capacidade de ver o que ainda não existe, de viver a vida como se o futuro deseja já estivesse presente mesmo que de modo invisível, tem a ver com a fé. Essa articulação entre o que existe e a promessa do que pode ser melhor é uma característica do modo humano de conhecer e viver.

Em tudo na vida, desde a gravidez até lutas sociais e políticas revolucionárias, passando por situações cotidianas como sair de casa para ir a cinema, vivemos essa "mistura entre o presente e o futuro e, portanto, também o passado.

O debate em torno da permissão ou não da interrupção da gravidez de um feto anencefálico tem muito a ver com essa perspectiva do futuro. O STF decidiu que um feto sem cérebro, por não ter possibilidade de viver após o parto, não é uma vida humana e, portanto, a interrupção da gravidez não se caracteriza como aborto. O que estava legalmente em discussão não era o aborto, mas se fetos com essa anormalidade são ou não portadores de vida humana, isto é, se tem possibilidade de se tornarem ou se realizarem o seu potencial de ser humanos.

As mães que decidem levar esse tipo de gravidez adiante, provavelmente, fazem isso por amor ao que poderia ter sido! Desejam viver com amor, no presente, o futuro que não poderá acontecer. Mesmo que isso seja por curto tempo e carregado de dor e angústia por saber antecipadamente do final triste. As mães que preferem interromper, provavelmente, fazem isso por sentir que a dor da interrupção do futuro desejado é demasiada para suportar. Preferem interromper a gestação porque o futuro que se encaminha é tão triste e doloroso que o presente se torna insuportável. Não interrompem a gravidez porque rejeitam a criança, mas porque não suportam no presente a dor prevista no futuro próximo.

Como podemos julgar essas mulheres sem passar na pele essa situação tão dramática? Se não nos colocamos no lugar das pessoas que sofrem, nossos juízos pretensamente éticos, baseados em valores pretensamente eternos, não passam de juízos moralistas. Isso vale para todos os casos em que há muita dor envolvida, casos em que nenhuma resposta dá conta de modo definitivo.

[Aautor, com H. Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres. Twitter: @jungmosung].

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O sentido da vida: o consumidor como elite revolucionária


O truque mais incrível da Apple, alcançado através tanto de marketing quanto de filosofia, é fazer com que seus consumidores sintam que estão pessoalmente fazendo história – que são uma espécie de elite histórico-espiritual, mesmo quando existem milhões deles. O comprador de um produto da Apple sente que está fazendo parte de uma missão histórico-mundial, uma revolução – e Jobs gostava tanto da retórica revolucionária que a revista Rolling Stone deu a ele o apelido de “Sr. Revolução”.

[...] Não é de admirar que a contracultura tenha malogrado no começou da década de 1980: a promessa era que todos podiam mudar o mundo comprando um Macintosh. Equiparar a Apple ao processo histórico (Hegel chega a Palo Alto!) e convencer o mercado de que a companhia sempre representa o lado bom de todo conflito abriu horizontes não mapeados em criatividade promocional. Para vender seus produtos Jobs recorreu ao poder da cultura; ele foi um gênio do marketing porque apelava sempre para o sentido da vida. Com sua primeira linha de computadores, a Apple apropriou-se com sucesso do tema da decentralização de poder na tecnologia que foi tão caro para a Nova Esquerda na década anterior. Se as pessoas ansiavam por uma tecnologia que fosse pequena e bonita – para emprestar o slogan de E. F. Schumarcher, popular naquela época, – Jobs podia dar isso a elas.

A Apple permitiu que gente que havia perdido todas as batalhas importantes da sua era pudesse participar de uma luta sua – uma batalha por progresso, por humanidade, por inovação. E essa era uma batalha que só podia ser vencida nas lojas. Como disse à revista Esquire, no começo da década de 1980, o diretor de marketing da Apple: “Todos sentíamos que tínhamos perdido o movimento dos direitos civis. Tínhamos perdido o Vietnam. O que tínhamos era o Macintosh”. O consumidor como revolucionário: era uma noção brilhante – e, é claro, uma ilusão terrível.
 
Evgeny Morozov, em Form and Fortune,
pela mão de Matt Cardin

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Outra espiritualidade possível



Ricardo Gondim
Amor é substantivo. Amar é verbo. Substantivos abstratos são o que a própria definição aponta: inconsistentes, vagos, voláteis. Amor é sentimento ansioso por vertebrar-se. Verbos são todos concretos. O amor, se não virar ação, permanece verbete, fria definição de algum dicionário. Talvez palavra frívola dos folhetins baratos.  Amor, para ser verdadeiro, precisa desdobrar-se em compromisso – e adquirir tato.
O cotidiano, a rotina, a mesmice,  conspiram contra o amor gerado por sentimentos momentâneos. Emoções efêmeras não sobrevivem à tritura da repetição. O dia a dia, porém, solidifica o amar compromissado. A cada instante, momentos delicados do viver se misturam aos hábitos. Só com o tempo a declaração “eu te amo” ganha significado.
Amar aceita a imperfeição – não só a tolera. Os apaixonados são todos iludidos. Os amantes atravessam o largo canal que separa as idealizações das pessoas verdadeiras. No amar, o outro é celebrado com menos distorção. Quando se ama, perdoar perde a força de controle – ambos se sabem carentes de compreensão.
Amar é descobrir, de mãos dadas, a beleza de viver. A dor, descobrimos sozinhos. Alegria precisa de companhia. Alguns momentos só valem quando partilhados. Não tem graça fazer churrasco no quintal sem riso e sem conversa. Ou beber o melhor vinho sem amigo para brindar. Ou contemplar uma linda paisagem sem poder comentar.  Ou repartir a alegria de ver uma criança sorrindo.
Soli Deo Gloria

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Breve nota sobre o amor



Ricardo Gondim
Amor é substantivo. Amar é verbo. Substantivos abstratos são o que a própria definição aponta: inconsistentes, vagos, voláteis. Amor é sentimento ansioso por vertebrar-se. Verbos são todos concretos. O amor, se não virar ação, permanece verbete, fria definição de algum dicionário. Talvez palavra frívola dos folhetins baratos.  Amor, para ser verdadeiro, precisa desdobrar-se em compromisso – e adquirir tato.
O cotidiano, a rotina, a mesmice,  conspiram contra o amor gerado por sentimentos momentâneos. Emoções efêmeras não sobrevivem à tritura da repetição. O dia a dia, porém, solidifica o amar compromissado. A cada instante, momentos delicados do viver se misturam aos hábitos. Só com o tempo a declaração “eu te amo” ganha significado.
Amar aceita a imperfeição – não só a tolera. Os apaixonados são todos iludidos. Os amantes atravessam o largo canal que separa as idealizações das pessoas verdadeiras. No amar, o outro é celebrado com menos distorção. Quando se ama, perdoar perde a força de controle – ambos se sabem carentes de compreensão.
Amar é descobrir, de mãos dadas, a beleza de viver. A dor, descobrimos sozinhos. Alegria precisa de companhia. Alguns momentos só valem quando partilhados. Não tem graça fazer churrasco no quintal sem riso e sem conversa. Ou beber o melhor vinho sem amigo para brindar. Ou contemplar uma linda paisagem sem poder comentar.  Ou repartir a alegria de ver uma criança sorrindo.
Soli Deo Gloria

terça-feira, 10 de abril de 2012

O inferno

Ricardo Gondim

O invejoso não consegue esconder o tamanho de sua contrição. Por mais que agrida, sempre sofre. O valor que brilha nos outros dói nele. Não se conforma em ver-se preterido pela Providência. Seu talento, genialidade e riqueza não podem ser subavaliados. Muitas vezes piedoso no que constata, embarga a voz. Mas seu choro nunca expressa admiração. É jeito de remoer-se. Ardiloso, consegue até criar um eufemismo: inveja é apreciação – mal resolvida talvez, mas apreciação. Ressentido, chega a largar as pedras; prefere encher as mãos de lama. Melhor sujar do que matar.

O invejoso adora rotular. As etiquetas que pendura no peito dos desafetos não pretendem diminuir. São meras tentativas de afastar incautos da grandeza de quem abomina. “Como pode ser tão admirável”, pergunta-se. Alexandre Pronzato não deixa por menos: “O homem torna-se uma abstração quando lhe colo na pele uma etiqueta, quando o classifico. E quantas etiquetas existem por aí, já prontinhas! Materialista, ateu, liberal, comunista, progressista, revolucionário, libertino, reacionário. E a etiqueta impede de vê-lo e avizinhá-lo em sua realidade mais autêntica: um homem, um irmão”.

O invejoso não consegue amar; sequer amar a si mesmo. Detesta-se por não ter ou ser o que tanto aprecia. François Varillon diagnostica: “Se amasse ou se amasse bem – porque há um amor por si mesmo que não é egoísmo – não ficaria descontente com a força, a riqueza ou talento que florescem a seu redor e tornam o mundo mais belo”.

José Ingenieros sintetiza toda a psicologia da inveja numa simples fábula: “Um ventrudo sapo grasnava em seu pântano quando viu resplandecer no mais alto de uma pedra um vagalume. Pensou que nenhum ser teria direito de luzir qualidades que ele mesmo não possuiria jamais. Mortificado pela própria impotência, saltou em direção a ele e o encobriu com seu ventre gelado. O inocente vagalume ousou perguntar ao seu algoz: ‘Por que me tapas? E o sapo, congestionado pela inveja, apenas conseguiu interrogá-lo: ‘Por que brilhas?’”.

Os Dez Mandamentos, contados (ou percebidos) de cima para baixo, podem mostrar a degradação que a inveja impõe aos cobiçosos. O mandamento dez ordena: não cobice. A partir daí começa a derrocada do invejoso: no nono mandamento, levanta falso testemunho; no oitavo, rouba; no sétimo, traí; e no sexto, mata. Cobiçoso e homicida, separados no processo de agir, são iguais.

René Girard denomina essa mistura de desejo mimético. Girard usa a palavra mímesis porque entende que a violência se esconde no desejo. Somos constituídos a partir da imitação. E essa imitação não evolui, entre homens e mulheres, impune. Desejamos, desde o dia em que nascemos. Desejo que tanto leva à imitação quanto gera a vontade de suplantar o outro. Desejo e rejeição se imbricam na constituição humana.  Admiramos e odiamos, simultaneamente, quem se mostra capaz de possuir o que se tornou o alvo de nossa cobiça. Se, a princípio, imitamos, logo rejeitamos. Desejo mimético é disputar não apenas a posição que o outro ocupa ou o que ele é, mas, desejar os mesmos desejos que ele. Portanto, desejo mimético pode ser sintetizado numa pequena frase: desejar o que o outro deseja.

James Alison explica a teoria mimética de René Girard valendo-se de uma boa ilustração. “Quero uma jaqueta de aviador de caça porque vi o Tom Cruise vestindo uma no filme Ases Indomáveis(Top Gun). Até aqui tudo bem. Tom Cruise está muito longe. Eu nunca o conheci pessoalmente e nunca vou brigar com ele por causa de sua jaqueta. Além do mais, empresários inteligentes já se adiantaram à ocasião saturando o mercado com jaquetas de aviadores de guerra, de maneira que não vou precisar disputá-las com o mediador do meu desejo. Próximo de casa, todavia, depois de termos assistido ao filme Ases Indomáveis, um amigo e eu saímos às compras em busca de uma jaqueta de couro; e ele quer que eu o acompanhe para ajudá-lo a escolher uma bela jaqueta de aviador. De repente, ele vê uma jaqueta tipo Ases Indomáveis com um design bacana que adora, mas não tem dinheiro para comprar. Misteriosamente, nenhuma das outras 378 jaquetas da loja me chamam a atenção. Tenho que possuir aquela. Mais tarde, volto sorrateiramente à loja com meu cartão de crédito e a compro. Quando, mais tarde, encontro meu amigo num bar, ele não está nem um pouco contente. Discutimos violentamente: ‘Você roubou minha jaqueta’, ele diz. ‘Eu vi primeiro’. ‘Isso não é verdade’, digo. ‘Eu sempre a quis’, respondo, escondendo de mim mesmo e de meu amigo o fato de que, na realidade, por gostar dele e por querer ser como ele, eu tinha que tê-la. De qualquer maneira, por que o imbecil do meu amigo fez tanta questão que eu o admirasse naquela jaqueta, por que fez tanta questão que eu também a cobiçasse?”.

Eis a trilha por onde a inveja se intromete. Sorrateira, se instala na alma e gera violência. Valendo-se de pensamentos bem lógicos e racionais, o invejoso esconde no porão do inconsciente o que o desnuda: ele não passa de um fraco. Por isso, despreza. Encerrado na própria solidão e desesperado em mostrar-se essencial ao mundo, ausenta-se de tudo e de todos – Eis o Inferno, senhoras e senhores. À beira do barranco, onde inferno e solidão se confundem, o invejoso vomita sua maledicência no mundo. Inebriado, procura no próprio charco o espelho de sua formosura. Nada sente senão ressentimento e ódio. “Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes da emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras…” [Vinicius de Moraes]

Soli deo Gloria

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Um Esclarecimento

Tu és santo, único Deus Senhor,
Que operas coisas maravilhosas

Tu és forte, és grande, és altíssimo
És rei onipotente: tu, Pai santo,
rei do céu e da terra

Tu és trino e uno, Senhor Deus dos deuses
És o bem, todo o bem, o sumo bem,
o Senhor Deus vivo e verdadeiro

Tu és caridade, és sapiência
És humildade, és paciência
És beleza, és mansidão
És segurança, és descanso

Tu és júbilo e alegria,
És nossa esperança
És justiça
És moderação
És toda nossa riqueza e suficiência

Tu és beleza
Tu és mansidão
És protetor, és nosso guardião e nosso defensor
És força, és conforto

Tu és a nossa esperança
Tu és a nossa fé
Tu és a nossa caridade

És toda a nossa doçura
És nossa vida eterna, grande e admirável Senhor
Deus onipotente,
Misericordioso Salvador

 

Este texto, entregue por São Francisco a Frei Leão em 1224 (isto é, dois anos antes de morrer) e preservado hoje em dia em Assis, é um dos dois manuscritos de sua própria mão que sobreviveram aos séculos. Como em toda a marca que Francesco deixou sobre a terra, ele passa com resignação pelas coisas grandes e de menos importância requeridas pela ortodoxia (tu és rei onipotente, trino e uno, etc) e pausa sobre as coisas importantes – isto é, pequenas e singelas e que dizem respeito à cumplicidade entre os homens na qual se revela a divindade:tu és beleza, tu és mansidão (que aparecem juntas duas vezes) e, meu Deus, tu és toda a nossa doçura. Numa palavra, ele começa falando de teologia e termina falando sobre Jesus.

O pergaminho original revela que na primeira vez em que aparece a palavra “caridade”, como que para deixar um sumo e definitivo esclarecimento, Francesco voltou atrás e escreveu, acima da palavra latina caritas, a palavra (que em latim se escreve como em português) amor.

Fonte: A Bacia das Almas

domingo, 8 de abril de 2012

Sermão do Monte – o cristianismo heróico

Fonte : site do Ricardo Gondim 

O cristianismo não deve ser apresentado como uma consolação vulgar, mas como uma promoção do homem… É vocação para viver como filho de Deus, na condição humana plenamente aceita, por conseguinte, para remodelar continuamente o mundo, todas as formas sociais, todas as instituições, de modo que deem uma imagem menos imperfeita do que deve ser uma comunidade de filhos de Deus…

O cristianismo é um chamado ao heroísmo…

Não há vantagem nenhuma, bem ao contrário, em nos determos no cristianismo dolente e lacrimoso que quer apoiar nas “bem aventuranças” os que apreciam o artificialismo nas coisas espirituais. Como se Cristo se dirigisse aqui a almas feridas!… Que falseamento das máximas decisivas pelas quais Jesus condena, sem apelo, a felicidade barata e as alegrias fáceis, dá-nos o sentido de nossa verdadeira grandeza e ensina-nos que é nosso próprio apetite de felicidade que deve ser transformado…

Nietzsche não errou em salientar tudo o que se insinua preguiça, de medo de esforço, de desejo de um repouso covarde, e acrescentaremos, de egoísmo com todas as suas taras, no desejo espontâneo de felicidade mesmo num cristão. A felicidade à altura de uma alma aproximadamente heroica é a única que Cristo oferece aos que querem segui-lo.

O primeiro trabalho do cristianismo é dar-nos, por mais que tenha de buscar-nos, uma alma desse quilate. Assim não se propõe a nós como uma receita para ser infalivelmente feliz, mas como uma iniciação à verdadeira grandeza.

 

[Y. de Montecheuil – Mélanges théologiques, p. 183  - citado por François Varillon em Fundamentos da Fé Cristã]

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