quinta-feira, 23 de junho de 2011

Crise terminal do capitalismo?

por Leonardo Boff

Tenho sustentado que a crise atual do capitalismo é mais que conjuntural e estrutural. É terminal. Chegou ao fim o gênio do capitalismo de sempre adapatar-se a qualquer circunstância. Estou consciente de que são poucos que representam esta tese. No entanto, duas razões me levam a esta interpretação.

A primeira é a seguinte: a crise é terminal porque todos nós, mas particularmente, o capitalismo, encostamos nos limites da Terra. Ocupamos, depredando, todo o planeta, desfazendo seu sutil equilíbrio e exaurindo excessivamente seus bens e serviços a ponto de ele não conseguir, sozinho, repor o que lhes foi sequestrado. Já nos meados do século XIX Karl Marx escreveu profeticamente que a tendência do capital ia na direção de destruir as duas fontes de sua riqueza e reprodução: a natureza e o trabalho. É o que está ocorrendo.

A natureza, efetivamente, se encontra sob grave estresse, como nunca esteve antes, pelo menos no último século, abstraindo das 15 grandes dizimações que conheceu em sua história de mais de quatro bilhões de anos. Os eventos extremos verificáveis em todas as regiões e as mudanças climáticas tendendo a um crescente aquecimento global falam em favor da tese de Marx. Como o capitalismo vai se reproduzir sem a natureza? Deu com a cara num limite intransponível.

O trabalho está sendo por ele precarizado ou prescindido. Há grande desenvolvimento sem trabalho. O aparelho produtivo informatizado e robotizado produz mais e melhor, com quase nenhum trabalho. A consequência direta é o desemprego estrutural.

Milhões nunca mais vão ingressar no mundo do trabalho, sequer no exército de reserva. O trabalho, da dependência do capital, passou à prescindência. Na Espanha, o desemprego atinge 20% no geral e 40% e entre os jovens. Em Portugual 12% no pais e 30% entre os jovens. Isso significa grave crise social, assolando neste momento a Grécia. Sacrifica-se toda uma sociedade em nome de uma economia, feita não para atender as demandas humanas mas para pagar a dívida com bancos e com o sistema financeiro. Marx tem razão: o trabalho explorado já não é mais fonte de riqueza. É a máquina.

A segunda razão está ligada à crise humanitária que o capitalismo está gerando. Antes se restringia aos paises periféricos. Hoje é global e atingiu os paises centrais. Não se pode resolver a questão econômica desmontando a sociedade. As vítimas, entrelaças por novas avenidas de comunicação, resistem, se rebelam e ameaçam a ordem vigente. Mais e mais pessoas, especialmente jovens, não estão aceitando a lógica perversa da economia política capitalista: a ditadura das finanças que via mercado submete os Estados aos seus interesses e o rentitentismo dos capitais especulativos que circulam de bolsas em bolsas, auferindo ganhos sem produzir absolutamene nada a não ser mais dinheiro para seus rentistas.

Mas foi o próprio sistema do capital que criou o veneno que o pode matar: ao exigir dos trabalhadores uma formação técnica cada vez mais aprimorada para estar à altura do crescimento acelerado e de maior competitividade, involuntariamente, criou pessoas que pensam. Estas, lentamente, vão descobrindo a perversidade do sistema que esfola as pessoas em nome da acumulação meramente material, que se mostra sem coração ao exigir mais e mais eficiência a ponto de levar os trabalhadores ao estresse profundo, ao desespero e, não raro, ao suicídio, como ocorre em vários países e também no Brasil.

As ruas de vários paises europeus e árabes, os “indignados” que enchem as praças de Espanha e da Grécia são manifestação de revolta contra o sistema político vigente a reboque do mercado e da lógica do capital. Os jovens espanhois gritam: “não é crise, é ladroagem”. Os ladrões estão refestelados em Wall Street, no FMI e no Banco Central Europeu, quer dizer, são os sumo-sacerdotes do capital globalizado e explorador.

Ao agravar-se a crise, crescerão as multidões, pelo mundo afora, que não aguentam mais as consequências da super-exploracão de suas vidas e da vida da Terra e se rebelam contra este sistema econômico que faz o que bem entende e que agora agoniza, não por envelhecimento, mas por força do veneno e das contradições que criou, castigando a Mãe Terra e penalizando a vida de seus filhos e filhas.

Leonardo Boff é autor de Proteger a Terra-cuidar da vida: como evitar o fim do mundo, Record 2010.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Enquanto aguardo a volta de Cristo



Ricardo Gondim

Estou em processo. Dinamito alguns pressupostos e, sem pressa, procuro novos alicerces para minha elaboração teológica. Identifico uma mudança - que vem acontecendo sem que eu mesmo perceba: largo a sistematização do mistério. Há alguns anos escrevi um texto em que confessava cansaço. Na verdade eu não estava fadigado. Era meu grito. Um profundo anseio por mudança. Intuitivamente, percebia que os fios que conectavam minhas várias lógicas religiosas estavam soltos e que perdia energias existenciais, espirituais e emocionais.

Li diversos autores e criei coragem de fazer algumas perguntas difíceis. Obedeci o conselho de Jesus, calculei os riscos, e resolvi tomar o caminho menos trilhado. Agora confesso: estou em transformação. Procuro fazer teologia no ritmo da poesia. Esforço-me para garimpar esperança na verdade poética. Noto quanta força a poesia tem para salvar o mundo. Já se perguntou se era possível sentir o poema “fervilhando em larvas numa terra prenhe de cadáveres”. Eu respondo que sim! Insisto na caminhada porque entendo a Bíblia como uma linda obra poética; sem pretensão de codificar o divino, as Escrituras falam nas frestas da metáfora, do mítico, da parábola, do poema.

Acredito que somente a beleza pode enfrentar a feiura. Deus ainda fala e suas palavras são como água fresca na caatinga. Passarão céus e terra, mas o recado divino continua boas notícias em um mundo esfacelado. No fiat primordial, o universo explodiu prenhe, mas de formosura. É preciso não perder o propósito da criação de fazer a humanidade aquarela, diapasão das sinfonias, chave misteriosa dos enigmas existenciais e eureca sagrada do Espírito. Temos o potencial de sermos espetaculares e não podemos deixar tanta riqueza se perder.

Sim, o mal existe. A perversidade se multiplica. Não faltam ímpios em busca de perpetuar estruturas demoníacas. Mas resistem os artistas, estivadores, lavadeiras de beira de rio, médicos, violinistas, filósofas, sacerdotes, cantores de churrascaria, psicólogas. Nem sempre prevalece a sanha dos traficantes, dos mercadores internacionais de fuzis, dos cafetões ou dos exploradores da mão de obra infantil. Pego na mão dessa gente e não desespero, sei que podemos fazer sinalizar lampejos do Amanhã tão aguardado, daquele porvir que ainda não alvoreceu.

Insisto em fazer teologia porque acredito que o caminho do perverso não prevalecerá. Os grilhões do vício não resistirão ao dobrar dos sinos do Reino final. Do alto da torre da Cidade Celestial se proclamará o triunfo da luz sobre as trevas. Juntos celebraremos o brilho do sol da justiça. A bondade é fermento, a mansidão, ácido e a integridade, aríete. Um dia, ruirá por terra o castelo da maldade.

Preservo meu fôlego. Preciso me manter dócil. Vivo em um mundo que banalizou a morte. Necessito continuar a acreditar no perfume do amor, na densidade da mansidão e na energia da solidariedade. Quando acossado pela decepção, procuro trazer à memória o soldado romano que se fez servo de um escravo, a mãe cananeia ajoelhada pela filha aflita, os dois cegos peitando a sorte e o ladrão que prenunciou o paraíso no seu derradeiro instante.

Faço teologia sem esquecer de reverenciar os sete mil profetas que permanecem de pé. Rodeado de gente que não renegou o martírio, procuro não fugir ao meu. Inspirado no meu Salvador, percebo a força embutida na fragilidade. Sei que o Cordeiro é digno de abrir o rolo da História e que, na sua volta, o acolheremos. Faço teologia e aguardo o grande dia quando terra e céu se tornarão uma só realidade.

Soli Deo Gloria.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Longe de um Jardim

Paulo Brabo

Como eu ia dizendo, tudo é irrecuperável. Tudo se perde. Talvez nem tudo seja inevitável, mas sem qualquer dúvida tudo é irreversível. Esta é a maldição deste universo, e também sua mais desconcertante fonte de beleza.

Há uma visão a respeito de Deus que poupa a divindade precisamente desse constrangimento – poupa-o da irreversibilidade que caracteriza a essência da experiência humana e da realidade. Essa é provavelmente a visão mais popular a respeito de Deus, talvez por dar a impressão que, tornando tudo no universo recuperável para Deus, está fazendo um grande favor à reputação da grandeza divina.

Segundo essa visão, Deus é onipotente no sentido em que é capaz de, em cada momento da história e até o fim, reverter qualquer injustiça, reparar qualquer erro, anular qualquer deslize, ressuscitar qualquer personagem, engendrar qualquer final feliz. Para os que abraçam essa visão, Deus pode se quiser apagar os horrores do nazismo e cancelar o embaraço das cruzadas e das inquisições. Pode apagar toda a história que nos separa da Queda ou do Caos (a mesma história que nos une a eles). Pode apagar todos os traços do constrangedor experimento que é o nosso universo e deixar a lousa imaculadamente limpa para outra tentativa. Se não o faz permanece sendo questão da inegociável autonomia divina; porém devemos entender como magnífico consolo saber ou acreditar que, caso quisesse, ele poderia.

Esse Deus fora do tempo e segurado contra terceiros é uma curiosidade filosófica e existe inteiramente à margem do testemunho apaixonado da narrativa bíblica. O Deus da Bíblia conhece plenamente e sabe lamentar pungentemente o peso do que é irreversível; ele conhece a vastidão da sepultura, a assolação das omissões, o abismo profundo das ausências, a cicatriz sem consolo das violências, o terror sagrado das traições. E em Jesus, para quem acredita nele, Deus experimenta na própria carne cada uma dessas desolações.

O Deus da Bíblia é um marido traumatizado pela deslealdade da esposa, um homem marcado pelo abandono dos amigos, um visionário ultrajado pelo fogo da traição e da incompreensão; é um ressuscitado com cicatrizes muito visíveis, um idealista que não desconhece a amargura, um leão vivo que é também um cordeiro que conheceu a morte. Se não deixa em momento algum de amar, não é por ter o conforto de poder restaurar a qualquer momento o que foi perdido, mas por saber que tudo no universo e na história que não foi redimido pelo amor é para sempre irrecuperável.

Como tudo é irrecuperável, segue-se que tudo é santo, mesmo aquilo que a experiência humana tem de mais abominável e aterrador. Santo, numa palavra, quer dizer singular. Cada momento é santo porque é singularíssimo e irrecuperável, cada injustiça é santa porque reside num momento que poderia ter sido vivido de outra forma e nunca será. Nunca mais.

Talvez seja esse o sentido e a necessidade do lago de fogo postulado pelo Apocalipse, o lago de enxofre que arde dia e noite para todo sempre, paralelamente aos esplendores do paraíso e quem sabe ajudando a iluminá-los. Os momentos abomináveis da história humana – os momentos abomináveis da minha história – são irreversíveis e a justiça ausente deles é para sempre irrecuperável. O lago de fogo existe para que sejam eternamente lamentados, isto é, eternamente celebrados, e esse incansável ranger de dentes talvez seja o mais próximo que esses momentos chegarão da redenção.

Seria ao mesmo tempo injusto e inconcebível que o Paraíso prescindisse dessa eterna dor, da qual brota a flor mais imaculada e cegante da sua beleza. As folhas da árvore da vida curam as nações, mas não mudam a história de suas enfermidades. A ressurreição injeta vida no que era inerte e estéril, mas não apaga as cicatrizes da violência e as reminiscências da morte.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Em busca da unidade perdida: Chamados para perder


Alex Carrari

A ajustagem da mensagem do evangelho em termos pragmáticos sob a suposta necessidade de atender as carências básicas das massas é, na superfície de seus variados arranjos, pura artimanha para facilitar a gatunagem da renda dedicada à casa de Deus, ou de forma mais astuta, serve ao massageamento do ego inflado de “líderes” que alavancam o sucesso pessoal à custa das viúvas pobres do templo e da gordura do altar – que vai dar em gatunagem do mesmo jeito. A grande sacada desses "líderes" para acobertar o próprio desvio e a negação da mensagem límpida do Cristo é fazer da instituição um fim em si mesmo, promovendo a igreja (instituição) ao invés do Reino.

No Reino não há oportunidade para afanar o altar, nem promover a própria imagem, sendo que, conforme indicou o Mestre, o Reino não está nem aqui nem ali, não é comida nem bebida. A igreja (instituição) é lugar provável para alguém mal intencionado, mesmo que sutilmente, montar seu palanque e tocar seu projeto de auto-promoção e assim engordar sua receita bancária e lustrar sua fachada pública de homem de sucesso, espécime a ser invejado e seguido numa sociedade de consumo.

Mas nem só de reais e dólares nutrem-se esta linhagem, a vaidade do coração dá toques peculiares à representação que esses senhores e senhoras fazem de si mesmos, ensimesmados narcisos que admiram não a face em agonia do Cristo no horto, mas seus próprios rostos plásticos refletidos na água suja do lago da soberba. Põem na boca do Cristo palavras que jamais fizeram parte de seu roteiro de discursos. Acrescentam às falas dos profetas uma escatologia que diz que a qualquer momento este mesmo Cristo arrebatará sua classe de preferidos – para obterem um ganho maior – deixando todo o resto nas mãos do iníquo, o anti-Cristo. Colocam a vida dos patriarcas e reis à serviço das expedições, cruzadas de bênçãos geradoras de lucro e mais-valia, atiçando na massa, como se isso fosse uma virtude, a cobiça e o apego cada vez mais exacerbado ao modo de vida baseado no consumo e acúmulo de bens. No lugar da fé, que significa estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente (Tillich), promovem campanhas, em essência pagãs, para provocar Deus e exigir resultados imediatos.

Neste contexto a geração de ambientes que tentam se legitimar com batalhas espirituais, demônios geográficos, castas familiares, maldições hereditárias, corredor de sal, sabonete ungido, lenço do apóstolo etc, são o cancro não cuidado que nos anos 70, 80 e 90 foram bem vistos e quistos como sinais dos tempos da derradeira conquista da nação brasileira pelo “novo Israel”, o povo evangélico. Conquista que produziu asco quando as máfias de Brasília começaram a contar com a colaboração de políticos que antes ocupavam púlpitos – que mais eram palanques – em suas colunas de calhordas, falsários, e ladrões engravatados, desviando dinheiro de ambulâncias, merendas, medicamentos e sabe mais o que. A emblemática cena exposta em horário nobre do “irmão” organizando uma roda, ao modo de uma corrente de oração, após abocanhar pacotes de dinheiro, agradecendo e pedindo bençãos divinas sobre a vida de uma raça de políticos vilões, que depois de um emocionado amém não aguenta e solta um, “que paulada hein”, é sintomática enquanto representa um modelo que não se aprende sozinho, alguém o adestrou para isso.

A anarquia litúrgica planejada em minúcias sob a desculpa de tornar a mensagem mais contemporânea – como se esta fosse inviável à mente pós-moderna devido a seu arcaísmo e linguagem pastoril– incorpora os “louvorzões” com conteúdo e forma verticalizantes e superficiais, campanhas da vitória onde poucos recebem e os outros que esperem sua vez, unção em chaves de carro, rosas oradas pelo “apóstolo”, a Segunda Unção, fotos de parentes em murais, pregação de palavra Rhema, ordenação de restituições, reconquistas territoriais etc. Tudo e mais um pouco para ganhar almas para Jesus.

Nesses espaços a fé deixou de ser entendida, passou a ser sentida. O fetiche da mercadoria tornada sagrada, regulada pelos "homens de Deus", gera demência e crise de identidade nos crentes, pois, na mercadoria todos são alienados, são sub-produtos do produto. O culto-show encanta pela beleza plástica e engoda pela “abertura” da percepção. Eis a nova estética do “sagrado”. Nada de simplicidade. Nada de gente socialmente insignificante debruçada em torno de uma mesa rústica partindo o pão. Nada de andar na companhia de excluídos pecadores. Nada de opção preferencial pelos pobres. A nova estética do “sagrado” cria uma iconografia de santos engomados, vendedores de Bílbia televisivos e cantores “estrelas de Jesus”. Em lugar da mesa compartilhada, o palco onde se revezam na “adoração” o balé e o strett dance, animando o público com uma aeróbica eclesial – afinal a gente não quer só comida, a gente quer bebida, diversão, balé. Entre andar com excluídos e optar pelos pobres fazendo-lhes justiça, ou receber as honras na casa de César fazendo-lhe a corte, a segunda opção é regra mor, é mais viável, em se pensando nos resultados em curto prazo, é rentável, afinal, “os pobres os tereis sempre convosco”, à estes as batatas podres.

Na rotinização do milagre enquanto a adoração a Mamom subverte o sentido último dos dízímos e ofertas cujo desvio banca ternos alinhados, carrões, aviões e mega templos – os ícones da benção precisam demonstrar na prática a vida de sucesso que apregoam – o culto espetáculo é a expressão litúrgica da religião que tenta se sustentar de resultados em gráficos estatísticos semanais que insinuam que a terra prometida é logo ali, está mais perto do que se imagina. Imagine.

O reconstrucionismo que trocando em miúdos é uma elitização da idéia de que a restauração da nação só se dará por meio da teocracia, fez crescer no imaginário dos evangélicos brasileiros a fantasia de que o Brasil só irá pra frente quando os crentes estiverem definitivamente no poder. Uma versão piorada da idéia norte-americana do “destino manifesto”. Enquanto isso às portas do templo a mendicância se avoluma sob atenta supervisão dos "detentores da visão", a caridade é esmola para formar mais um prosélito, a estratégia é dar com a direita para puxar com a esquerda, é não dar ponto sem nó. O conceito de justiça social é considerado absurdo, mas não por se parecer com assistencialismo sem o verdadeiro objetivo que é salvar a alma do sujeito, nem por ser uma espécie de socialismo embrionário. A questão é que, na esfera econômica pós-moderna, o outro é visto como um concorrente, a competitividade implica em individualismo, portanto a solidariedade é algo contraproducente. Então nada melhor para engodar o pobre do que pão, circo e o céu para depois da morte.

Como modo de produção o capitalismo, que viveu um “reavivamento” nos anos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher sob a chancela do neoliberalismo, tem sua versão evangélica com a teologia da prosperidade. O mito do progresso, secularmente desacreditado logo no início do século XX, ressurgiu no seio das igrejas evangélicas brasileiras sob a autenticação de uma lógica causal de fim de Feira da Barganha. A canonização do capitalismo entre os protestantes reformados - cuja absolutização da tradição pelo viés do culto ao livro os impede de se reformarem - se deve acima de tudo a teologia da predestinação, que, tranqüiliza os que estão na dúvida sobre se vão para o céu ou para o inferno tendo como sinalizador de que vão rir por último em moradas celestiais o sucesso nos negócios – sendo esta a versão mais antiga da teologia da prosperidade. Enquanto os predestinados para a salvação eterna ensaiam aqui a vida regalada que terão no além, o pobre também faz seu ensaio para a danação eterna nesta que é a ante-sala do inferno. A proposta de vida simples, de uma caminhada humilde, de serviço – em que, quem quer ser o maior deve servir o menor –, de não juntar mais do que o necessário para a subsistência – o pão do dia do Pai nosso, ter apenas um capa – foi descaradamente substituída por uma proposta de vida altiva, uma caminhada na trilha do orgulho, o gosto por ser servido pelo menor humilhado e o acúmulo de bens desnecessários por mera inclinação ao consumo.

A última instância de resistência ao capitalismo e de esperança aos menos favorecidos, a igreja, tornou-se, com a mensagem do “vem para Jesus que você vai ganhar”, um lugar que promove um apartheid social, um neodarwinismo tribal-cristão em que só sobrevivem, ou os predestinados antes da fundação do mundo ou os mais espertos no livre comércio das bênçãos disponíveis para poucos. Enquanto os ricos experimentam as bênçãos, os pobres buscam-na. Aqueles envaidecidos eleitos pela graça arbitrária, estes uns azarados com falta de fé. Enquanto àqueles é pregada a paz interior à estes ungem-se carteiras profissionais, matando dois coelhos numa só cajadada com textos adulterados e contextos mutilados.

Os radicais requisitos, humildade, senso de justiça e vida simples - critérios para seguir nas pisadas do Nazareno - são, na mentalidade evangélica contemporânea, um embaraçoso contra-senso à mensagem propalada pelos pregadores midiáticos, pelos gestores de ministérios de sucesso, e pelas estrelas gospel, que com desfaçatez declaram que a honra e a glória são para o Senhor.

O Cristo deixou as claras, “quem vier vai perder”. Porém, os símbolos de sucesso da palavra mercadejada retrucam com a cara lavada, “quem vier vai ganhar”. O embuste é de um varejo inesgotável. De tomar posse da vitória a reivindicar a promessa, de receber chuva de bênçãos a pegar de volta o que é meu, de exigir de Deus o milagre a rejeitar os efeitos de uma existência contingencial apelando para o mágico. Tem oferta para todas as categorias de ganância e para todos os fundos de bolso. Aberta no que promete, seletiva no que distribui.

No deserto Jesus resistiu às três tentações, provisão, livramento e poder. Agora as três tentações, pecados que jaz à porta, foram promovidas à categoria de benditas promessas esperando serem liberadas sobre os crentes que enxergam com os olhos da fé instrumental, as chaves que abrem portas de emprego, que trancam gavetas com processos, que abrem portões de condomínios na praia e dão partida em carros de luxo.

Desde o começo Jesus deixou claro, para que ninguém depois dissesse que não tinha sido avisado: Quem quiser embarcar em meu projeto deve estar ciente de que vai perder tudo. Tudo inclusive a própria vida. Antes de exortar alguém para que se despojasse de bens e segurança para abraçar a causa do Reino, ele mesmo assume-se como um-sem-lugar, que não tem sequer um travesseiro para o descanso noturno – seu parente Jacó, tinha ao menos uma pedra. Jesus defende a implantação do Reino que não é de visível aparência, tampouco é comida nem bebida, “o Reino está dentro de vós” declarou certa vez na roda de amigos.

Seus discípulos não tiveram como um embaraço, para abraçar seu projeto, o fato de terem de viver boa parte da vida ao relento, dependendo da caridade alheia. Simão e André depuseram imediatamente as redes ao serem convidados com um “Vinde após mim e eu vos farei pescadores de homens”. Os filhos de Zebedeu quando convidados prontamente deixaram seu pai e as redes que consertavam e seguiram ao encontro daquele que havia de vir, sem saber sequer para onde iam - isso faz lembrar um tal pai da fé. Levi envolvido com o lucro da cobrança de impostos quando esteve de frente com o Mestre não resistiu ao chamado, deixou a banca e foi após ele. Jesus, o rico que se fez pobre em todas as dimensões da vida, não pregou tampouco santificou a pobreza, ele foi contra o apego às coisas e a ansia pelo excedente, o jovem rico que o diga.

Para Jesus a questão não é simplesmente o ter, mas, ter a ponto de se perder o ser enquanto pessoa, que corrompe o coletivo. O desapego às coisas materiais é condição necessária para alguém ingressar no Reino. Os ricos da antiguidade eram enterrados com seus bens para que sua identidade não se perdesse na outra esfera da vida, os evangélicos de hoje moldaram sua identidade na mercadoria e estão enterrados vivos na cobiça ao lucro. Em seu desapego Jesus esvaziou-se de sua condição primordial tomando a condição de simples mortal (Fp 2.6-7). Viveu de tal forma dependente de Deus que não teve dúvidas quanto a chamá-lo de Pai.

Ele:“Não conquistou os homens pelo poder arrogante que a todos subjuga, mas pelo serviço generoso que a todos fascina. Comprometeu-se com os pobres de seu tempo; tomou-lhes sempre a defesa e não recusou por causa disso as disputas e os conflitos, seja para defender o cego de nascença, os leprosos, a prostituta, a mulher que perfumou sua cabeça, considerada de má vida, os doentes, considerados pelos cânones do tempo pecadores públicos” (Leonardo Boff, TEOLOGIA DO CATIVEIRO E DA LIBERTAÇÃO, p.250).

Na vida do Cristo, é em sua pobreza que somos enriquecidos (2 Co 8.9). O conflito que se estabeleceu em sua vida teve seu agravo contra os partidos religiosos por ter ele priorizado o cuidado com os marginalizados aos sábados, e pior de tudo no templo. Nesse aspecto até fazemos caridade desde que nossa rotina religiosa não se altere e nossa instituição não seja menorizada. O sábado tornou-se senhor do homem. Jesus viveu pelos muitos que ninguém é capaz de viver, por isso morreu pelos quais ninguém é capaz de morrer, o que torna sua morte digna de ser lembrada com o pão e o vinho sobre a mesa. Sua morte foi conseqüência de sua vida; amigo de pecadores, insurgente com as leis dos anciãos, chamou à mesa coxos e aleijados, foi contado entre os transgressores, crucificado entre bandidos, sepultado em um túmulo emprestado. Na ressurreição foi confundido com um jardineiro, apareceu para mulheres, partiu o pão e deu graças a Deus entre dois desconhecidos em Emaús. Ressurreto, não teve audiência com a elite, foi ao encontro dos que o abandonaram na pior hora e deixou o projeto de continuidade do Reino nas mãos desses mesmos párias com quem fez uma grande amizade.

Seguir a Jesus é dar prosseguimento em sua vida, assumir sua conduta, é comprovar o mesmo sentimento que ele teve (Fp 2.5). Jesus assumiu a vida de humilde e morreu a morte de maldito não para que esta tivesse um caráter idealizador, ufanista, mas para que a justiça e a igualdade partissem de dentro do mundo, abraçadas por Deus, para inspirar uma nova mentalidade que inviabilize o aparecimento de ricos e pobres, oprimidos e opressores, mão de obra barata e monopolizadores do lucro e do capital. O Reino não é lugar de privilegiados alienados do mundo, mas de responsáveis esclarecidos pela verdade que liberta.

Ele foi longe demais nas exigências à quem cogitasse andar nas suas pisadas. Nada menos que negar-se a si mesmo e tomar a cruz particular disposta no caminho, assim quem perde a própria vida ganha-a, e quem quer ganhar a própria vida perde-a.


Alex Carrari

domingo, 19 de junho de 2011

A teologia do Capital

De que forma a nação mais alegadamente evangélica do planeta (e, portanto, oficialmente a mais fiel ao espírito do Novo Testamento) acabou se tornando dentre todas a mais brutalmente consumista, mercantilista e materialista (e, portanto, a menos fiel ao espírito do evangelho e do Novo Testamento)?

Segundo Max Weber, em seu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1904), a resposta à pergunta está, paradoxalmente, na teologia da própria Reforma. Tudo no nosso competitivo mundo capitalista, de telefones celulares a Big Brother, de Intel a sequilhos Daltony – passando por Tele-Sena, orkut, Danone Activia, Mae West, Pastilhas Valda, Pasta Jóia e Amado Batista – seria o inusitado resultado de uma curiosa interpretação da Bíblia sustentada por Calvino e seus seguidores. O capitalismo é uma curiosidade teológica.

Até o século XVI a retórica cristã havia defendido, com algum sucesso, os méritos da frugalidade e do desapego ao dinheiro e aos bens materiais. O sucesso deve ser considerado parcial porque desde o quarto século a Igreja como instituição achara-se despudoradamente poderosa e cada vez mais rica, e grande parte do poder subversivo da mensagem do Novo Testamento se perdera na contradição.O capitalismo é uma curiosidade teológica.

Por volta de 1500 a Igreja Católica chafurdava numa complexa rede de favores políticos e econômicos, tendo lançado no mercado uma diversificada linha de produtos espirituais a fim de aumentar suas receitas materiais – linha que incluía cartões de perdão pré-pago e lotes de salvação (com vista para Deus!) com o selo de garantia do Santo Padre. Mesmo diante desse cenário, a intransigente doutrina de Jesus sobre as armadilhas do amor ao dinheiro e às riquezas havia sobrevivido na cultura e na ética popular.

Com a Reforma, tudo isso iria mudar.

Lutero começou denunciando a venda de indulgências, ao mesmo tempo em que condenava os monges como universalmente ociosos e o Papa como mãe de todas as sanguessugas. Sua tese do sacerdócio universal demonstrava como bíblica a noção de que o homem pode servir legitimamente a Deus em todas as áreas da vida civil – sendo que ninguém precisa da intermediação de um padre, sacerdote, monge ou freira para estar mais perto de Deus. Como conseqüência, vociferava Lutero, Deus é eficazmente glorificado na vida familiar e no trabalho honesto do dia-a-dia.

O trabalho foi portanto oficialmente redimido pelo luteranismo – porém, segundo Weber, foi a teologia mais elaborada de Calvino que acabou definitivamente mudando os pratos da balança.

A doutrina calvinista ganhou notoriedade, também na sua época, devido a sua ênfase sem precedentes nos predestinados, aquela gente que Deus escolheu para herdar a vida eterna. Os predestinados estariam separados, segundo critérios pelos quais somente Deus poderia responder, para a salvação e o paraíso; todos os outros estariam condenados ao inferno e nada podia mudar isso, visto que a salvação não pode ser comprada (mais prejuízo para a venda de indulgências) e Deus é imutável.

Embora fosse tecnicamente impossível estabelecer se determinada pessoa era com certeza um dos predestinados, o consenso era de que a marca divina deixava evidências inequívocas de aprovação na vida da pessoa escolhida. Aqui, neste selo visível de homologação, estava o verdadeiro chamariz da coisa, porque o sucesso nos empreendimentos financeiros foi tomado desde cedo como sendo forte indicação de uma possível inclusão da pessoa entre os predestinados.

A partir de indicações como a do terceiro verso do salmo primeiro, ficou entendido que a marca distintiva do eleito estava em que “tudo quanto fizer prosperará”. Para demonstrar ser um dos perdidos bastava viver de modo indolente, descuidado e perdulário; já um sujeito austero, econômico e empreendedor produzia grave evidência de que estava entre os escolhidos.

Calvino adentrou terreno ainda mais inédito ao assinalar que todos, mesmo os ricos, deveriam trabalhar. Ele fez ao mesmo tempo o que pode para desvincular riqueza de dissipação, defendendo que tanto ricos quanto pobres deveriam adotar um modo de vida austero e temperante. O empreendedor era instado a não gastar um tostão em bens supérfluos ou carnalidades; ao contrário, deveria reinvestir cada centavo dos seus lucros de forma a financiar novos empreendimentos – precisamente como o Tio Patinhas e seu ancestral Ebenezer Scrooge, que sintetizam a ética de trabalho calvinista. A avareza era tida como coisa especialmente nobre e altruísta.

O que os predestinados tinham ainda em comum com o Tio Patinhas é que recusavam-se por princípio a utilizar seus próprios lucros para ajudar os mais pobres a se alçarem da sua condição ou mitigarem suas agruras. Entendia-se que esse tipo de liberalidade, por mais bem-intencionada que parecesse, violava de modo irresistível a vontade de Deus, já que era somente pelo trabalho de suas próprias mãos que os mais pobres tinham como produzir evidência de que estavam entre os predestinados. A avareza era, portanto, tida como coisa especialmente nobre e altruísta.

Os empregados do empreendedor, eles mesmos calvinistas, deveriam por outro lado encarar seu trabalho como seu “chamado” – chamado que devia ser executado com diligência e alegria mesmo que a recompensa financeira e terrena fosse pequena.

Pronto: aquilo que durante a Idade Média absolutamente não se tolerava era agora encorajado diretamente, e com a severa sanção da teologia revista e atualizada. A vida de cada cristão deveria ser a partir de agora uma cruzada pessoal em busca do lucro ilimitado. A riqueza e a prosperidade passaram a ser dever religioso; a generosidade, insidiosa tentação.

Nascia o que Weber chama de “ética protestante do trabalho” – visão de mundo que glorifica a diligência, a pontualidade, a economia, a austeridade e a inelutável supremacia do ambiente de trabalho.

Na Europa essa nova ética do trabalho teve que lutar contra séculos de ranço e resistência católica. Importada com sucesso para o Novo Mundo ela geraria os Estados Unidos, com seus milagres e contradições.

Ele está no meio de nós.

O rico e seu camelo

  1. O Rico e seu Camelo
  2. A teologia do Capital
  3. O culto da performance
  4. O culto do ócio
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