sábado, 21 de abril de 2012

O destino eterno de Deus


Inteiramente irrelevante para o resto do mundo, desenrola-se nos nossos dias um acirrado embate teológico que em nada fica devendo às elucubrações do escolasticismo medieval. O prêmio almejado por ambos os lados da discussão é o status de ortodoxia – a consagração de crença correta, oficial, credenciada, inquestionável e inquestionada. Em jogo está quem tem direito a usar a marca do verdadeiro cristianismo©. Com quem Deus vai ficar no final?

COM QUEM DEUS VAI FICAR NO FINAL?

CALVINISMO: Em defesa da soberania de Deus

Deste lado, pesando 400 anos e com treinadores peso-pesado como Martinho Lutero e Calvino, está o calvinismo, sistema teológico característico das igrejas de tradição reformada. Os títulos já dizem tudo sobre a sua origem histórica: o calvinismo ostenta ser extensão fiel da postura teológica geral da reforma protestante do século XVI – refletindo em especial o pensamento de João Calvino e de seus discípulos imediatos.

No que interessa para a nossa discussão é preciso dizer que o calvinismo enfatiza tanto a tremenda soberania de Deus (Deus faz o que quer) quanto a tremenda incompetência do homem (o homem é incapaz de fazer por si mesmo qualquer coisa de bom).

O calvinista crê encontrar na Bíblia que Deus é soberano, e entende com isso que o livre-arbítrio humano é coisa que não existe. O homem, atolado até o pescoço na fossa do pecado, não tem qualquer inclinação, capacidade ou independência moral para desejar a Deus, quanto menos o cacife para escolher tomar o lado divino a fim de encontrar a salvação. Os que são salvos são salvos por iniciativa inconcidional de Deus tomada na eternidade antes do tempo começar a se desenrolar – ou seja, não com base em qualquer mérito, disposição em mudar ou manifestação de fé do indivíduo favorecido.

A morte sacrificial de Cristo não beneficia toda a humanidade, mas apenas essa porcentagem de eleitos que Deus escolheu em sua misericórdia e sem precisar dar explicações a ninguém. Essa graça concedida em favor dos eleitos é “irresistível” – isto é, do mesmo modo que não fez nada para merecê-la, o predestinado não tem liberdade para rejeitá-la e vai acabar cedendo a ela na hora certa, e para sempre. Os outros, predestinados à destruição, não tem por um lado espaço de manobra para mudarem o seu próprio destino, por outro direito a reclamarem dele.

Não é sem fundamento bíblico que o calvinismo deita essas propostas aparentemente paralisantes e deterministas. O apóstolo Paulo, em particular, parece fornecer ampla credencial para cada um dos pontos defendidos pelos calvinistas. Para citar uns poucos exemplos:

Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos; e aos que predestinou, a estes também chamou; e aos que chamou, a estes também justificou; e aos que justificou, a estes também glorificou (Romanos 8:29-30).

…que nos salvou, e chamou com uma santa vocação, não segundo as nossas obras, mas segundo o seu próprio propósito e a graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos (2 Timóteo 1:9).

Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus que usa de misericórdia (Romanos 9:16).

O CALVINISMO ENFATIZA A SOBERANIA DE DEUS E A INCOMPETÊNCIA DO HOMEM.

O conceito de predestinação parece também ter feito parte integrante do discurso do próprio Jesus e de outras tradições apostólicas:

Se o Senhor não abreviasse aqueles dias, ninguém se salvaria; mas ele, por causa dos eleitos que escolheu, abreviou aqueles dias (Marcos 13:20).

Os gentios, ouvindo isto, alegravam-se e glorificavam a palavra do Senhor; e creram todos quantos haviam sido destinados para a vida eterna (Atos 13:48).

Ancorado nessa qualidade de testemunhos o calvinismo sustenta que a soberania divina deve ser entendida em termos de um controle firme de Deus sobre as rédeas da história. A liberdade de escolha de que o homem crê desfrutar é ilusória, visto que o desenrolar do enredo, em especial no que diz respeito a baixas e resgates individuais, já foi definido por Deus antes das câmeras começarem a rodar.

As particularidades do sistema calvinista refletem com exatidão as condições ideológicas do mundo em que nasceu. A reforma protestante levantou-se em grande parte como reação aos abusos teológicos, sociais e políticos da igreja católica do seu tempo. Os reformadores mostravam particular indignação para com a obsessão circular da igreja católica com as “boas obras”, obras alegadamente meritórias e/ou sacrificiais através dos quais o adorador podia garantir – e muitas vezes comprar – a sua salvação. Os reformadores criam, e com acerto, que o Deus da Bíblia não admite barganhas; ele exige performance mas não aceita subornos e não reconhece méritos, promovendo a reconciliação exclusivamente através de sua própria postura cavalheiresca, a que os autores do Novo Testamento dão o nome de graça.

O calvinismo é o resultado de se levar a idéia de predestinação às suas últimas conseqüências lógicas. Se Deus predestinou, a graça é irresistível. Se Deus predestinou, não foi para todos que Jesus morreu. Se Deus predestinou, a liberdade humana é uma ilusão e uma farsa. Se Deus predestinou, ele conhece o futuro por inteiro e a história está pronta – apenas não terminou de ser filmada.

TEÍSMO ABERTO: Em defesa da liberdade

Deste lado, pesando menos de 30 anos mas alegando ser a reencarnação de um espírito muito anterior ao nascimento do calvinismo, está o teísmo aberto, batizado com esse nome em 1980 pelo adventista Richard Rice. O teísmo aberto traz à tona idéias que já circulavam sob alguma forma no pensamento de Jacobus Arminius, de John Wesley e de diversos teólogos do século XIX, porém aplica-lhes um matiz muito peculiar e arma-se de novos argumentos.

O teísmo aberto fundamenta-se na premissa de que muitos dos dogmas do teísmo clássico (e portanto do calvinismo) não tem sua origem na Bíblia ou na tradição dos apóstolos, mas são fruto de uma assimilação sacrílega de conceitos importados da filosofia grega. É o pensamento grego clássico e não a Bíblia – sustentam eles, e com acerto – que descreve Deus como sendo imutável, impassível e fora do tempo.

Seus partidários enfatizam que “atributos” de Deus como onisciência e onipotência não aparecem na Bíblia com esse nome, sendo generalizações posteriores forjadas a partir de indicações muito cautelosas dos autores bíblicos; mesmo o conhecido título de “Todo-Poderoso” é resultado da tradução arbitrária de uma expressão hebraica cujo significado original se perdeu. O Deus descrito na Bíblia é por um lado tremendamente poderoso, sábio e constante, por outro prefere definir-se por qualidades de auto-esvaziamento como misericórdia, tolerância e amor.

Em contraste com o calvinismo, o teísmo aberto enfatiza o caráter relacional de Deus (Deus desce da sua soberania para inaugurar um relacionamento aberto com o homem) e a liberdade e a responsabilidade humanas (Deus concedeu verdadeiro livre-arbítirio ao homem).

O partidário do teísmo aberto crê encontrar na Bíblia que Deus concedeu autonomia mais do que ilusória ao homem, e entende com isso que Deus não pode ser soberano como o classificam os calvinistas. O homem não pode salvar-se por si mesmo da sua condição, mas Deus desce da sua grandeza para convidar o homem a estabelecer um relacionamento livre com ele. Embora seja no fim das contas salvo apenas pela conduta galante e inclusiva de Deus, cabe ao homem rejeitar ou aceitar o convite para o abraço de reconciliação.

O TEÍSMO ABERTO ENFATIZA O CARÁTER RELACIONAL DE DEUS E A LIBERDADE E A RESPONSABILIDADE HUMANAS.

A morte sacrificial de Cristo beneficia de forma potencial toda a humanidade, porque o futuro permanece em aberto e enquanto vive o homem pode aceitar o convite da graça – convite esse que é tremendamente atraente mas não irresistível, já que Deus achou por bem relacionar-se com agentes livres e não com (a imagem é recorrente na argumentação dos teístas abertos) marionetes.

Todos estão portanto “predestinados” à salvação, mas o homem é livre para recusar esse destino glorioso e, como o Don Giovanni de Mozart, dizer no! ao mais sedutor dos apelos e abraçar voluntariamente o inferno. Como resultado dessa terrível liberdade que concedeu ao homem, Deus não tem como conhecer todos os detalhes do futuro – daí a corrente definir-se por uma visão “aberta” de Deus.

O Deus do teísmo aberto está inserido na história e não num inconcebível lugar fora do tempo; é um Deus que sofre e se relaciona; que está aberto ao diálogo e a mudar de opinião. É um Deus que, basicamente, recusou-se a viciar os dados e resolveu correr o risco da rejeição, na esperança de poder experimentar o verdadeiro amor.

Também não é sem fundamento bíblico que o teísmo aberto define suas proposições. O Deus da Bíblia sente-se muito à vontade no fluxo da história; as Escrituras judaico-cristãs fornecem abundante testemunho de Deus cedendo a pedidos, experimentando surpresa e desapontamento e mudando de idéia a partir da perfomance humana – incidentes que parecem contradizer a visão determinista do calvinismo. Inúmeros textos bíblicos enfatizam a responsabilidade humana no processo de salvação e o caráter relacional e recíproco das alianças de Deus com o homem. Algumas passagens chegam a falar de gente rejeitando trágica e deliberadamente (precisamente como Don Giovanni) o desígnio de Deus para suas vidas.

Arrependo-me de haver posto a Saul como rei; porquanto deixou de me seguir, e não cumpriu as minhas palavras (1 Samuel 15:11).

O Senhor se arrependeu de haver constituído Saul rei sobre Israel (1 Samuel 15:35).

Viu Deus o que fizeram, como se converteram do seu mau caminho; e Deus se arrependeu do mal que tinha dito lhes faria, e não o fez (Jonas 3:10).

Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência (Deuteronômio 30:19).

Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado (Marcos 16:16).

Deus deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade (1 Timóteo 2:4 ).

Ora, é para esse fim que labutamos e nos esforçamos sobremodo, porquanto temos posto a nossa esperança no Deus vivo, Salvador de todos os homens, especialmente dos fiéis (1 Timoteo 4:10).

Mas os fariseus e os intérpretes da Lei rejeitaram, quanto a si mesmos, o desígnio de Deus, não tendo sido batizados por ele (Lucas 7:30).

Ancorado nessa qualidade de testemunhos o teísmo aberto sustenta que a soberania divina deve ser entendida como uma supervisão geral do Deus poderoso sobre uma história que ainda não está pronta. No fluxo dessa narrativa Deus intervém, mas não manipula; age, mas não condena ninguém ao inferno. A liberdade do homem é terrivelmente real, refletindo a liberdade do próprio Deus; é o encontro dessas liberdades que qualifica o tipo de relacionamento que Deus propõe experimentar com o homem. Deus não escolhe se definir pelo seu tremendo poder, mas pelo esvaziamento de poder, conforme exuberantemente manifesto na encarnação e na carne de Jesus.

As particularidades do teísmo aberto refletem com exatidão as condições ideológicas do mundo em que nasceu: o nosso. Desde meados do século XX a posição político-ideológica prevalente no ocidente e em suas colônias é essencialmente libertária, isto é, glorifica a autodeterminação. A liberdade de decisão é o único valor inegociável da nossa cultura, e qualquer relação entre dois agentes é concebível, desde que seja consensual. Como resultado, nenhuma relação não-consensual nos parece legítima. Pela lógica libertária, dizer graça irrestível é o mesmo que dizer graça nenhuma. O determinismo calvinista incomoda os teístas abertos não apenas por negar a liberdade do homem, mas por limitar a liberdade de Deus. Entendem eles que o Deus da Bíblia é poderoso não por dirigir a história com punho de ferro, mas por garantir um resultado final positivo sem dobrar-se à solução fácil que seria controlar todas as variáveis.

O teísmo aberto é o resultado de se levar a idéia da predestinação às suas últimas conseqüências lógicas. Se Deus predestinou, a liberdade humana é uma farsa. Se Deus predestinou, Jesus morreu para beneficiar uma elite arbitrária de eleitos, o que é moralmente inaceitável e incompatível com o caráter amoroso e inclusivo de Deus revelado no tom geral da Escritura. A missão do sistema do teísmo aberto é libertar Deus das amarras da sua soberania e a devoção cristã das contradições impensáveis do determinismo.

CAÇADORES DE CONSEQÜÊNCIAS

O arcabouço dessa disputa precede em muito o cristianismo, visto que reflete a discussão, já presente entre os pensadores da Antiguidade, sobre a atordoante possibilidade (e a ainda mais atordoante possibilidade da impossibilidade) do livre-arbítrio. Em vocabulário ou mitologia contemporâneos, costuma-se especular até que ponto o comportamento do ser humano é determinado pela genética (como defende a sociobiologia) ou pela influência do meio (como sustentam muitas correntes da psicologia). Se (digamos) metade do nosso comportamento é determinado pela herança genética e a outra metade pela interação com o meio, restará espaço para o livre-arbítrio? A ciência, domínio para a qual transferiram-se desde o Iluminismo discussões metafísicas dessa natureza, não apresenta resposta unânime. Richard Dawkins e outros expoentes menos preconceituosos da ciência cognitiva tomam hoje por absolutamente certo que o livre-arbítrio humano é uma ilusão. Por outro lado, no universo selvagem da incerteza quântica simplificações como o determinismo é que parecem inconcebíveis.

Para calvinistas contemporâneos e teístas abertos, que procuram propor e responder a questão em termos de um outro tempo, a importância do embate entre soberania de Deus e livre-arbítrio fica clara quando se consideram as terríveis conseqüências lógicas, morais e ideológicas, de se abraçar a doutrina oposta.

Os teístas abertos começaram a ganhar terreno e adeptos denunciando, basicamente, o que vêem ser as abomináveis conseqüências morais do calvinismo. Para aceitar o calvinismo da ortodoxia, argumentam eles, é preciso endossar uma série de noções teológicas incompatíveis com o caráter generoso e relacional de Deus. Por exemplo: [1] que Deus é o único responsável pelo mal, [2] que Deus está mentindo quando dá entender que o homem é responsável por suas ações, [3] que a oração de súplica é uma farsa perversa, visto que o futuro é imutável e Deus não pode ser persuadido a mudar de idéia, [4] que de nada adianta pregar a boa nova, visto que os eleitos acabarão encontrando a luz de uma forma ou de outra, [5] que não existem injustiças sociais ou morais, visto que cada baixa de todas as guerras e de todas as pobrezas estavam previstas no roteiro original do próprio Deus.

“DEIXE DEUS SER BOM”.

Os calvinistas rebatem com o que creem ser as inadmissíveis conseqüências teológicas do teísmo aberto. O Deus do teísmo aberto é, reclamam eles: [1] menos do que onisciente, porque não conhece o futuro, [2] menos do que onipotente, porque não será capaz de impor a sua vontade se estiver restringido pela liberdade humana, [3] menos do que absoluto e eterno, por estar sujeito ao avanço linear do tempo no próprio universo que criou e [4] menos do que onipresente, porque o futuro não é uma realidade presente para ele.

Como demonstram essas séries muito simplificadas de objeções de ambos os lados, a preocupação fundamental dos teístas abertos é defender a bondade de Deus; a dos calvinistas é defender seus atributos.

Significativamente, um embate quase nos mesmos termos desenrolou-se há quase cinco séculos entre dois influentes pensadores cristãos, Martinho Lutero e Erasmo de Rotterdam, que trocaram acalorada correspondência sobre o assunto. Erasmo era ardente defensor da bondade de Deus, Lutero da sua soberania. Da mesma forma que calvinistas contemporâneos e teístas abertos, e quase com os mesmos raciocínios, ambos enxergavam com clareza as falhas teológicas e morais da posição do outro. Em determinado momento, desconcertado com a argumentação inclemente do seu oponente e resumindo sua expectativa e sua postura, Erasmo implorou a Lutero numa carta: “Deixe Deus ser bom”. Sem ceder um passo, Lutero retrucou em seguida, resumindo as suas: “Deixe Deus ser Deus”.

FOGUEIRAS VIRTUAIS: O martelo dos blogueiros

Esse é o tipo de discussão teológica que até dez anos atrás estava confinada a corredores acadêmicos e periódicos de seminário, avançando devagar e um artigo atrás do outro, longe dos olhos do público geral. Graças aos canais fáceis da internet, a altercação adquiriu um novo ardor e acendeu uma nova inquisição.

A disputa entre a doutrina calvinista e o teísmo aberto desenrola-se hoje em dia em blogs, fóruns de discussão, mailing lists, comunidades do orkut e mensagens reencaminhadas de e-mail. Nenhum líder tupiniquim chegou, que eu saiba, a abraçar abertamente o teísmo aberto, mas a doutrina calvinista conta com defensores pugnazes como a tradutora Norma Braga e os austeros pastores do blog O Tempora, O Mores (que assinam com a intimidadora advertência Very Strong Opinions).

Acusados com freqüência de flertar com o teísmo aberto são os líderes evangélicos que ousaram lamentar as conseqüências morais do calvinismo e opinar que a realidade talvez não seja tão simples. Em particular os impenitentes Ricardo Gondim, da Igreja Assembléia de Deus Betesda, e Ed René Kivitz, da Igreja Batista da Água Branca, sofrem pesado patrulhamento ideológico dos reformados. Tudo que esses dois dizem que pode representar alguma ameaça à ortodoxia calvinista – e eles dizem muita coisa do gênero: por exemplo, aqui eaqui – é imediatamente desconstruído pelos seus oponentes nos fóros virtuais que mencionei (por exemplo, aqui).

Os reformados acusam Gondim e Kivitz, no âmbito ideológico, de relativismo, que consiste na desconfiança tipicamente pós-moderna a posições doutrinárias categóricas e absolutas; no âmbito moral, de dissimulação, denunciando a hesitação da dupla em assumir publicamente que abandonou a ortodoxia em favor de uma doutrina alternativa – confissão que tornaria mais fácil o trabalho de desclassificá-los como hereges. Acusam-nos de não entender a verdadeira doutrina calvinista, na qual soberania de Deus e responsabilidade humana não são incompatíveis. Acusam-nos de falta de objetividade, confusão essencial e raleza de argumentação. Pelo que conheço dos dois (são meus amigos) essas acusações podem muito bem ter fundamento. Gondim e Kivitz, cujas idéias estão condenadas à reformulação eterna, escolheram o impalpável caminho da precariedade, que é tão largo que são poucos os que entram por ele. Sua fé diz mais a respeito às suas dúvidas do que às suas certezas; isso cria um precedente que é essencialmente destrutivo à supremacia da ortodoxolatria e precisa ser por essa razão eliminado pelos que se preocupam com esse tipo de coisa.

O EVANGELHO DA COMPARAÇÃO

Como Gondim e Kivitz, prefiro a confortável posição de denunciar o calvinismo sem endossar a doutrina do teísmo aberto – doutrina que é no fim das contas tão limitante e extrema quanto a que pretende invalidar. Agir diferente seria glorificar uma ortodoxia em detrimento da outra; desmanchar um ídolo para colocar outro no lugar. Responder com contra-argumentações às objeções dos reformados seria concordar com eles na sua pressuposição fundamental (e mais sem fundamento), de que a razão e o raciocínio dedutivo podem produzir conclusões acuradas a respeito do mecanismo de Deus.

Isso porque a falta essencial que os calvinistas encontram no teísmo aberto e na teologia racional é de lógica. Seus defensores prestam culto à lógica formal, seguindo implacavelmente de suas próprias premissas a conclusões estanques:

PREMISSA: DEUS É ETERNO POR NATUREZA

  • Como Deus é eterno por natureza, Deus não é restrito nem está contido no tempo.
  • Como Deus criou o universo, e como Deus não é sujeito ao tempo, e como o universo opera dentro do tempo, Deus também criou o tempo quando criou o universo.
  • Como Deus criou o tempo, ele existe fora do tempo e não está sujeito às suas propriedades e limitações.

PREMISSA: DEUS É ONIPRESENTE

  • A onipresença de Deus não é restrita pelo tempo porque Deus, por natureza, não é restrito pelo tempo.
  • Como Deus não é restrito pelo tempo, e como ele é onipresente, o futuro é uma realidade presente para Deus.
  • Como está em todos os lugares e em todos os instantes do tempo, Deus conhece todas as coisas, até mesmo as futuras escolhas de suas criaturas.

assim por diante.

Porém o que alguém está realmente dizendo quando recorre a abstrações como “Deus é eterno por natureza”? O que é ser eterno por natureza? O raciocínio pode ser considerado um guia claro para a natureza da eternidade? O que é ser onipresente? Pode Deus estar presente em lugares que não existem? O futuro é um lugar? O futuro existe? Faz sentido falar do futuro como algo além de possibilidade? Faz sentido esperar que a perspectiva do tempo seja capaz de produzir vislumbres acurados sobre a natureza da eternidade? Faz sentido esperar que Deus faça sentido racional? Podemos tirar conclusões seguras a respeito de Deus a partir do raciocínio dedutivo?

A VERDADE CRISTÃ PODE SER INQUESTIONAVELMENTE ABRAÇADA, JAMAIS EXPLICADA OU ENTENDIDA.

Muda às exigências das teologias, a Bíblia não se rende em momento algum às pretensões da lógica formal, fornecendo testemunho distinto tanto em favor da inquestionável autonomia de Deus quanto da liberdade e da responsabilidade do homem. Do ponto de vista dos autores bíblicos uma coisa não nega necessariamente nem impõe limites à outra; ninguém precisa sair em defesa da bondade ou da soberania de Deus apenas para passar a ferro contradições aparentes, resultado da limitação do nosso ponto de vista. O mesmo Jesus que sugere que o Pai pode ser persuadido pela insistência pura e simples garante que Deus mantém o inventário até mesmo dos cabelos que nos caem da cabeça. Jesus, que sustentava que o domínio de Deus só pode ser vislumbrado a partir de comparações – “a que compararei o reino de Deus?” – cria que não é preciso escolher entre um Deus que muda de idéia e um Deus que está no controle de tudo; entre um Deus que resgata soberanamente e sem motivo e um Deus que concede autonomia e exige responsabilidade. Esses, provoca Jesus, são o mesmo Deus, e só permanecem incompatíveis enquanto nos dobramos ao apelo, sempre enganador em questões espirituais, da razão.

Certo é que o Deus da Bíblia, que recusa-se à rebaixar-se à lógica, não hesita em definir-se consistentemente por uma história de relacionamento com a sua criação. O homem teomórfico de Gênesis prefigura o Deus antropomórfico dos evangelhos. Entre uma capa e outra da Bíblia repousa o abraço terno desses dois. A mensagem consistente da voz ou das vozes bíblicas parece ser que a verdade de Deus só pode ser experimentada adequadamente pelo relacionamento – jamais pela razão, pela doutrina ou pela lei, que são símbolos ou intermediários.

A verdade cristã (“eu sou o caminho, a verdade e a vida”) é, desconcertantemente, uma pessoa com a qual podemos nos relacionar, não uma série de enunciados lógicos que possamos apreender através da razão. Como qualquer pessoa em qualquer relacionamento, a verdade cristã pode ser inquestionavelmente abraçada, jamais explicada ou entendida.

É nisso que reside a falha fundamental de sistemas estanques como o calvinismo e o teísmo aberto: não em alguma lógica interna deficiente, como quer tentar nos convencer o debate entre ambas as partes, mas na deficiência inerente da própria lógica para explicar as bases e o mecanismo de qualquer relacionamento, quanto mais a mais atordoante das paixões.

O efeito dessa nossa obsessão em precisar o conteúdo intelectual da verdadeira fé está em que enquanto fazemos isso conseguimos manter Jesus irrelevante para o restante e vasta maioria do mundo. A impressão que passamos é que a coisa mais útil e importante que o cristão pode fazer é definir intelectualmente e sem arestas a forma como Deus funciona e em seguida defender a todo custo o seu ponto de vista. O conteúdo revolucionário da mensagem de Jesus não chega a ser sequer levado em consideração, já que usamos a teologia como cortina de fumaça para não termos que encará-lo de frente. Enquanto tentamos determinar quem Deus vai endossar no final, não somos obrigados a enfrentar o impensável desafio que seria endossarmos os desafios dele.

Leia também:
A sedução da ortodoxia
Morte aos comentaristas
Pós-modernidade e proclamação


O destino eterno de Deus


Inteiramente irrelevante para o resto do mundo, desenrola-se nos nossos dias um acirrado embate teológico que em nada fica devendo às elucubrações do escolasticismo medieval. O prêmio almejado por ambos os lados da discussão é o status de ortodoxia – a consagração de crença correta, oficial, credenciada, inquestionável e inquestionada. Em jogo está quem tem direito a usar a marca do verdadeiro cristianismo©. Com quem Deus vai ficar no final?

COM QUEM DEUS VAI FICAR NO FINAL?

CALVINISMO: Em defesa da soberania de Deus

Deste lado, pesando 400 anos e com treinadores peso-pesado como Martinho Lutero e Calvino, está o calvinismo, sistema teológico característico das igrejas de tradição reformada. Os títulos já dizem tudo sobre a sua origem histórica: o calvinismo ostenta ser extensão fiel da postura teológica geral da reforma protestante do século XVI – refletindo em especial o pensamento de João Calvino e de seus discípulos imediatos.

No que interessa para a nossa discussão é preciso dizer que o calvinismo enfatiza tanto a tremenda soberania de Deus (Deus faz o que quer) quanto a tremenda incompetência do homem (o homem é incapaz de fazer por si mesmo qualquer coisa de bom).

O calvinista crê encontrar na Bíblia que Deus é soberano, e entende com isso que o livre-arbítrio humano é coisa que não existe. O homem, atolado até o pescoço na fossa do pecado, não tem qualquer inclinação, capacidade ou independência moral para desejar a Deus, quanto menos o cacife para escolher tomar o lado divino a fim de encontrar a salvação. Os que são salvos são salvos por iniciativa inconcidional de Deus tomada na eternidade antes do tempo começar a se desenrolar – ou seja, não com base em qualquer mérito, disposição em mudar ou manifestação de fé do indivíduo favorecido.

A morte sacrificial de Cristo não beneficia toda a humanidade, mas apenas essa porcentagem de eleitos que Deus escolheu em sua misericórdia e sem precisar dar explicações a ninguém. Essa graça concedida em favor dos eleitos é “irresistível” – isto é, do mesmo modo que não fez nada para merecê-la, o predestinado não tem liberdade para rejeitá-la e vai acabar cedendo a ela na hora certa, e para sempre. Os outros, predestinados à destruição, não tem por um lado espaço de manobra para mudarem o seu próprio destino, por outro direito a reclamarem dele.

Não é sem fundamento bíblico que o calvinismo deita essas propostas aparentemente paralisantes e deterministas. O apóstolo Paulo, em particular, parece fornecer ampla credencial para cada um dos pontos defendidos pelos calvinistas. Para citar uns poucos exemplos:

Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos; e aos que predestinou, a estes também chamou; e aos que chamou, a estes também justificou; e aos que justificou, a estes também glorificou (Romanos 8:29-30).

…que nos salvou, e chamou com uma santa vocação, não segundo as nossas obras, mas segundo o seu próprio propósito e a graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos (2 Timóteo 1:9).

Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus que usa de misericórdia (Romanos 9:16).

O CALVINISMO ENFATIZA A SOBERANIA DE DEUS E A INCOMPETÊNCIA DO HOMEM.

O conceito de predestinação parece também ter feito parte integrante do discurso do próprio Jesus e de outras tradições apostólicas:

Se o Senhor não abreviasse aqueles dias, ninguém se salvaria; mas ele, por causa dos eleitos que escolheu, abreviou aqueles dias (Marcos 13:20).

Os gentios, ouvindo isto, alegravam-se e glorificavam a palavra do Senhor; e creram todos quantos haviam sido destinados para a vida eterna (Atos 13:48).

Ancorado nessa qualidade de testemunhos o calvinismo sustenta que a soberania divina deve ser entendida em termos de um controle firme de Deus sobre as rédeas da história. A liberdade de escolha de que o homem crê desfrutar é ilusória, visto que o desenrolar do enredo, em especial no que diz respeito a baixas e resgates individuais, já foi definido por Deus antes das câmeras começarem a rodar.

As particularidades do sistema calvinista refletem com exatidão as condições ideológicas do mundo em que nasceu. A reforma protestante levantou-se em grande parte como reação aos abusos teológicos, sociais e políticos da igreja católica do seu tempo. Os reformadores mostravam particular indignação para com a obsessão circular da igreja católica com as “boas obras”, obras alegadamente meritórias e/ou sacrificiais através dos quais o adorador podia garantir – e muitas vezes comprar – a sua salvação. Os reformadores criam, e com acerto, que o Deus da Bíblia não admite barganhas; ele exige performance mas não aceita subornos e não reconhece méritos, promovendo a reconciliação exclusivamente através de sua própria postura cavalheiresca, a que os autores do Novo Testamento dão o nome de graça.

O calvinismo é o resultado de se levar a idéia de predestinação às suas últimas conseqüências lógicas. Se Deus predestinou, a graça é irresistível. Se Deus predestinou, não foi para todos que Jesus morreu. Se Deus predestinou, a liberdade humana é uma ilusão e uma farsa. Se Deus predestinou, ele conhece o futuro por inteiro e a história está pronta – apenas não terminou de ser filmada.

TEÍSMO ABERTO: Em defesa da liberdade

Deste lado, pesando menos de 30 anos mas alegando ser a reencarnação de um espírito muito anterior ao nascimento do calvinismo, está o teísmo aberto, batizado com esse nome em 1980 pelo adventista Richard Rice. O teísmo aberto traz à tona idéias que já circulavam sob alguma forma no pensamento de Jacobus Arminius, de John Wesley e de diversos teólogos do século XIX, porém aplica-lhes um matiz muito peculiar e arma-se de novos argumentos.

O teísmo aberto fundamenta-se na premissa de que muitos dos dogmas do teísmo clássico (e portanto do calvinismo) não tem sua origem na Bíblia ou na tradição dos apóstolos, mas são fruto de uma assimilação sacrílega de conceitos importados da filosofia grega. É o pensamento grego clássico e não a Bíblia – sustentam eles, e com acerto – que descreve Deus como sendo imutável, impassível e fora do tempo.

Seus partidários enfatizam que “atributos” de Deus como onisciência e onipotência não aparecem na Bíblia com esse nome, sendo generalizações posteriores forjadas a partir de indicações muito cautelosas dos autores bíblicos; mesmo o conhecido título de “Todo-Poderoso” é resultado da tradução arbitrária de uma expressão hebraica cujo significado original se perdeu. O Deus descrito na Bíblia é por um lado tremendamente poderoso, sábio e constante, por outro prefere definir-se por qualidades de auto-esvaziamento como misericórdia, tolerância e amor.

Em contraste com o calvinismo, o teísmo aberto enfatiza o caráter relacional de Deus (Deus desce da sua soberania para inaugurar um relacionamento aberto com o homem) e a liberdade e a responsabilidade humanas (Deus concedeu verdadeiro livre-arbítirio ao homem).

O partidário do teísmo aberto crê encontrar na Bíblia que Deus concedeu autonomia mais do que ilusória ao homem, e entende com isso que Deus não pode ser soberano como o classificam os calvinistas. O homem não pode salvar-se por si mesmo da sua condição, mas Deus desce da sua grandeza para convidar o homem a estabelecer um relacionamento livre com ele. Embora seja no fim das contas salvo apenas pela conduta galante e inclusiva de Deus, cabe ao homem rejeitar ou aceitar o convite para o abraço de reconciliação.

O TEÍSMO ABERTO ENFATIZA O CARÁTER RELACIONAL DE DEUS E A LIBERDADE E A RESPONSABILIDADE HUMANAS.

A morte sacrificial de Cristo beneficia de forma potencial toda a humanidade, porque o futuro permanece em aberto e enquanto vive o homem pode aceitar o convite da graça – convite esse que é tremendamente atraente mas não irresistível, já que Deus achou por bem relacionar-se com agentes livres e não com (a imagem é recorrente na argumentação dos teístas abertos) marionetes.

Todos estão portanto “predestinados” à salvação, mas o homem é livre para recusar esse destino glorioso e, como o Don Giovanni de Mozart, dizer no! ao mais sedutor dos apelos e abraçar voluntariamente o inferno. Como resultado dessa terrível liberdade que concedeu ao homem, Deus não tem como conhecer todos os detalhes do futuro – daí a corrente definir-se por uma visão “aberta” de Deus.

O Deus do teísmo aberto está inserido na história e não num inconcebível lugar fora do tempo; é um Deus que sofre e se relaciona; que está aberto ao diálogo e a mudar de opinião. É um Deus que, basicamente, recusou-se a viciar os dados e resolveu correr o risco da rejeição, na esperança de poder experimentar o verdadeiro amor.

Também não é sem fundamento bíblico que o teísmo aberto define suas proposições. O Deus da Bíblia sente-se muito à vontade no fluxo da história; as Escrituras judaico-cristãs fornecem abundante testemunho de Deus cedendo a pedidos, experimentando surpresa e desapontamento e mudando de idéia a partir da perfomance humana – incidentes que parecem contradizer a visão determinista do calvinismo. Inúmeros textos bíblicos enfatizam a responsabilidade humana no processo de salvação e o caráter relacional e recíproco das alianças de Deus com o homem. Algumas passagens chegam a falar de gente rejeitando trágica e deliberadamente (precisamente como Don Giovanni) o desígnio de Deus para suas vidas.

Arrependo-me de haver posto a Saul como rei; porquanto deixou de me seguir, e não cumpriu as minhas palavras (1 Samuel 15:11).

O Senhor se arrependeu de haver constituído Saul rei sobre Israel (1 Samuel 15:35).

Viu Deus o que fizeram, como se converteram do seu mau caminho; e Deus se arrependeu do mal que tinha dito lhes faria, e não o fez (Jonas 3:10).

Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência (Deuteronômio 30:19).

Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado (Marcos 16:16).

Deus deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade (1 Timóteo 2:4 ).

Ora, é para esse fim que labutamos e nos esforçamos sobremodo, porquanto temos posto a nossa esperança no Deus vivo, Salvador de todos os homens, especialmente dos fiéis (1 Timoteo 4:10).

Mas os fariseus e os intérpretes da Lei rejeitaram, quanto a si mesmos, o desígnio de Deus, não tendo sido batizados por ele (Lucas 7:30).

Ancorado nessa qualidade de testemunhos o teísmo aberto sustenta que a soberania divina deve ser entendida como uma supervisão geral do Deus poderoso sobre uma história que ainda não está pronta. No fluxo dessa narrativa Deus intervém, mas não manipula; age, mas não condena ninguém ao inferno. A liberdade do homem é terrivelmente real, refletindo a liberdade do próprio Deus; é o encontro dessas liberdades que qualifica o tipo de relacionamento que Deus propõe experimentar com o homem. Deus não escolhe se definir pelo seu tremendo poder, mas pelo esvaziamento de poder, conforme exuberantemente manifesto na encarnação e na carne de Jesus.

As particularidades do teísmo aberto refletem com exatidão as condições ideológicas do mundo em que nasceu: o nosso. Desde meados do século XX a posição político-ideológica prevalente no ocidente e em suas colônias é essencialmente libertária, isto é, glorifica a autodeterminação. A liberdade de decisão é o único valor inegociável da nossa cultura, e qualquer relação entre dois agentes é concebível, desde que seja consensual. Como resultado, nenhuma relação não-consensual nos parece legítima. Pela lógica libertária, dizer graça irrestível é o mesmo que dizer graça nenhuma. O determinismo calvinista incomoda os teístas abertos não apenas por negar a liberdade do homem, mas por limitar a liberdade de Deus. Entendem eles que o Deus da Bíblia é poderoso não por dirigir a história com punho de ferro, mas por garantir um resultado final positivo sem dobrar-se à solução fácil que seria controlar todas as variáveis.

O teísmo aberto é o resultado de se levar a idéia da predestinação às suas últimas conseqüências lógicas. Se Deus predestinou, a liberdade humana é uma farsa. Se Deus predestinou, Jesus morreu para beneficiar uma elite arbitrária de eleitos, o que é moralmente inaceitável e incompatível com o caráter amoroso e inclusivo de Deus revelado no tom geral da Escritura. A missão do sistema do teísmo aberto é libertar Deus das amarras da sua soberania e a devoção cristã das contradições impensáveis do determinismo.

CAÇADORES DE CONSEQÜÊNCIAS

O arcabouço dessa disputa precede em muito o cristianismo, visto que reflete a discussão, já presente entre os pensadores da Antiguidade, sobre a atordoante possibilidade (e a ainda mais atordoante possibilidade da impossibilidade) do livre-arbítrio. Em vocabulário ou mitologia contemporâneos, costuma-se especular até que ponto o comportamento do ser humano é determinado pela genética (como defende a sociobiologia) ou pela influência do meio (como sustentam muitas correntes da psicologia). Se (digamos) metade do nosso comportamento é determinado pela herança genética e a outra metade pela interação com o meio, restará espaço para o livre-arbítrio? A ciência, domínio para a qual transferiram-se desde o Iluminismo discussões metafísicas dessa natureza, não apresenta resposta unânime. Richard Dawkins e outros expoentes menos preconceituosos da ciência cognitiva tomam hoje por absolutamente certo que o livre-arbítrio humano é uma ilusão. Por outro lado, no universo selvagem da incerteza quântica simplificações como o determinismo é que parecem inconcebíveis.

Para calvinistas contemporâneos e teístas abertos, que procuram propor e responder a questão em termos de um outro tempo, a importância do embate entre soberania de Deus e livre-arbítrio fica clara quando se consideram as terríveis conseqüências lógicas, morais e ideológicas, de se abraçar a doutrina oposta.

Os teístas abertos começaram a ganhar terreno e adeptos denunciando, basicamente, o que vêem ser as abomináveis conseqüências morais do calvinismo. Para aceitar o calvinismo da ortodoxia, argumentam eles, é preciso endossar uma série de noções teológicas incompatíveis com o caráter generoso e relacional de Deus. Por exemplo: [1] que Deus é o único responsável pelo mal, [2] que Deus está mentindo quando dá entender que o homem é responsável por suas ações, [3] que a oração de súplica é uma farsa perversa, visto que o futuro é imutável e Deus não pode ser persuadido a mudar de idéia, [4] que de nada adianta pregar a boa nova, visto que os eleitos acabarão encontrando a luz de uma forma ou de outra, [5] que não existem injustiças sociais ou morais, visto que cada baixa de todas as guerras e de todas as pobrezas estavam previstas no roteiro original do próprio Deus.

“DEIXE DEUS SER BOM”.

Os calvinistas rebatem com o que creem ser as inadmissíveis conseqüências teológicas do teísmo aberto. O Deus do teísmo aberto é, reclamam eles: [1] menos do que onisciente, porque não conhece o futuro, [2] menos do que onipotente, porque não será capaz de impor a sua vontade se estiver restringido pela liberdade humana, [3] menos do que absoluto e eterno, por estar sujeito ao avanço linear do tempo no próprio universo que criou e [4] menos do que onipresente, porque o futuro não é uma realidade presente para ele.

Como demonstram essas séries muito simplificadas de objeções de ambos os lados, a preocupação fundamental dos teístas abertos é defender a bondade de Deus; a dos calvinistas é defender seus atributos.

Significativamente, um embate quase nos mesmos termos desenrolou-se há quase cinco séculos entre dois influentes pensadores cristãos, Martinho Lutero e Erasmo de Rotterdam, que trocaram acalorada correspondência sobre o assunto. Erasmo era ardente defensor da bondade de Deus, Lutero da sua soberania. Da mesma forma que calvinistas contemporâneos e teístas abertos, e quase com os mesmos raciocínios, ambos enxergavam com clareza as falhas teológicas e morais da posição do outro. Em determinado momento, desconcertado com a argumentação inclemente do seu oponente e resumindo sua expectativa e sua postura, Erasmo implorou a Lutero numa carta: “Deixe Deus ser bom”. Sem ceder um passo, Lutero retrucou em seguida, resumindo as suas: “Deixe Deus ser Deus”.

FOGUEIRAS VIRTUAIS: O martelo dos blogueiros

Esse é o tipo de discussão teológica que até dez anos atrás estava confinada a corredores acadêmicos e periódicos de seminário, avançando devagar e um artigo atrás do outro, longe dos olhos do público geral. Graças aos canais fáceis da internet, a altercação adquiriu um novo ardor e acendeu uma nova inquisição.

A disputa entre a doutrina calvinista e o teísmo aberto desenrola-se hoje em dia em blogs, fóruns de discussão, mailing lists, comunidades do orkut e mensagens reencaminhadas de e-mail. Nenhum líder tupiniquim chegou, que eu saiba, a abraçar abertamente o teísmo aberto, mas a doutrina calvinista conta com defensores pugnazes como a tradutora Norma Braga e os austeros pastores do blog O Tempora, O Mores (que assinam com a intimidadora advertência Very Strong Opinions).

Acusados com freqüência de flertar com o teísmo aberto são os líderes evangélicos que ousaram lamentar as conseqüências morais do calvinismo e opinar que a realidade talvez não seja tão simples. Em particular os impenitentes Ricardo Gondim, da Igreja Assembléia de Deus Betesda, e Ed René Kivitz, da Igreja Batista da Água Branca, sofrem pesado patrulhamento ideológico dos reformados. Tudo que esses dois dizem que pode representar alguma ameaça à ortodoxia calvinista – e eles dizem muita coisa do gênero: por exemplo, aqui eaqui – é imediatamente desconstruído pelos seus oponentes nos fóros virtuais que mencionei (por exemplo, aqui).

Os reformados acusam Gondim e Kivitz, no âmbito ideológico, de relativismo, que consiste na desconfiança tipicamente pós-moderna a posições doutrinárias categóricas e absolutas; no âmbito moral, de dissimulação, denunciando a hesitação da dupla em assumir publicamente que abandonou a ortodoxia em favor de uma doutrina alternativa – confissão que tornaria mais fácil o trabalho de desclassificá-los como hereges. Acusam-nos de não entender a verdadeira doutrina calvinista, na qual soberania de Deus e responsabilidade humana não são incompatíveis. Acusam-nos de falta de objetividade, confusão essencial e raleza de argumentação. Pelo que conheço dos dois (são meus amigos) essas acusações podem muito bem ter fundamento. Gondim e Kivitz, cujas idéias estão condenadas à reformulação eterna, escolheram o impalpável caminho da precariedade, que é tão largo que são poucos os que entram por ele. Sua fé diz mais a respeito às suas dúvidas do que às suas certezas; isso cria um precedente que é essencialmente destrutivo à supremacia da ortodoxolatria e precisa ser por essa razão eliminado pelos que se preocupam com esse tipo de coisa.

O EVANGELHO DA COMPARAÇÃO

Como Gondim e Kivitz, prefiro a confortável posição de denunciar o calvinismo sem endossar a doutrina do teísmo aberto – doutrina que é no fim das contas tão limitante e extrema quanto a que pretende invalidar. Agir diferente seria glorificar uma ortodoxia em detrimento da outra; desmanchar um ídolo para colocar outro no lugar. Responder com contra-argumentações às objeções dos reformados seria concordar com eles na sua pressuposição fundamental (e mais sem fundamento), de que a razão e o raciocínio dedutivo podem produzir conclusões acuradas a respeito do mecanismo de Deus.

Isso porque a falta essencial que os calvinistas encontram no teísmo aberto e na teologia racional é de lógica. Seus defensores prestam culto à lógica formal, seguindo implacavelmente de suas próprias premissas a conclusões estanques:

PREMISSA: DEUS É ETERNO POR NATUREZA

  • Como Deus é eterno por natureza, Deus não é restrito nem está contido no tempo.
  • Como Deus criou o universo, e como Deus não é sujeito ao tempo, e como o universo opera dentro do tempo, Deus também criou o tempo quando criou o universo.
  • Como Deus criou o tempo, ele existe fora do tempo e não está sujeito às suas propriedades e limitações.

PREMISSA: DEUS É ONIPRESENTE

  • A onipresença de Deus não é restrita pelo tempo porque Deus, por natureza, não é restrito pelo tempo.
  • Como Deus não é restrito pelo tempo, e como ele é onipresente, o futuro é uma realidade presente para Deus.
  • Como está em todos os lugares e em todos os instantes do tempo, Deus conhece todas as coisas, até mesmo as futuras escolhas de suas criaturas.

assim por diante.

Porém o que alguém está realmente dizendo quando recorre a abstrações como “Deus é eterno por natureza”? O que é ser eterno por natureza? O raciocínio pode ser considerado um guia claro para a natureza da eternidade? O que é ser onipresente? Pode Deus estar presente em lugares que não existem? O futuro é um lugar? O futuro existe? Faz sentido falar do futuro como algo além de possibilidade? Faz sentido esperar que a perspectiva do tempo seja capaz de produzir vislumbres acurados sobre a natureza da eternidade? Faz sentido esperar que Deus faça sentido racional? Podemos tirar conclusões seguras a respeito de Deus a partir do raciocínio dedutivo?

A VERDADE CRISTÃ PODE SER INQUESTIONAVELMENTE ABRAÇADA, JAMAIS EXPLICADA OU ENTENDIDA.

Muda às exigências das teologias, a Bíblia não se rende em momento algum às pretensões da lógica formal, fornecendo testemunho distinto tanto em favor da inquestionável autonomia de Deus quanto da liberdade e da responsabilidade do homem. Do ponto de vista dos autores bíblicos uma coisa não nega necessariamente nem impõe limites à outra; ninguém precisa sair em defesa da bondade ou da soberania de Deus apenas para passar a ferro contradições aparentes, resultado da limitação do nosso ponto de vista. O mesmo Jesus que sugere que o Pai pode ser persuadido pela insistência pura e simples garante que Deus mantém o inventário até mesmo dos cabelos que nos caem da cabeça. Jesus, que sustentava que o domínio de Deus só pode ser vislumbrado a partir de comparações – “a que compararei o reino de Deus?” – cria que não é preciso escolher entre um Deus que muda de idéia e um Deus que está no controle de tudo; entre um Deus que resgata soberanamente e sem motivo e um Deus que concede autonomia e exige responsabilidade. Esses, provoca Jesus, são o mesmo Deus, e só permanecem incompatíveis enquanto nos dobramos ao apelo, sempre enganador em questões espirituais, da razão.

Certo é que o Deus da Bíblia, que recusa-se à rebaixar-se à lógica, não hesita em definir-se consistentemente por uma história de relacionamento com a sua criação. O homem teomórfico de Gênesis prefigura o Deus antropomórfico dos evangelhos. Entre uma capa e outra da Bíblia repousa o abraço terno desses dois. A mensagem consistente da voz ou das vozes bíblicas parece ser que a verdade de Deus só pode ser experimentada adequadamente pelo relacionamento – jamais pela razão, pela doutrina ou pela lei, que são símbolos ou intermediários.

A verdade cristã (“eu sou o caminho, a verdade e a vida”) é, desconcertantemente, uma pessoa com a qual podemos nos relacionar, não uma série de enunciados lógicos que possamos apreender através da razão. Como qualquer pessoa em qualquer relacionamento, a verdade cristã pode ser inquestionavelmente abraçada, jamais explicada ou entendida.

É nisso que reside a falha fundamental de sistemas estanques como o calvinismo e o teísmo aberto: não em alguma lógica interna deficiente, como quer tentar nos convencer o debate entre ambas as partes, mas na deficiência inerente da própria lógica para explicar as bases e o mecanismo de qualquer relacionamento, quanto mais a mais atordoante das paixões.

O efeito dessa nossa obsessão em precisar o conteúdo intelectual da verdadeira fé está em que enquanto fazemos isso conseguimos manter Jesus irrelevante para o restante e vasta maioria do mundo. A impressão que passamos é que a coisa mais útil e importante que o cristão pode fazer é definir intelectualmente e sem arestas a forma como Deus funciona e em seguida defender a todo custo o seu ponto de vista. O conteúdo revolucionário da mensagem de Jesus não chega a ser sequer levado em consideração, já que usamos a teologia como cortina de fumaça para não termos que encará-lo de frente. Enquanto tentamos determinar quem Deus vai endossar no final, não somos obrigados a enfrentar o impensável desafio que seria endossarmos os desafios dele.

Leia também:
A sedução da ortodoxia
Morte aos comentaristas
Pós-modernidade e proclamação


sexta-feira, 20 de abril de 2012

Como cobrir o Dia do Índio para a TV

Blog do Sakamoto

Cena de fazenda ocupada por indígenas no Sul da Bahia. Take em uma latinha de cerveja aberta e indígenas rindo de algo. Locução do repórter cobrindo as imagens: “Eles estão festejando a invasão de trocentos mil hectares de terra. Terra que, até então, era produtiva”.

Close em um deles, no que fala errado [desfocar as crianças indígenas com cara de pobres ao fundo]. Foco na falta de dentes do entrevistado. Se estiverem sujos, melhor: “Estamos esperando o governo nos atender, né?” [Edita e joga fora a parte do "Os pais dos pais dos meus pais costumavam viver nessa terra. Hoje, minha família vive de favor em outro terreno com outras famílias, né? Muita gente, não cabe, não dá para plantar, né?"]

Passagem para o laboratório da empresa dona da fazenda. Close na lágrima da cientista que perdeu parte da pesquisa com a ocupação na plantação dos eucaliptos: “Isso era a minha vida”. Se possível, subir som, resgatando versão do Milton Nascimento de “Coração de Estudante” que foi cantada no funeral de Tancredo Neves.

Tirar a entrevista com a liderança que fala bonito ["Na verdade, a tribo indígena 
pede há 30 anos que os títulos sobre a área, uma reserva já demarcada em
 1937, sejam anulados. Não estamos pedindo nova demarcação, apenas que se cumpra o que já foi decidido no passado"]. Não vai parecer que é índio, vai parecer que é político. E tirar fora aquelas imagens de crianças indígenas passando fome, refestelando-se com jaca velha. Nosso telespectador não quer ver isso enquanto está jantando.

Passagem para a prefeitura do município. Prefeito: “O medo é grande nas cidades por causa da ação dos nativos.” Locução do repórter: “E o prefeito denuncia.” Close no prefeito: “As ONGs internacionais e o MST é que arregimentaram todo esse povo nas favelas de Salvador para levar nossas terras. Eles não são nem índios. Eles parecem índios para você?”

Entra um “povo fala”. Botar a idosa senhora ["Tenho medo de vandalismo"], o comerciante ["Eles são contra o progresso, não querem ver geração de empregos"], o policial ["Normalmente, há muitas reclamações de alcoolismo com eles"] e o estudante com cara de hippie ["Mas os índios têm direito a essas terras por serem delas autóctones"].

Corta para o repórter na entrada da fazenda. Diz que a paralisação das atividades de produção de madeira na última semana fizeram o Brasil perder R$ 872 milhões em exportações [usar dados da associação de indústrias de celulose]. Repórter completa: “E, entre os invasores, há procurados pela polícia, como o cacique Escambau, foragido há anos”.

Volta para o estúdio, onde o apresentador faz cara de indignação, balançando a cabeça, antes de abrir um sorriso e chamar a matéria do Dia do Índio, em que crianças de uma escola de classe média alta de São Paulo receberam a visita de indígenas do extremo Sul do município. Matéria abre com imagens de jovens índios, no pátio da escola, trajados da forma como se espera deles, dançando, dançando, dançando…

Não é assim de jeito nenhum.

Mas, na verdade, é assim também.

Feliz Dia do Índio.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Deus e o humano

A singularidade do cristianismo consiste em não separar, nem justapor, Deus e o ser humano. Mas uni-los de tal forma que, ao falar do ser humano, falamos de Deus e, ao falar de Deus falamos do ser humano.

Leonardo Boff

jovem médico larga tudo para cuidar dos viciados na Cracolândia


O que Deus pergunta
 
Julgou a causa do aflito e do necessitado; por isso, tudo lhe ia bem. Porventura, não é isso conhecer-me? – diz o Senhor.
Jeremias 22:16
Dica: A Bacia das Almas

quarta-feira, 18 de abril de 2012

demais para nós

Fonte: A Bacia das Almas

Especula-se às vezes se a experiência do mistério e da transcendência está mais disponível para os que submeteram-se a alguma espécie de treinamento religioso ou espiritual, para os quais tudo [na experiência religiosa] já foi completamente catalogado e recebeu um nome. Ela pode estar menos disponível para esses precisamente porque têm tudo já nomeado no seu caderninho. Um modo de privar-se de uma experiência é aguardá-la com ansiedade. Outra é dar a ela um nome antes de experimentá-la. Carl Jung dizia que uma das funções da religião é proteger-nos da experiência religiosa. Isso porque na religião formal tudo já está concretizado e formulado. Porém, por natureza, trata-se de uma experiência que apenas você pode ter. Assim que a classifica junto com a de qualquer outra pessoa ela perde seu caráter. Um conjunto preconcebido de conceitos arrebata a experiência, interrompendo-a de modo a que não venha diretamente até nós. Religiões rebuscadas e detalhadas protegem-nos de uma explosiva experiência mística que poderia mostrar-se demais para nós.

Joseph Campbell, Thou Art That


terça-feira, 17 de abril de 2012

Os outros

Fonte: A Bacia das Almas

Joseph Cambpell, notável mapeador de mitos e discípulo de Jung, divide as religiões do mundo em dois grandes grupos, oriental e ocidental – sendo que o primeiro grupo inclui os países entre a fronteira leste do Irã e o Pacífico, o segundo todo o resto (inclusive o Oriente Médio). Essa divisão corresponde, até certo ponto, a minha divisão entre ritos circulares e religiões lineares, que resolvi estabelecer pela relação das religiões com a história.

Campbell, no entanto, prefere definir a distinção da seguinte forma: no Ocidente, Deus e o universo (o mundo, a realidade, a natureza) são coisas distintas; no Oriente, Deus e universo são indistinguíveis um do outro.

Nas religiões ocidentais, ele observa, “Deus fez o mundo, e Deus e o mundo não são a mesma coisa. Há uma distinção ontológica e essencial em nossa tradição entre criador e criatura. Isso gera uma psicologia e uma estrutura religiosa totalmente diferentes daquelas das religiões em que essa distinção não é feita”.

É uma observação arguta. As mentalidades oriental e ocidental não poderiam ser, neste sentido, mais distintas.

Identidade e relacionamento

O alvo primário das religiões orientais é despertar no homem um senso de identidade imediata com a divindade; fazer o cultuante descobrir, aturdido, que ele é parte de Deus – é, de fato, Deus – pela suficiente razão de ser parte do universo. Como Deus e universo são indistinguíveis um do outro, não teria como ser diferente.

Para as religiões ocidentais, por outro lado, existe uma tremenda distância entre Deus e o universo sua criação. Embora o homem em particular tenha sido feito “à imagem e semelhança de Deus”, uma identidade imediata com ele (“eu sou Deus”) é tida em geral como inconcebível e criminosa. Como alternativa, o adorador é convidado a estabelecer um relacionamento satisfatório com a divindade, o que é obtido tipicamente pela submissão do adorador a um conjunto de regras que crê-se delimitam a vontade divina para a conduta humana.

Identidade com Deus ou um relacionamento com ele, é a precisa distância entre a religião do oriente e a do ocidente.

A distância até Deus: você e o outro

As religiões monoteístas ocidentais (atenção à chamada: zoroastrismo, judaísmo, cristianismo, islamismo) são relativamente recentes na história e nasceram todas no Oriente Médio (razão pela qual, historicamente, a região é ao mesmo tempo o eixo que une e a espada que divide o ocidente).

Há quatro mil anos, como já vimos mais de uma vez, a idéia de um Deus que fosse inteiramente outro e ao mesmo tempo desejasse um relacionamento com os seres humanos, embora nos pareça hoje um tanto démodé, era tremendamente avant-garde.

Conforme sugere Campbell, esse novo conceito de Deus – distanciado e distinto mas ao mesmo tempo interessado em imitação e contato – gerou uma psicologia totalmente nova. Com o andar da carruagem, acabou gerando a cabeça ocidental – com espaço para responsabilidade pessoal, reflexão, culpa e obsessão com resultados.

Ainda mais importante, Deus tornou-se um espelho e um emblema efetivo para o Outro. Enquanto nas religiões orientais o enigma do Outro é respondido imediatamente pela resposta da identidade, no ocidente a máscara do Outro foi vestida por Deus. Ele é alguém com quem podemos nos degladiar e a quem devemos prestar contas; é alguém que podemos escolher ignorar, amar ou repudiar; é o personagem, em suma, que guarda o tremendo e inconcebível mistério de não ser nós mesmos.

Em muitos sentidos, portanto, o relacionamento do homem com Deus (o Outro por excelência) é nessa visão estabelecido e mantido pelo nosso modo relacionamento com os outros (de quem Deus é emblema). Veja-se, por exemplo, mandamentos como “não matarás” e as leis da Bíblia Hebraica projetadas para proteger os estrangeiros.

Apenas nas religiões ocidentais, portanto, vem à tona a necessidade de salvação, desconhecida no oriente e entendida aqui como reconciliação necessária com o Outro.

Nascimento e morte da instituição: a plenitude dos tempos

O problema essencial com as religiões ocidentais, acredita Joseph Campbell, é que nelas o modo encontrado para estabelecer-se um relacionamento com Deus é mediado fatalmente por uma instituição.O sujeito não tem como relacionar-se com Deus diretamente; alguma instituição ou contrato social (quer seja a sinagoga, a igreja, a mesquita, os mandamentos, o confessionário ou a oração voltada para Meca) age como intermediário, interpondo-se incessamente entre o homem e Deus.

Essa distância adicional (que naturalmente inexiste nas religiões orientais) gera o que Campbell chama de “dissociação mítica”, em que o sujeito acaba sentindo-se ainda mais dissociado da experiência do Deus transcendental do que estaria sem a instituição que existe oficialmente para ligá-lo a ele.

Todos os profetas e messias tomaram sobre si a sobrehumana tarefa de resolver essa dissociação, mas nenhum como Jesus – que no momento que o Apóstolo chama de “a plenitude dos tempos” pisou a terra fazendo três coisas: primeiro, deixou muito claro que o tempo de relacionar-se com Deus através de instituições, se é que existira, tinha chegado a um sonoro fim (“Podes crer-me que a hora vem quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. A hora vem, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade”). Assim entenderam-no, como demolindo a religião institucional, todos os escritores do Novo Testamento, do que dão testemunho a decisão do concílio de Jerusalém (registrada no livro de Atos), a longa explanação que é o livro de Hebreus e todas as fúrias de Paulo.

O modo de relacionar-se com Deus inaugurado por Jesus é, subversivamente, intermediado não por uma instituição mas por uma pessoa – e essa é a segunda desconstrução que ele vem fazer. Jesus, homem, veste deliberadamente a máscara do Outro e a máscara de Deus; como resultado, ele convida a que nos relacionemos com Deusexclusivamente pelo modo como nos relacionamos com o outro, com o semelhante, com o próximo – isto é, com ele mesmo: “o reino de Deus está próximo”.

Para Jesus, tudo que existe é você e Deus; os outros são máscaras temporárias da divindade: “sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”. Para as religiões orientais, todos somos Deus; para o Filho do Homem, Deus são os outros.

Finalmente, Jesus fornece uma inusitada ponte com o pensamento oriental, em que não nega a sua identidade com Deus (“eu e o Pai somos um”) e convida-nos incessantemente a nos tornarmos como ele “filhos de Deus” – hebraísmo que pode significar, entre outras coisas, “discípulos de Deus”, “semelhantes a Deus”, “imitadores dignos de Deus”. Na boca de Jesus a injunção de Deus na Bíblia hebraica, “sejam santos como eu sou santo”, ganha uma dimensão literal. Jesus realmente quer que sejamos como Deus, e no que Deus tem de mais peculiar: “Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos”. Ser Deus, sustenta essa visão, define-se não por ninharias como onipotência, mas pelo modo cavalheiresco como Deus relaciona-se com os outros. Porque “Deus é amor”, como está dito em outro lugar, e com ele devemos também – tremenda ousadia, do ponto de vista ocidental – ser um.

Naturalmente que Jesus não foi ouvido em nenhum dos sentidos acima; tanto o cristianismo quanto o islamismo, que vieram depois, não abriram mão da armadilha fácil da instituição e recusaram-se a definir a identidade e a intimidade com Deus pelo tratamento generoso com o próximo.

A plenitude dos tempos, que é também a ponte entre o pensamento religioso ocidental e oriental, permanece longe de ser atravessada. O reino de Deus continua próximo.


segunda-feira, 16 de abril de 2012

...

Fonte: G1

Uma fotografia tirada por Massoud Hossaini de uma menina afegã de pé em meio a uma pilha de corpos capturou a imagem da devastação deixada imediatamente após um ataque suicida contra um santuário xiita em Cabul, no Afeganistão, na semana passada.

O fotógrafo da AFP, de 30 anos de idade, estava a alguns metros de distância quando a bomba explodiu na última terça-feira (6), deixando ao menos 70 mortos. A imagem da menina Tarana, de 12 anos, gritando em meio aos corpos ofereceu uma visão clara da devastação, e foi capa dos jornais americanos "The New York Times", "The Washington Post" e "The Wall Street Journal".

Tarana Akbari perdeu sete familiares no atentado, incluindo um irmão de 7 anos (Foto: Shah Marai/AFP)Tarana Akbari perdeu sete familiares no atentado,
incluindo um irmão de 7 anos (Foto: Shah Marai/AFP)

Hossaini descreveu o que aconteceu e o que significa ser um fotógrafo afegão trabalhando em seu país destruído pela guerra. Lei o relato abaixo.

"Eu estava checando a minha câmera quando de repente houve uma explosão enorme. Por um momento não tive consciência de nada, só senti a onda da explosão e a dor em meu corpo. Joguei-me no chão.

Vi um monte de gente correndo no sentido oposto à fumaça. Sentei-me e vi que minha mão estava sangrando, mas não sentia dor.

É meu trabalho saber o que está acontecendo, então corri na direção oposta de toda a gente.

Quando a fumaça baixou, vi que eu estava de pé no meio de um círculo de cadáveres, amontoados, um em cima do outro. Eu estava exatamente no lugar em que o suicida esteve.

Fiquei em estado choque. Não sabia o que fazer. Então comecei a clicar. Sabia que estava chorando. Foi muito estranho chorar, nunca tinha reagido daquela forma, antes.

Quando a fumaça baixou, vi que eu estava de pé no meio de um círculo de cadáveres, amontoados, um em cima do outro. Eu estava exatamente no lugar em que o suicida esteve."
Massoud Hossaini, fotógrafo

Não ajudei ninguém, porque não pude, estava realmente em choque. Sabia que precisava cobrir aquele horror, registrar tudo, toda a dor, as pessoas correndo, chorando, batendo no peito e gritando: 'morte à Al-Qaeda, morte ao Talibã!'.

Virei-me para a direita e vi a menina. Quando Tarana se deu conta do que tinha acontecido a seu irmão, primos, tios, mãe, avó, todas as pessoas ao redor dela, começou a gritar.

Nas minhas fotos, ela estava apenas gritando. Essa reação de choque era tudo o que eu queria captar.

(Nesse momento, chegou um grupo de jovens que começou a atacar os jornalistas no local do atentado.)

Eles me tiraram do local, mas de alguma forma eu consegui voltar e só me lembro quando as pessoas estavam carregando os corpos e eu tentei capturar aquele momento.

Eu queria apenas refletir a dor real de todos ali, para qualquer pessoa que visse minhas fotos. Não importava se afegãos, americanos, muçulmanos, cristãos, ou outros quaisquer. Só queria que soubessem o que meu povo estava sentindo."

Senti 100% tudo. Estive no local antes, durante e depois [do atentado], e fiquei ferido. Foi uma experiência importante.

Na primeira e segunda noite, tive dificuldade para dormir. Sempre que fechava os olhos, lembrava da cena, me perguntando o que mais eu poderia ter feito por aquelas pessoas, por que não ajudei ninguém?

No terceiro dia, todas essas emoções na minha cabeça acabaram porque eu descobri que a foto tinha sido publicada em todo lugar. Vi que tinha feito uma grande cobertura que tinha tido efeito importante. Graças a Deus eu estava lá e consegui tirar uma foto e enviá-la o mais rápido que consegui."

Imagem forte (Foto: imagem forte)
A menina, de 12 anos, grita em meio aos corpos de vítimas do ataque (Foto: Massoud Hossaini/AFP)


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