segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Enem, uma camisa furada e um passarinho

O Enem usou um texto da Repórter Brasil (parte de uma explicação antiga sobre escravidão contemporânea), para fomentar a reflexão sobre o trabalho na construção da dignidade humana – tema da redação deste ano. Para ilustrar, publicou uma imagem também: a de um senhor de costas, de cabelos brancos, com a camisa esburacada pelo excesso de tempo e a falta de recursos, que fingia proteger suas costas de um escaldante sol amazônico.
Ainda lembro de quando bati aquela foto. Era dezembro de 2001 e eu estava fazendo uma reportagem sobre uma operação do governo federal que verificava denúncias de trabalho escravo em Eldorado dos Carajás, Sul do Pará. O nome não é estranho porque esse é o mesmo município onde cinco anos antes ocorrera o massacre de 19 trabalhadores rurais sem-terra em confronto com a polícia militar. Garimpeiro, passava uma parte do ano remexendo a terra e outra roçando-a, para limpar o pasto do patrão – desenvolvendo o Estado na pata do boi, como gostam de dizer por lá. Assim como ele, havia vários na região. Cada um com a mesma história.
“A água parecia suco de abacaxi, de tão suja, grossa e cheia de bichos.” / “Se não tivesse me defendido com a mão, o golpe [de facão, do capataz da fazenda] tinha pegado no pescoço” / “Todo mundo viu, mas não pôde fazer nada. Macaco sem rabo não pula de um galho para outro.” / “Em Serra Pelada é melhor [do que ma fazenda] porque a gente tem nosso barraquinho.” / “Com terra para plantar não teria ido embora. Além disso, pessoa bem estudada não precisa sair, arruma emprego. Os outros têm de ir para o machado mesmo”. E depois dizem que dezembro é mês de festa.
De lá para cá, a legislação foi alterada e o conceito sofreu mudanças. O cerceamento de liberdade não precisa mais estar presente para ser configurada uma situação análoga à de escravo. Há casos em que o trabalhador está submetido a condições tão degradantes de serviço ou é levado aos limites físicos de sua vida que, alijado de sua dignidade, acaba transformado em coisa, mero instrumento descartável. Nesse momento, mesmo que tenha liberdade de sair e possa receber alguma remuneração, isso acaba não fazendo diferença. Muita gente reclama, diz que é injusto com o empregador, que condições de trabalho obscenas e desumanas são coisa normal. Querem ver correntes prendendo mãos ou similares para ter o crime atestado. Mal sabem eles que as amarras que não existem são aquelas que mais apertam.
Toda essa discussão, na verdade, é uma grande confusão que não passava pela lógica simples e direta do senhor de camisa rasgada e dos seus amigos que ganharam a liberdade por aqueles dias. Um dos resgatados, Raimundo Nonato, após nove meses sem receber, me mostrou uma gaiola de madeira vazia, pendurada em uma árvore ao lado do apertado alojamento na fazenda. Contou que um rapaz havia capturado um passarinho na roça.
- Um galo-de-campina. Mas ele não cantava. Quando está solto, ele canta. Mas passarinho preso não canta, não – acrescentou Joel Mourão Costa, três meses sem salário.
- Se está preso, não tem liberdade. Todos têm de viver livres – retrucou, na hora, Nonato.
E, depois de uma rápida deliberação entre os trabalhadores, abriram a gaiola e o passarinho voou para longe, bem longe. 

O Selo da Humanidade

Para Paulo, isso implicava na renúncia de palavras elevadas de sabedoria e de qualquer exibição de seu próprio poder espiritual (muito embora, no seu tempo e no seu contexto, o uso desses recursos poderia ter assegurado seu conceito e impacto como verdadeiro homem de Deus). Para Paulo, a palavra de Deus é a palavra que ele só é capaz de proferir na realidade de sua própria humanidade [...] Da mesma forma, ao discutir a fala durante a adoração, ele instrui sua congregação a não entregar-se à sua própria plena possessão do Espírito, mas a falar de modo compreensível e razoável, A humanidade tornou-se o sinal e o selo da divindade da palavra.a fim de que o incrédulo a compreenda, seja confrontado e tome consciência de que o próprio Deus o está chamando, e possa confessar: “Deus está de fato entre nós!”
A palavra de Deus, portanto, deve ser entregue humanamente, e sua divindade deve ser proclamada e apreendida em sua humanidade. Precisamente por essa razão Paulo não se comportou como um dos milagreiros que naquele tempo enchiam o mundo, como alguém que tem à sua disposição poderes e revelações divinos. Ao contrário, entregou sua palavra e fez o seu trabalho de modo muito singelo, como servo de Cristo, como prisioneiro de Cristo simultaneamente liberto por Cristo, como mordomo dos mistérios de Deus que deseja ser julgado por Deus e pelos homens exclusivamente pela medida da sua fidelidade: pois a palavra de Deus não chega até nós senão na vestimenta dessa humanidade.
[...]
O segredo primário e intrínseco ao qual nos direciona a mensagem do Novo Testamento é de que a palavra de Deus tornou-se um com a palavra humana: que veio até nós e tornou-se compreensível numa palavra humana. Sob essa luz é necessário ponderar a fundo a mensagem do próprio Jesus nos evangelhos [...] A palavra de autoridade de Jesus soa sempre inteiramente humana: a palavra de Deus na mais simples das palavras humanas.
Quando se considera que todas as religiões, e em particular a religião judaica do tempo de Jesus, tinha antes de tudo que colocar em andamento um poderoso aparato de sacrifício e de culto, de ordenanças hierárquicas e tradições sagradas, de teologia e de aprendizado das escrituras, a fim de unir Deus e homem e ordenar o seu relacionamento mútuo, percebe-se com maravilha e assombro o quanto tudo é diferente nos evangelhos quando Jesus encontra os homens, entrega sua mensagem e realiza seus feitos. Sob sua palavra, toda a rígida estrutura social em que todos – judeus e gentios, religiosos e irreligiosos, fariseus e pecadores – têm seu lugar imutável, torna-se nula e sem efeito: cai por terra [...] Aqui não é necessário que sejam dadas cansativas instruções dogmáticas, que algum teste seja feito, que qualquer exame de fé seja conduzido, que quaisquer pressupostos sejam antes de tudo estabelecidos, a fim de que aquele que a ouve receba a mensagem. Ao mesmo tempo, nada há de promessas vazias, de intenções e de esperanças vagas para um futuro incerto. A palavra de Deus tornou-se uma com a mais simples das palavras humanas: é esse, na verdade, o mistério de toda a mensagem de Jesus. A humanidade tornou-se muito claramente o sinal e o selo da divindade da palavra.
 
Günther Bornkamm, Early Christian Experience (1957),
 

Nenhum de nós

Ninguém neste recinto, incluindo o seu pastor, acredita na fé cristã. Nenhum de nós daria a outra face. Nenhum de nós venderia tudo que tem e daria aos pobres. Nenhum de nós daria o casaco a um sujeito que tivesse tirado nosso sobretudo. Cada um de nós acumula todo o tesouro que consegue. Não praticamos a religião cristã e não temos qualquer intenção de praticá-la. Logo, não acreditamos nela. Eu portanto me desligo, e aconselho vocês a pararem de mentir e se dispersarem.
Sinclair Lewis, em Elmer Gantry (1927)

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