quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Proclamando a trindade: comunidade e sofrimento

A doutrina da trindade é um dos elementos particulares da fé cristã histórica que é rapidamente abandonada em favor de uma proclamação mais palatável de Deus. Ao invés de se proclamar um Deus triúno, a unicidade de Deus é frequentemente enfatizada, a fim de se tornar Deus mais compreensível e, portanto, mais aceitável para uma sociedade secular. A doutrina da trindade, no entanto, é exclusiva do cristianismo, e merece atenção especial. Como afirma Moltmann:

A redescoberta da doutrina da trindade começa quando a unilateralidade de um pensamento pragmático é superada, e quando a prática é libertada do ativismo, a fim de poder tornar-se uma prática livre do evangelho.

Quando o pragmatismo equivocado (e essencialmente ineficaz) dos que tentam traduzir a natureza de Deus para a linguagem de Babel é superado, dois elementos essenciais do cristianismo vêm para o primeiro plano.

O primeiro é o elemento da comunidade. O deus triúno existe como comunidade. O Pai, o Filho e o Espírito Santo vivem num relacionamento de igualdade, coabitação mútua e amor altruísta. Quando Deus é entendido como três-em-um, a igreja deve também ser definida como uma comunidade de igualdade e amor desinteressado. Enquanto o monoteísmo mantem o poder de Deus absoluto, a teologia torna o amor de Deus absoluto. Portanto a igreja que proclama a trindade será uma igreja que critica as estruturas de poder fundamentadas na unicidade de Deus. A trindade confronta o monoteísmo político (um Deus, e portanto um imperador) e o monoteísmo clerical (um Deus, e portando um papa, um bispo ou pastor). A mensagem da trindade se tornará compreensível à sociedade quando a igreja existir como uma comunidade de iguais que amam uns aos outros altruisticamente.

O segundo elemento revelado pela trindade é o do sofrimento. É a doutrina da trindade que nos ajuda a começar a entender o que aconteceu na cruz. O reconhecimento da divindade de Jesus levou os primeiros cristãos não apenas a reexaminarem a natureza de Deus, mas a reavaliarem também a relação entre Deus e o sofrimento. Pois, como afirma Moltmann: “Entender Deus no Jesus crucificado, abandonado por Deus, exige uma ‘revolução no conceito de Deus’”. A doutrina da trindade revela um Deus que sofre com a sua criação e pela sua criação. Deus é revelado como um Deus de pathos/paixão, e não de apatheia/apatia.

Portanto a igreja que está em Cristo participa da trindade. Isso quer dizer que a igreja proclama a trindade movendo-se em direção a um sofrimento ativo e experimentando o sofrimento de um amor apaixonado. É por isso que a cruz torna-se o teste de tudo que merece receber o nome de cristão. A igreja revela o Deus do amor sofredor posicionando-se em solidariedade com aqueles que são crucificados pela sociedade contemporânea. O mundo só chega a entender a natureza do Deus cristão quando o povo de Deus abraça a dor, penetra a morte e conhece a dor dos marginalizados. O mundo só chega a reconhecer o Deus crucificado através de uma igreja que fala (e geme) de sua posição nas margens.

Daniel Oudshoorn
Poser or Prophet

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Que mundo desigual

Marcus Eduardo de Oliveira *

"O verdadeiro socorro a prestar aos miseráveis é a abolição da miséria".
Victor Hugo, romancista francês
O noticiário sobre desigualdades socioeconômicas, em escala mundial, não deixa espaço para dúvida: o mundo está cada vez mais desigual e menos fraternal.

De fato, parece que o mundo está de cabeça para baixo - The world turned upside down, como diz a letra do Coldplay, e como também foi intitulado o último relatório sobre desigualdades publicado pela prestigiosa The Economist, em abril último. Os números que corroboram esse triste cenário merecem reflexão: um em cada dois seres humanos vive com menos de dois dólares diários; um em cada três não têm acesso à eletricidade; um em cada cinco não têm acesso à água potável; um em cada seis é analfabeto. Um adulto em cada sete, e uma criança em cada três sofre de desnutrição. A cada cinco segundos uma criança morre de fome no mundo; embora haja terras férteis para o cultivo dos alimentos, pois, apenas como exemplo, o plantio destinado para produzir alimentos para o gado nos Estados Unidos é de 64% da quantidade de terras próprias, ao passo que a produção de frutas e alimentos ocupa apenas 2%. Na somatória, resulta que uma pessoa a cada sete padece de fome no mundo que reproduz esse paradigma norte-americano. Enquanto o consumo de alimentos cresce para uma parte da população mundial, outra parte se vê completamente alijada desse banquete: simplesmente 20% da população mundial - ou uma em cada cinco pessoas - está excluída do crescimento do consumo. Isso afeta a continuidade da vida: nada mais do que 300 milhões de pessoas no mundo têm uma expectativa de vida inferior a 60 anos, em parte pela má alimentação e por conta de patologias decorrente dessa má alimentação. Trinta e cinco por cento da população mundial não têm energia e proteínas suficientes em sua dieta. No mundo há 2 bilhões de pessoas anêmicas, incluídos 5,5 milhões que habitam os países do capitalismo avançado.


No entanto, enquanto a fome e suas seqüelas vitimam considerável parte da população, do outro lado da história a opulência dá um colorido especial a alguns "privilegiados". Note-se que apenas quatro cidadãos norte-americanos - Bill Gates, Paul Allen, Warren Buffet e Larry Ellyson - poucos anos atrás concentravam em suas mãos uma fortuna equivalente ao PIB das 42 nações mais pobres, que totalizam uma população de mais de 600 milhões de estômagos vazios e bocas esfaimadas.

A desigualdade mundial aponta que 80% da riqueza mundial está nas mãos de 15% de "privilegiados". Disso decorre o consumo suntuoso, conspícuo no linguajar dos economistas. Exemplo? O consumo anual de cigarros, apenas na Europa, gira em torno de 50 bilhões de dólares. As diversas bebidas alcoólicas, também na Europa, atingem gastos de 105 bilhões de dólares ao ano. Somente nos EUA, o gasto anual em cosméticos atinge 8 bilhões de dólares. O consumo de drogas no mundo faz girar, em cálculos "otimistas", a importância de 400 bilhões de dólares a cada ano.

De acordo com o International Institute for Strategic Studies, o dinheiro que o mundo (em especial os países ricos, com destaque ao país administrado por Barack Obama) destina aos gastos militares durante onze dias daria para alimentar e curar todas as crianças famintas e enfermas do planeta. Onze dias apenas são suficientes para o mundo conhecer a face da fraternidade. Para os agressores, os que comandam esse processo de intensa desigualdade, sobram 354 dias para o "nobre" ofício de matar.

Especialistas no assunto acreditam que 200 milhões de dólares (menos de vinte vezes o que se gasta com sorvetes ao ano apenas na Europa) ou o que as forças armadas gastam em apenas três horas de "bom trabalho" dizimando inocentes, poderiam exterminar (para usar um termo comum aos países bélicos) doenças como difteria, coqueluche, tétano, sarampo e poliomielite que, juntas, matam 4 milhões de crianças por ano.

É por essas e outras que o mundo está cada vez mais desigual, mais injusto e selvagem. Até quando resistiremos tamanha agressão contra o maior de todos os princípios: a vida?


* Economista brasileiro, especialista em Política Internacional. Articulista do site "O Economista", do Portal EcoDebate e da Agência Zwela de Notícias (Angola)

Meu jeito de teologar

Ricardo Gondim

Teologia é linguagem sobre Deus. Com teologia procuramos juntar os cordões que podem dar sentido à nossa existência. Ansiamos por achar a nós mesmos enquanto arfamos pelo Divino. Rubem Alves acertou quando disse que a teologia não pode ser malha que prende o Mistério, mas é rede onde nos deitamos. Teologia é linguagem precária. Nela peregrinos se aconchegam e encontram ânimo na busca por Deus.

Como pastor de uma comunidade pujante, que reúne quase três mil pessoas por domingo, sei que em todos os sermões, de alguma forma, faço teologia. Adolescentes irrequietos, universitários idealistas, pequenos e médios empresários, funcionários públicos e idosos sábios chegam com muitas perguntas. Diante de suas aflições, vaidade, arrogância e cinismo perdem força.

Domingo, molhei a camisa com as lágrimas de uma mãe que havia enterrado o filho que se suicidara menos de um mês antes. Meu abraço, mesmo sem palavra alguma, era uma resposta calada diante de sua dor. Ali, eu articulava teologia em silêncio. Na impotência de não ter o que dizer naquela situação, simultaneamente comum e brutal, notei que o encadeamento da lógica religiosa carece da delicadeza de um violino.

Naquele rápido momento, vi que não havia como padronizar uma resposta. A gente só percebe o vício do lugar-comum, do clichê, do jargão, quando se vê diante de alguém destroçado pela tragédia.

Nesses confrontos inesperados com a dor, aprendemos a respeitar os dramas que nos rodeiam. Ficamos diante da insuficiência da linguagem. Foi desses encontros trágicos que mudei e mudei muito. Agora, quero teologar com menos altivez.

Quero falar de Deus sem exigências messiânicas; desprovido da presunção de lídimo defensor da sã doutrina. Desejo tão somente oferecer o ombro e abrir mão de minhas muitas explicações. Se no passado confundi entusiasmo com afobação, zelo com intolerância, arrojo com precipitação, hoje tento um pisar mais simples diante de Deus e dos homens.

Quero falar de Deus com mansidão. Sem reputação a defender, desisto do fascínio do sucesso, de angariar plateias, de inebriar-me com aplausos. Quero encarnar o significado mais profundo de “estar crucificado com Cristo”. Depois de tantos anos, ainda não me vesti da mesma atitude do meu Senhor, que se esvaziou para servir.

Quero falar sobre bondade, essa rara e nobre virtude que transcende nossas ações para nos integrar ao agir de Deus. Preciso ser bondoso comigo mesmo, não deixando que falsas culpas detonem processos internos de intransigência com o próximo; ser paciente com as inadequações dos que claudicam e doar-me como São Francisco de Assis: “Ó Mestre, fazei que eu procure mais consolar que ser consolado; compreender que ser compreendido, amar que ser amado. Pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado e é morrendo que se nasce para a vida eterna”.

Quero pregar mais sobre o Deus comensal, que nos convida ao banquete como pretexto para a intimidade. Quero fomentar uma espiritualidade de cozinha e não dos academicismos gelados. Desejo aprender lealdade na camaradagem da conversa solta; e no riso farto experimentar a alegria do reino de Deus.

Quero falar sobre os benefícios do sábado, não do sábado legalista, cravado no calendário, mas daquele que diz “basta” diante dos reclames da riqueza. Quero que a existência não se resuma ao trabalho; despertar para a urgência de eternizar cada encontro. Recordo-me de ter lido um verso sucinto: “A vida é curta, e acaba...”. Não levaremos daqui outra coisa senão as nossas memórias, portanto, que elas sejam doces.

Quero falar sobre Deus, sem esquecer o chão da fábrica, o quintal da casa, o pátio do colégio, a coxia do teatro, o corredor do hospital e a encosta da favela. De nada me adiantará “falar em tese”, se não conseguir encarar os Josés, as Tânias, os Rodrigos e as Kátias, que lutam bravamente para dar sentido à vida. Vejo a necessidade crescente de conversar com pessoas cujos nomes foram escritos não apenas no Livro da Vida, mas na palma da mão de Deus. Não quero que discursos substituam a força do abraço. Os amigos de Jó tropeçaram nos cadarços porque se imaginaram aptos para oferecer consolo com juízos horrorosos.

Quero falar do céu sem desgrudar-me do mundo e mostrar que a vida abundante prometida por Jesus não merece ser empurrada para depois da morte. Repetirei as palavras de Paulo: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou”. Vou enfatizar que a verdadeira religião consiste em cuidar do órfão e da viúva. E não esquecerei: toda a lei se resume em amar a Deus e ao próximo como a mim mesmo.

Se conseguir teologar assim, com a ternura dos poetas e a paixão dos profetas, completarei a minha carreira, tendo guardado a fé.

Soli Deo Gloria
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