sexta-feira, 18 de maio de 2012

Fé e transitoriedade

A vida humana é transitória e precária. Nela, nada é definitivo. As coisas estão sempre mudando, se reinventando, nascendo e morrendo. Nada que vive é permanente. Todos os aspectos da cultura humana – empreendimento que tenta dar sentido ao mundo – estão destinados à revisão e reformulação. Nenhum paradigma dura para sempre.

 

Esse caráter da vida e do mundo humanos o atinge em todas as suas dimensões. Tudo nasce e morre, e nasce e morre. Assim sendo, penso que a fé também precisa morrer, para poder nascer de novo, ou ressuscitar. Uma fé que não morre não abre espaço para geração de vida nova.

 

Me parece que a ressurreição de Jesus aponta exatamente para essa realidade: tudo na vida passa, toda na vida morre, exatamente para poder renascer, ressuscitar. Portanto, uma fé que não morre é anti-vida, pois nada na vida é perpétuo.

 

A fé precisa morrer, para poder ressuscitar. Uma fé que não morre deixa de ser fé e passa a ser convicção: prisão dos tolos que pretendem perpetuar a verdade transitória de cada geração. Uma fé que não morre vira certeza, e toda certeza sufoca a fé - pois a certeza prescinde de fé – até que ela morra sem ar. E esse tipo de morte não serve, pois a certeza não tem espaço para a geração de nova vida, portanto, de ressurreição. A ressurreição precisa de fé, porque se depender da certeza, se torna uma impossibilidade.

 

Com isso não pretendo propor uma fé líquida, sem solidez. Pelo contrário, a única fé sólida é a que sabe morrer para ressuscitar. É a certeza liquidez, pois o perpétuo simplesmente não existe, pelo menos não na vida e mundo humanos que conhecemos.

 

Talvez a morte e ressurreição de Jesus aponte para isso. É preciso desse movimento de vida, morte e ressurreição para dar sentido à fé, para conseguir conectá-la, de fato, com a vida. Afinal, tudo é transitório. Qualquer fé que pretenda se estender pela história toda, pessoal ou coletiva, perdeu conexão com a precariedade que  a cerca.

 

Não nego, a morte é dolorida e desestabilizadora. Ela coloca todo o nosso mundo de sentidos em desordem. Foi assim com os discípulos de Jesus. Quando o Mestre morreu tudo virou pó, o chão sumiu, as certezas se esvaziaram e a fé morreu. Foram dias de puro caos.

 

Que linda lição Jesus nos deu com a sua morte: não se iludir com a ideia do “para sempre”. Na vida e mundo humanos, nada é para sempre. Jesus ensinou que, para que a vida continue, é preciso morrer. Só na morte há espaço para a ressurreição. Uma fé que vive para sempre não é fé, mas ilusão.

 

O encontro com o Jesus ressurreto ressuscitou a fé de seus discípulos, que recém nascida, se preparava para o mundo novo, refeito, revisado e reformulado. Só pode viver no mundo novo a fé que se renova. Só pode viver no mundo transitório a fé que sabe morrer para que a vida continue.

 

Os dias de caos vieram. A desordem se impôs. Mas é exatamente do “sem forma e vazio” que nascem as coisas, ensina a fé judaico-cristã. Sem caos, nem vida haveria. A vida só acontece nessa transição caótica de vida para a morte, e morte para a vida. Todo e qualquer paradigma está determinado à uma transição traumática de vida e morte, para que um novo floresça.

 

Claro, para lidar com essa realidade, é preciso ter coragem de perder o chão por alguns dias – como aconteceu com os dois discípulos no caminho de Emaús. Muitos não tem, e preferem se iludir com a perpetuação de uma verdade e fé que já não tem mais nenhuma conexão com a vida e mundo humanos, mas que pelo menos continua a fornecer um chão.

 

Mas alguns tem coragem. Alguns permitem que a fé morra, na esperança da ressurreição para uma vida nova. Essa é a única atitude para quem quer uma fé genuinamente ligada com a vida. Só uma fé transitória e precária pode se conectar com uma vida e um mundo transitórios e precários.

 

Quando a fé sabe morrer, ela aprende a ressuscitar com o Cristo.

 

Lucas Lujan (@lucaslujan)

Pressão alta, na verdade, é sobreviver com pouco

Sakamoto

A Organização Mundial da Saúde divulgou, nesta quarta (16), que um em cada três adultos sofre de hipertensão – responsável por metade das mortes por derrame e problemas cardíacos no mundo. O estudo mostra que os diagnósticos e os tratamentos baratos desses problemas reduziram a sua incidência nos países desenvolvidos. Segundo o UOL Notícias, a preocupação da OMS é com países pobres, como na África, onde não são aplicadas medidas preventivas e as pessoas não sabem que carregam a doença.

Faço parte daquela parcela da população dependente de remédios para ter uma vida normal. No meu caso, hipertensão e coração, como já expliquei anteriormente. Ou seja, tô no terço do mundo em questão. Só que, infelizmente, para quem não gosta deste blog, não tenho com o que me preocupar – pelo menos no curto prazo. E, no longo, todos estaremos mortos.

Retomo o que já disse aqui. Um amigo que sofre de outro mal crônico matutou que talvez sejamos exemplos vivos de que a humanidade conseguiu dar um nó na seleção natural. Se deixassem a natureza seguir seu curso, seres malfeitos como eu e ele estariam naturalmente fadados a ser peça empalhada de museu: “Mãe, olha lá, isso era um cardíaco, não?”. Bateríamos as botas antes de atender ao divino chamado de crescer e multiplicar – ou durante o cumprimento desse chamado. Hoje, não mais. Esqueça o blá-blá-blá de que só os fortes sobrevivem: os remendados, como nós, é que herdarão a Terra. Sua vantagem competitiva? Ter sempre à mão uma boa despensa com medicamentos.

Digo parcela da população porque sou um daqueles que, felizmente, pode comprar remédios de ponta, que funcionam e têm poucos efeitos colaterais. Sucesso garantido graças a exigentes testes realizados à exaustão pelas maiores indústrias farmacêuticas do mundo em milhares de “voluntários” em regiões pobres do mundo. Muitos morrem no meio do caminho, mas o que é a vida de um pobre africano diante da saúde de nós da classe média – e das possibilidades de lucro das grandes corporações, não é mesmo?

E, como já disse, quando uma pessoa que tem acesso a recursos privados de saúde, como eu ou o doutor Drauzio (que pegou febre amarela e narrou a experiência no belo livro “O Médico Doente”), fica ruim, há chance maior de cura do que alguém que depende de si mesmo, do poder público, de suas filas e “portas duplas“.

Enfim, parte da população vive no século 21 da medicina, enquanto outros ainda engatinham pela Idade Média das filas em hospitais, dos remédios inacessíveis, da falta de saneamento básico e da inexistência de ações preventivas. Nada de novo.

Na prática, quem consegue jogar xadrez com a Dona Morte e enganá-la por um tempo são os mais ricos, que possuem os meios para tanto. Os mais pobres, por mais que tenham força de vontade e queiram continuar vivendo, não necessariamente conseguem a façanha. Vão apenas sobrevivendo, apesar de tudo e de todos, ajudando com seu trabalho e, algumas vezes, como cobaias, os que ganharam na loteria da vida a terem uma existência mais feliz.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Simplesmente uma nova vida

Fonte: Paulo Brabo - A Bacia das Almas

Se alguém afirmar que depois do recebimento da graça da justificação a culpa é de tal forma expiada e o débito da punição eterna de tal forma perdoado em favor de cada pecador arrependido que não resta qualquer débito de punição temporal para ser ressarcido, quer neste mundo quer no Purgatório, antes que sejam abertos os portões do Céu, que seja anátema.

Cânone XXX, Sessão VI
Concílio de Trento, 13 de janeiro de 1547

Se alguém afirmar que Deus sempre perdoa o castigo por completo em conjunto com a culpa, e que o ressarcimento oferecido pelos penitentes nada mais é do que a fé pelas quais eles entendem que Cristo efetua ressarcimento em favor deles, que seja anátema.

Se alguém afirmar que o ressarcimento dos pecados, no que diz respeito ao seu castigo temporal, não é de modo algum efetuado a Deus pelos méritos de Cristo pelas punições infligidas sobre ele e pacientemente suportadas, ou por aquelas impostas pelo sacerdote, ou até mesmo por aquelas assumidas voluntariamente, como através de jejuns, orações, esmolas ou outras obras de piedade, e que portanto a melhor penitência é simplesmente uma nova vida, que seja anátema.

Se alguém afirmar que os ressarcimentos pelos quais os penitentes oferecem reparação pelos seus pecados através de Cristo não são adoração a Deus mas tradições de homens, que obscurecem a doutrina da graça e a verdadeira adoração de Deus e a própria beneficência da morte de Cristo, que seja anátema.

Itens 12, 13 e 14 dos Cânones referentes à penitência.
Sessão XIV do Concílio de Trento, 25 de novembro de 1551



quarta-feira, 16 de maio de 2012

Deus, liberdade e suicídio


Ricardo Gondim

Ficou famosa a frase de Albert Camus sobre o suicídio: “O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia.” O existencialista francês não contemplou, com certeza, a questão pelo ângulo que vou abordar. Pego, entretanto, a afirmação dele para mostrar que a inciativa de acabar com a vida radicaliza a ideia de liberdade.

O suicida desafia as questões fundamentais do livre arbítrio. A liberdade de dizer sim ou não à própria existência contrapõe qualquer conceito de soberania divina. Até onde Deus controla o dedo que puxa o gatilho ou a mão que enlaça o pescoço? O suicida cumpre algum propósito preconcebido antes de seu nascimento?  Insisto em perguntar (sem cinismo): “Quem se mata interrompe por conta própria os planos divinos ou cumpre o papel que lhe foi designado antes da fundação do universo?”.

Para melhor entender o embaraço, imaginemos um debate sobre os limites da liberdade humana. O auditório está lotado. De um lado fica o grupo que defende teses deterministas: “cultura, genética e forças econômicas se somam a infinitos fatores circunstanciais, e ninguém é livre”. À esquerda, existencialistas meneiam a cabeça. Com chavões sartreanos, repetem: “a existência precede a essência, e a existência acontece no imperativo de ser livre”. No centro, teólogos agostinianos, dedo em riste, deixam claro: “a humanidade só conhece a liberdade de pecar”. Nas últimas cadeiras, niilistas gritam: “a vida não tem sentido algum e a própria necessidade de dar sentido à existência não passa de desespero em face da morte”. De repente, no meio da algazarra, um jovem se levanta. Ele carrega um revólver. Enfia o cano na boca, e antes que alguém possa evitar, puxa o gatilho.

No exato instante em que o rapaz escolhe acabar com a própria vida, os debatedores, perplexos, se entreolham. Não há o que dizer.

O susto deixa várias perguntas sem resposta. A brutalidade do gesto estava “escrita e determinada” por quais fatores? Deus? Ele tinha o código genético de matar-se? Em vidas passadas, selou aquela hora? Ou Deus o predestinou para tal insanidade? Alguma mão cobria a que executou o gesto? Quem ajudou ou, pior, empurrou o suicida para o abismo? É possível entender as  forças sociais, genéticas ou instintivas que levam um rapaz a um ato tresloucado?

Por mais de um motivo, Camus acertou. O suicídio é, sim, um nó górdio tanto da teologia como da filosofia. No suicídio reside o mais radical e completo exemplo do livre arbítrio. A não interferência divina nas escolhas individuais ficam claras quando alguém se mata. Repetindo Sartre, o findar-se com as próprias mãos mostra que a humanidade “está condenada à liberdade”.

Aristóteles afirmou que mulheres e homens se diferenciam dos animais só por serem racionais. Descartes tentou ir além: humanos são mais excelentes por terem desenvolvido sentimentos. Rousseau, entretanto, procurou demonstrar que liberdade é o fator determinante para se entender a humanidade

Para o iluminista francês, somos livres porque dispomos da capacidade de aperfeiçoar-nos – ou de destruir-nos. Só os humanos conseguem libertar-se de instintos naturais quando agem. Um cachorro, que carinhosamente lambe a mão do dono, não é movido por virtude. Ele age sem noção. Desconhece que pode morder ao invés de lamber. Mas o torturador arranca as unhas do preso e o marido espanca a companheira por maldade; isto é, existia a possibilidade de não fazerem aquilo. Se em qualquer ação forçada, o crime se torna inimputável, o pitbull que destroça a criança não pode ser levado a qualquer tribunal e o pedófilo, sim.

O conceito de liberdade implica em ações não coagidas – ou manipuladas. Um ato só é virtuoso ou viciado se existir a possibilidade de eleger o oposto. É possível afirmar: liberdade é vocação. Deus decidiu criar o mundo para a liberdade. Seu intento único é amar; e liberdade é atributo do amor. Deus não criou por carência. Ele escolheu rodear-se de pessoas que pensam, sentem e decidem não porque necessitava dar satisfação a outra divindade ou para cumprir alguma demanda misteriosa. Deus criou porque sua natureza essencial é amar.

A Bíblia expressa com clareza: Deus é amor. Quem ama busca relacionar-se. E relacionamento significa valorizar o outro. Deus estima tanto que se expõe e se vulnerabiliza. Caso nunca tivesse criado, não lidaria com pessoas imperfeitas. E jamais experimentaria dor e frustração. Em seu apreço, a liberdade humana passa a ser o limite que Deus impõe a si mesmo.

Tal fragilidade pode ser bem compreendida nas metáforas do profeta Oséias e do Filho Pródigo. Nos dois, os amantes se veem em situação embaraçosa. O comportamento tanto da mulher como do filho causam dor; escapam ao controle do marido e do pai. Na parábola, o filho sai de casa. O pai não reage. A porta precisa ficar aberta. Não lhe interessa manter o filho constrangido. Resta ao velho esperar. O profeta se vê na desdita de amar uma leviana, que se prostitui com qualquer um. Sobra perdoar; e aguardar. Quem sabe ela voltará?

Comparando Deus a um imperador, temos uma leve insinuação da relação amor, liberdade. Certo rei dispõe de várias mulheres no harém. Ele, porém, se apaixona por Sulamita. Caso ordene, ela será conduzida à câmara real como objeto de prazer. Mas o monarca não quer desse jeito. Ele a vê em outro patamar. Para isso, precisa conquistar o seu coração. Mais complicado: ele também quer ser dela. Na busca do amor, por mais poderoso que seja, o imperador ficou vulnerável, indefeso.

Deus deseja cativar. Ele anseia por filhos, por amigos. E também quer ser nosso. Os amantes não se forçam.  Impor-se e amar não combinam.

Deus é frágil? No amor, sim. Mas afirmar isso não o enfraquece, apenas descreve o poder do amor. O sofrimento de Deus não diminui a sua grandeza, apenas distingue o Aba de Jesus dos ídolos gregos. O sentimentos divinos ajudam a entender: o poder mais maravilhoso do universo não usa da coerção, ele é a plenitude dos afetos.

Jesus encarnou Deus e vimos as suas lágrimas. No Galileu, Deus se revelou empático. Por causa do Nazareno, ficou impossível conceber que a divindade tudo ordena, tudo dispõe e tudo orquestra. Não existe um deus que toca projetos sem levar em consideração as pessoas, que ele jura amar. Para promover a sua glória, Deus não tece sorrateiramente os fios da história. Não há subterfúgio em seu caráter.

As carnificinas de Aushwitz, Ruanda e Iraque não foram planejadas em algum tempo remoto. Deus não guia a bala perdida que mutila a criança na favela. A lógica que tenta transformar Deus em títere, que às vezes deixa os eventos correrem frouxos, é cruel. Se, para capitanear a história Deus fecha os olhos (vontade permissiva), ele é maquiavélico. Se orquestra horrores como etapas necessárias para cumprir uma ”vontade soberana”, ele é monstruoso.  Um deus cruel, maquiavélico e monstruoso não merece ser adorado.

Começo, meio e fim da história não estão prontos. Se Deus se sente feliz em gerenciar cada nano evento e se preordenou, em sua providência, todos os fatos, a humanidade vive uma farsa. E se tudo está pronto: busca de justiça, indignação contra o mal e solidariedade não passam de iniciativas fúteis.

Prefiro aceitar que o mal nunca fez parte de qualquer projeto. O Deus da Bíblia sofre com a morte de inocentes e se indigna com a injustiça que condena bilhões à miséria. Ele ainda conclama homens e mulheres de boa vontade a serem pacificadores.

Não é certo confundir Jesus de Nazaré com o deus frio e distante dos gregos. Determinismo, antônimo de liberdade, anula o amor. Deus não planejou, determinou ou ajudou o rapaz a dar fim à própria vida. Vale bater na mesma tecla: Deus é amor.

“… e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens”. [1Coríntios 1.25].

Soli Deo Gloria

terça-feira, 15 de maio de 2012

Deuses e homens


Fonte: Paulo Brabo - A Bacia das Almas

Para quem vive a cristandade do nosso lado do planeta a salvação é entendida, fundamentalmente, em termos jurídicos. A partir de uma leitura pouco imparcial das cartas do Apóstolo, nossa tradição acabou concluindo que a salvação é uma mudança de status legal, um indulto emitido pelo juiz em favor de quem concorda em dar crédito ao caráter remissório do sacrifício do advogado.

Não é assim na metade oriental da cristandade, a igreja chamada de Ortodoxa e que gerou gente notável como Dostoiévski e Tolstói. Nossa igreja e a ortodoxa são gêmeas separadas não muito depois do nascimento, mas que desde a cisão não conseguem entender direito as idéias e o comportamento uma da outra. Por exemplo, ambas concordam que o homem carece de uma salvação que só Jesus pode dar — mas discordam sobre de que Jesus salva o homem, e para quê.

Para os cristãos ortodoxos, a essência da salvação não está na justificação, mas na deificação (grego theosis) — transformação de seres humanos em deuses. Nos documentos da igreja primitiva a deificação não merece menos destaque do que a justificação, mas a theosis como conceito teológico não comparece no pensamento cristão ocidental há mais de mil anos.

O evangelho diz que a todos que acolheram sua encarnação Deus “deu o poder de se tornarem filhos de Deus”. Tradicionalmente esse foi entendido como sendo o poder de nos tornarmos participantes da natureza divina. Essa é a lógica da deificação, resumida numa única frase de Irineu: “Se o Verbo tornou-se o homem foi para que homens se tornassem deuses”.

Os ortodoxos e seus antecessores deixam claro, no entanto, que o milagre da deificação não está em tornar o cristão um deus independente e digno, ele mesmo, de adoração. Agostinho raciocina que, “se somos feitos filhos de Deus, somos da mesma forma feitos deuses”, mas esclarece: “Deus quer fazer de você um deus; não por natureza ou nascimento, mas por graça e por adoção”. Atanásio também opina que “somos como Deus por imitação, não por natureza”.

A idéia está em imitar Deus em sua revelação máxima, a pessoa de Jesus. Aqui está o mistério: a deificação diz respeito muito mais a aprendermos a ser gente do que a ser deuses.

“DEUS E HUMANIDADE TORNARAM-SE UMA ÚNICA RAÇA.”

João Crisóstomo (349-407), pregador de Antioquia que ajudou a cristalizar o que viria a ser o pensamento dos cristãos ortodoxos sobre a deificação, ensinava que o mistério da redenção está indelevelmente associado ao mistério da encarnação. Isto é, a salvação diz pelo menos tanto respeito à vida de Cristo quanto à sua morte. A encarnação, para Crisóstomo, não só revelara Deus para a humanidade: revelara também a verdadeira humanidade para a humanidade. Imitar a legitimidade da vida terrena de Jesus é infundir-se do sopro vital de Deus, o regenerador “espírito de Cristo” — em letras tanto maiúsculas quanto minúsculas. O fim da deificação (e, portanto, da salvação) é restaurar no homem a imagem da divindade impressa nele por Deus na criação, imagem que Jesus estampou integralmente. Deus quer que sejamos deuses para que aprendamos finalmente a ser homens.

No pensamento ortodoxo a salvação instila uma mudança real na natureza humana; não se trata — como normalmente cremos aqui no Ocidente — de uma mudança relativa e temporária, a ser melhor implantada em momento oportuno. Para nós, o homem é salvo da condenação; para os cristãos ortodoxos, é salvo da mediocridade. Para nós o homem é salvo para viver com Deus um dia; para os ortodoxos, é salvo para viver como Deus hoje.

Nas palavras de Crisóstomo:

“Visto que Cristo ascendeu ao céu sua carne tornou-se, como as primícias, o princípio dos que dormem. Ele abençoou a humanidade inteira através dessa única carne e desse único princípio. Antes, por causa do pecado, nada era mais abjeto do que o homem, enquanto agora nada é mais honrado do que ele. Através do Cristo ressurreto e ascendido o homem vence a corrupção e adquire incorrupção. Vence a morte, porque a morte foi inteiramente abolida e não aparece em lugar algum, enquanto o homem adquire imortalidade e é deificado.Deus e humanidade tornaram-se de fato uma única raça.”

A obsessão forense da igreja ocidental fez com que nos concentrássemos quase que exclusivamente nos méritos da morte de Cristo. O terrível preço dessa ênfase foi que perdemos de vista os méritos de sua vida e sua encarnação. Por deixarmos de considerar o caráter do Jesus dos evangelhos, a teologia ocidental tornou-se eminentemente racionalista, intelectual e escolástica; perdeu contato com as necessidades da vida real e a espiritualidade do homem comum. Perdeu o dom de lavar pés e ensinar lavradores. Ocupou-se em entender a revelação racionalmente e explicá-la com argumentos lógicos a uma audiência sofisticada. Passamos a crer que a salvação é questão de uma aceitação intelectual da verdade, sem relação alguma com a vida real de Deus ou com a nossa.

Perdemos no processo o dom que Jesus veio nos conceder, o de sermos gente: agentes humanizadores num mundo desumano e deuses suplentes num mundo sem Deus. Como sempre acontece, o que nos falta é voltar aos princípios mais fundamentais da humanidade de Jesus — o Deus encarnado que escolheu chamar a si mesmo de Filho do Homem.

Publicado originalmente na edição online da Revista Ultimato.



domingo, 13 de maio de 2012

Salve sua fé e volte para o mundo

Moisés Gomes, no Mera Palavra
Sem meias palavras, sem delongas, sem melindres. Nasça de novo. Chega de ascender sem maturidade, lucidez e humanidade. Chega de cumprir o seu papel que só dá orgulho aos seus interesses. Não perca mais tempo. Perder tempo cumprindo agendas que só faz animar a tua rotina é a tristeza do mundo. O mundo precisa que você chore com ele, bem como, sorria com ele. O mundo é belo. O mundo é plural. O mundo é a vida em combustão. É o milagreiro engrenado pela existência. O mundo era você antes de sua clausura em nome da fé.
Não existe apenas “aquele mundo”, como uma mente corrupta, o mundo que vos falo é a realidade de gentes, como eu e você, de gente diferente, que não pensa como a gente, mas que, assim como a gente, tem o mesmo valor, a mesma carência e a mesma deficiência. Somos todos iguais, apesar de nossa diferença, entendes? Somos interligados com um cordão umbilical, somos da mesma espécie, não somos alienígenas do outro conforme vai se estabelecendo os tipos de crença e descrença. Salve sua fé do exclusivismo. Ninguém encontrou o caminho certo, todos foram encontrados por um único caminho. Vale caminhar cada um conforme a sua consciência, velando-nos apenas, por abandonar as consciências vis para o bem da comum-unidade. A sua é nociva? Com esta pretensão tão anti-mundana e tão cristã?
Não somos incumbidos de manipular o próximo, nem através de lavagem cerebral, nem através de sedução barata. Nem de maneiras sofisticadas, nem de maneiras incomuns. Não somos incumbidos porque não temos este direito e porque somos iguais àqueles que pretendemos manipular. Se houver manipulação, há-se apenas para tirar proveito. Esta é a única justificativa de querer manipular “gente do mesmo tamanho”: poder. Sua fé não pode sustentar um pretenso nepotismo divino. Repito não existe exclusividade. Somos, apenas, filhos exclusivos de nossos desejos infames e sectários.
Talvez seja o caso de olharmos menos para o além com os olhos para cima. Talvez seja o momento de olharmos para o lado e enxergamos o além dentro de todos nós. “Quem olha o sol, sempre acaba ofuscado” – é o que disse Antífolo de Siracusa, personagem criado por William Shakespeare, por volta de 1594, em sua fantástica peça, “A comédia dos erros”. Qualquer fé que aponte para cima nos tornando alienados do status quo, que posterga o bem em detrimento de agendas pífias, que macula o bem em detrimento de dogmas rígidos, que se torna inimigo do bem em detrimento da insanidade, de preceitos funestos e de compreensão minúscula, deve submeter-se a caducidade e fadada ao ostracismo.
Entenda de uma vez por toda: seus trejeitos e vícios de linguagens religiosos não servem para nada, além de dizer sobre o modo que você acredita.  Geralmente, eles apenas apontam para a sua forma doentia de vivenciar uma experiência religiosa, pois eles se tornam, para muitos, a maior expressão de fé, como se adesivar no carro, “propriedade de Jesus” ou deixar a bíblia aberta no salmo 91 em cima da estante, fosse a melhor forma de mostrar para Deus, a sua confiança, rendição e peregrinação de fé. Não. Isso está errado. Você sabe que não é assim, mas desfazer dessas superstições, para a maioria, é perder o sentido da vida e morrer nos braços da covardia, insegurança e medo, atenuados pelas crenças baratas.
É preciso um ato de coragem. De divórcio. De autoimpeachment. É preciso cortar o cordão umbilical com este cais.  Barco a deriva, velas içadas no oceano não-mapeado da vida normal  e simples, já! “Quem pode impor regras ao vento?” (Laion Monteiro) O vento inspira e é inspirado por todos. Por acaso existe quem não sinta o ar em movimento dançando com cadência e colidindo com nossas mesmices de nosso dia-a-dia? Até quem faça das abissais religiosas, o seu leito, pode sentir a dança lúbrica do vento. Assim é o espírito do Deus do Evangelho.
 Não se esforce para me provar o contrário, pois você perde o teu argumento pelo teu esforço em discordar com complexidade e “embasamento bíblico”, algo tão simples e que sempre esteve no mesmo lugar. Ponderado sempre por um cara chamado Jesus. O qual foi, intelectualmente, sofisticado no mesmo grau de perversão que temos dentro de nós, para sabotar tudo o que não queremos fazer e que sabemos que deveríamos fazer. Na real, a capacidade do Homem de se inovar e se surpreender habita na sua demonstração de emular com o seu deus, seja qual for. No fim, religião serve apenas para conceder o direito de qualquer um ser o seu próprio deus, de erguer a sua própria estátua como nos tempos dos hebreus ou para erguer um homem como o seu deus.
O Nazareno veio humanizar o Homem e o povo quer um deus e uma fé que o arrebate de sua humanidade, para cair nos braços de um deus que o torne uma raça superior, uma raça eleita e perfeita. Que bata continência a rigidez de um pensamento e que sacrifique a própria consciência nos pés de uma ideologia nepotista e unilateral. Enquanto o indivíduo se agrupar como sociedade, haverá a distorção da simplicidade e bondade. Ao mesmo tempo em que não podemos esperar nada de bom de nós, devemos ser devotos de nós mesmos em amor e préstimos. Não seremos regenerados por esta práxis horizontal, mas indivíduos sim. No calor humano da bondade de alguns, um indivíduo se cura e se humaniza. Esta é a equação.

Dica: Pavablog

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