sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Sexo e Poder

Paulo Brabo - A Bacia das Almas 

Que as três grandes ortodoxias que brotaram do tronco bíblico são sexualmente conservadoras não deve haver dúvida, mas às vezes penso que não gastamos tempo suficiente tentando determinar porquê. À primeira vista pode parecer que as coisas são assim porque religiões lineares como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo tendem à ordenação e ao controle, e em seu processo civilizatório sentem-se impelidas a produzir mecanismos que refreiem o poder socialmente disruptivo do sexo. Desde o primeiro momento, afinal de contas, Deus aparece levantando restrições e barreiras que protejam sua criação de resvalar no caos original – e parece haver poucos emblemas mais unânimes e mais formidáveis do caos do que a multiforme, embriagadora e infracionável bagagem sexual humana.

Esse argumento de contenção do caos, pode estar ocultando, no entanto, uma lógica falha. Talvez seja vantajoso para o sistema, justamente a fim de manter o estado de coisas e perpetuar a dominação, sustentar artificialmente a ideia de que o sexo tem um poder socialmente disruptivo que na realidade não tem. Se o sexo não se mostrar na prática tão socialmente destrutivo quanto se supunha que fosse, as ortodoxias perderão grande margem de alavancagem em outras áreas. Esse, por si só, pode ser um excelente motivo para que as instituições mantenham sua ênfase na obediência estrita aos regulamentos: desse modo a base não comprovada dos seus argumentos permanecerá oculto pela cortina das proibições.

Mas estou me adiantando, e talvez da forma errada.

Talvez eu devesse colocar em cheque logo de início as suas preconcepções, e explicar que quando a Bíblia fala de sexo não está falando de pureza, mas de mecanismos de dominação. Onde parece estar falando de contatos proibidos entre corpos, está na verdade ilustrando e estabelecendo (e por vezes desafiando) jogos sociais de poder e mecanismos sociais de controle.

Para demonstrar adequadamente este ponto será necessário um livro que ainda não comecei a escrever. Por enquanto algumas indicações terão de bastar.

Antigo Testamento: a honra do macho

Para começar há o Antigo Testamento, e a vantagem de começarmos por aqui é que não há lugar em que essas coisas fiquem mais claras. Se as legislações do Pentateuco dão a impressão de ter um caráter chauvinista e patriarcal é porque em grande parte o tem. Essa ênfase fica muito clara nas passagens que regulamentam o sexo. Embora por vezes aparente estar tratando da questão geral da legitimidade dos contatos sexuais (de modo a beneficiar a todos), A principal função social do sexo era ilustrar uma relação de dominação.o texto está essencialmente levantando barreiras sociais que protejam a honra do macho1 (de modo a legitimar a supremacia do ser humano adulto do sexo masculino).

Isso porque, como em muitas culturas da Antiguidade (e até recentemente em muitas culturas ocidentais), na esfera do Antigo Testamento a principal função social do sexo era ilustrar uma relação de dominação. O sexo era tido como um ritual estilizado de poder e de submissão que refletia em privado uma diferença de status muito real na esfera social.

Nessa configuração, tomada como válida por muita gente ainda nos nossos dias, a própria anatomia é interpretada como confirmando o status superior do homem, primazia que a relação sexual periodicamente celebra. O homem tem papel ativo: ele supre, penetra, domina, possui e fertiliza; o papel da mulher é passivo: ela acolhe, é penetrada, é dominada, é possuída e é fertilizada. Tudo nessa visão clássica da relação, bem como nas palavras que escolhemos para descrevê-la, serve para maximizar o papel do homem e minimizar o papel da mulher. O ativo é honrado e valoroso, o passivo é submisso e desprezível2.

Parece haver pouca dúvida de que os povos da Antiguidade desenvolveram essa visão do sexo como emblema de dominação a partir da observação do comportamento dos animais, já que para muitos mamíferos superiores o sexo tem uma função claramente política, além da reprodutiva. O líder é via de regra o grande reprodutor, o macho fertilíssimo que tem o maior número de parceiras, e ele pode resolver ilustrar a sua superioridade e a submissão dos demais tomando como parceiros passivos até mesmo os machos abaixo dele na hierarquia.

Muito claramente, foi essa visão da sexualidade como registro social de dominação e controle, e não nenhuma inclinação homossexual generalizada, que levou os homens de Sodoma a rejeitar as filhas virgens de Ló em favor do sexo com os seus visitantes. Eram homens bárbaros que queriam mostrar barbaramente o seu poder; na sua visão de mundo, possuir visitantes ilustres simbolizaria mais formidavelmente a sua potência do que simplesmente violentar moças locais3.

Embora em muitos sentidos mais generosa, mais liberal e mais sofisticada do que as leis que regiam outros povos na mesma época, a legislação do Pentateuco toma como certa essa noção do sexo como ritual de dominação. Ele favorece claramente a ideologia da supremacia do macho, e deita medidas explícitas para proteger a sua honra. O adultério, por exemplo, é visto como transgressão especialmente grave não por violar a santidade da família4, mas porque representa uma afronta à honra e à potência/suficiência do homem casado/macho reprodutor.

O sexo entre homens é julgado “abominável” essencialmente pela mesma razão. Um homem não deve deitar-se com outro homem “como se fosse com mulher”, porque isso ilustraria uma relação de dominação e de submissão entre agentes que para o sistema devem permanecer invariavelmente dominantes – nunca submissos ou passivos. O banimento do comportamento homossexual não está embasado no intercâmbio entre corpos incompatíveis, mas na conotação politicamente inaceitável que uma relação “desigual” entre “iguais” é interpretada como tendo. Ambos os transgressores devem ser mortos: um porque aceita a submissão que denigre a honra inerente do macho, outro porque a proporciona.

Semelhantemente, de modo a manter a virtude masculina intocada, um homem não deve absolutamente deitar-se com uma mulher menstruada (isto é, inadequada e impura), e um homem com os testículos esmagados deixa de ter cacife para apresentar ofertas diante de Deus: tudo para que o homem ideal permaneça o grande dominador de honra intacta, o eficaz reprodutor suficiente e desimpedido.

Em conformidade com essa tendência, na Bíblia são sempre as mulheres que são estéreis, nunca os homens. Não conviria a um herói magnífico como Abraão mostrar-se deficiente (mesmo que divinamente suprido, como ocorre com Sara) nessa mais significativa das áreas. Em retrospecto, talvez a função original de Hagar e de Ismael na narrativa tenha sido apenas deixar claro além da dúvida que a culpa pela infertilidade do casal residia sobre Sara, não sobre seu marido.

Roland Boer estava apenas em parte brincando quando escreveu seu provocativo e constrangedoramente meticuloso artigo The Patriarch’s Nuts: Concerning the Testicular Logic of Biblical Hebrew (As bolas do patriarca: considerações sobre a lógica testicular do hebraico bíblico). Os autores do Antigo Testamento de fato criam que algo grande, sagrado e preferencialmente inviolável residia entre as coxas do ser humano do sexo masculino; isso fica evidente no uso quase reverente que fazem dos termos hebraicos que em português se traduzem comumente como “lombos” ou “coxa”, mas são eufemismo para regiões do corpo mais exclusivamente masculinas (como, por exemplo, na expressão “fruto dos teus lombos”). Os testículos, mais do que o pênis, eram tidos como residência da masculinidade e da iniciativa, e portanto daquilo que a humanidade tinha de mais íntegro, momentoso e admirável5.

Nesse mundo, em que o sexo era visto como registro social do status de dominação e de submissão de seus participantes, e os testículos como os tabernáculos mais sagrados da virtude, apenas as manifestações sexuais que não comprometiam a honra e a primazia do macho eram tidas como legítimas.

A seguir nesta série:
Novo Testamento: a supremacia (e o caráter subversivo) do amor

Sexo e poder

  1. Sexo e poder
NOTAS
  1. Embora também esteja, em menor grau, estabelecendo mecanismos que perpetuem a nação judaica diante da competição cultural e numérica dos povos que a circundam. []
  2. A religião do Antigo Testamento (e portanto a vida social do judaísmo antigo) estava estruturada de modo a perpetuar e ilustrar essa distância. No Templo de Jerusalém as mulheres não podiam aproximar-se do santo dos santos mais do que o pátio externo que levava o seu nome; nas sinagogas, seu espaço de adoração e de aprendizado delimitava uma distância e uma desigualdade semelhante. No tempo de Jesus, mais de mil anos depois da publicação do Pentateuco, não era de bom tom (porque seria desonroso para o homem) que um marido fosse visto falando em público com sua própria esposa. []
  3. Indícios muito claros desse modo de ver as coisas restam no nosso mundo e no nosso linguajar. Assim um homem ofendido pode dizer a outro “vou te foder” (querendo dizer “vou me vingar e mostrar quem é que manda”), e quem está numa situação difícil pode dizer “estou fodido” (querendo dizer “estou numa situação desfavorável e desprezível” []
  4. O Pentateuco parece ser muito tolerante com relação à poligamia, por exemplo, e tem pouco a condenar no homem casado que faz sexo com mulheres solteiras. []
  5. Em particular, e como observa Boer, manusear as gônadas de um homem adulto era visto como tendo implicações legais profundas. Quando quiseram obter um juramento inviolável de seu servo e de seu filho José, tanto Abraão quanto Isaque ordenaram: “Põe a mão debaixo da minha coxa e prometa” (Gênesis 24:2-3, 47-29). []

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Gênesis de uma igreja contemporânea

1 No princípio ele criou  a sua própria igreja, alugando um lugar para reunir algumas pessoas sem ter denominação alguma e declarou a si mesmo “pastor”.
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2 E a igreja era sem forma e vazia, mesmo assim algumas pessoas vieram apoiá-lo. E até então o Espírito de Deus pairava sobre a face daquele lugar.
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3 E o pastor disse: façamos uma oferta para arrumar a igreja e a oferta foi recolhida.
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4 E o pastor viu que a oferta e as pessoas eram boas e apoiavam suas idéias; então separou uma oferta para a igreja e outra para si mesmo.
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5 E o pastor chamou aquilo de doações para não pagar impostos e as que cobriam suas despesas foram chamadas de dízimo. E passou a tarde e a manhã pedindo dinheiro.
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6 Então disse o pastor: haja expansão entre os congregantes e separou as pessoas que o interessavam das que não interessavam muito.
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7 E fez o pastor uma expansão e separou os menores de idade e os chamou de crianças e adolescentes e os maiores de idade de: assembleia geral, grupo de homens, de mulheres, de adultos solteiros… E assim por diante.
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8 E o pastor chamou a expansão de “Minha igreja”. E passou a tarde e a manhã fazendo uma reunião especial para atrair mais pessoas.
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9 Então disse o pastor: Juntem-se aqueles que sabem tocar algum instrumento e descubram quem gosta de cantar. E isso aconteceu.
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10 E chamou o pastor os que tocavam e cantavam de “Meu grupo de louvor” e as outras pessoas de servos. E viu o pastor que isso era bom e lhe convinha.

11 Então disse o pastor: Surja dentre o povo quem venha para a igreja disposto a lavar e limpar os banheiros, cadeiras e deixar tudo arrumado e limpo. E isso aconteceu.
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12 Pois a igreja produzia pessoas de bom coração que ajudavam sem reclamar, pessoas que trabalhavam sem esperar nada em troca e sabiam em seu coração que aquilo que faziam  valia a pena, mesmo sem serem reconhecidos. E viu o pastor que para ele isso era bom e lhe convinha.
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13 E passaram a tarde e a manhã fazendo limpeza e arrumando o templo e colocavam todos dinheiro do próprio bolso para isso.
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14 Então disse o pastor: Haja luz e aparelhos de som para as reuniões e também para eventos especiais; pessoas que entendam de som e venham antes da reunião para preparar tudo e sejam tão comprometidos que posso reclamar se algo não ficou muito bom
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15 e dar ordens como se fossem meus empregados mesmo que nunca recebam um centavo sequer para isso e me servam por muitos anos. E isso aconteceu.
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16 E fez o pastor duas grandes equipes de líderes, os 12 líderes “importantes”, seus amigos e vice-líderes de célula para lhe obedecer sem precisar se relacionar com eles. Assim  nasceram as “estrelas”.
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17 E fez o pastor a expansão de sua igreja e chamou isso de “ministérios”
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18 para exercer domínio em todas as áreas de serviço, o tempo todo procrurando ofuscar os outros e fingindo ter elevados níveis de espiritualidade para alcançar uma posição de liderança. E viu o pastor que isso era bom nisso e o ajudava a controlá-los melhor.
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19 E houve durante a tarde e a manhã cursos de “liderança”.
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20 Disse o pastor: Produzam mais pessoas responsáveis ​​pelas crianças, porque são muito inquietas e distraem os pais da minha pregação da e hora da oferta.
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21 E criou os grandes animais do pastor e os traumas de infância, enchendo as crianças de histórias repetitivas em aulas chatas, professores sem preparação que só conseguiram  fazer que ninguém queria ouvi-lo. E lá estava o pastor que não era bom.
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22 O pastor parabenizou os líderes dizendo: “sejam frutíferos, multipliquem os membros de minha igreja, me tragam ofertas e relatos de pessoas que estão em rebeldia por não pensarem como eu para que possa convencê-las ou mandar embora. E os líderes concordaram.
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23 E houve durante a tarde e a manhã uma refeição apenas para os doze líderes.
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24 Então disse o pastor : Gravem um CD de louvor ao vivo de nossa congregação, um site, uma editora para os meus livros e tudo que seja necessário para que vejam como a minha igreja é mais moderna, mais abençoado e melhor que as outras . E isso aconteceu.
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25 E fez ele congressos de jovens, de mulheres, de homens, de líderes de louvor, teve livros publicados, CDs de música gravados; vendeu pregação, ingressos para cafés, seminários, pré-encontros, encontros, reuniões e pós-encontros. E viu o pastor que para ele isso era bom.
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26 Então disse o pastor : “Façamos Deus à minha imagem e semelhança, do jeito que sou e tudo que eu digo de bom ou de ruim, aceitável ou inaceitável, incluindo música, televisão, cinema, roupas, forma de falar, de liderar uma reunião e assim por diante. Mesmo quando não há base bíblica e são apenas meros caprichos serei respeitado. Quem pensar o contrário será julgados à revelia e expulso de minha igreja. Eu vou reinar sobre todos os membros da minha igreja dizendo: “Deus quer, Deus me disse, Deus me mostrou”, quando na realidade é apenas o que “eu digo, eu sinto e eu amo”


27 E o pastor criou Deus  à sua imagem… e Deus viu que isso não era bom.
tradução: Jarbas Aragão
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dica do Ricardo Gondim
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