domingo, 16 de agosto de 2009

A chuva do Piauí

Ricardo Gondim

Consternado, ouço que dois estados pobres do Brasil continuam castigados por um aguaceiro inédito, principalmente em se tratando de nordeste – se bem que o Maranhão tende para o norte. Desalojados das taperas de pau-a-pique, mulheres, crianças, idosos e camponeses foram obrigados a se albergarem em galpões construídos para animais. Triste, muito triste!

Reflito nas implicações teológicas dessas tragédias. Dentro da lógica que fui treinado, Deus permite tais acontecimentos para que as peças de seu imenso tabuleiro se encaixem. Assim, ele, o Todo-Poderoso, conduz a história para o apogeu final.

“Mas”, minha mente irrequieta e atrevida pergunta, “por que o Senhor tem tanta birra de pobre?; por que os dramas alcançam primeiro os que se arrastam por uma existência inumana?; e sempre com mais perversidade?". No final de maio, o âncora do jornal das oito e quinze avisou que a temperatura global continua sua escalada gradativa. Em 2030 estará dois graus mais quente. O globo sofrerá, mas a devastação da África terá dimensões apocalípticas.

Basta fazer uma conexão simples. Se Deus é bom, como eu acredito, os modelos teístas da teologia clássica se mostram inadequados. Não é possível que na distribuição dos castigos, a ira divina sempre comece pelos pobres. Para mim, as razões que tentam desatar o nó da teodicéia, empacam. O choro de crianças agonizando em clínicas imundas, as valas rasas que sepultam multidões, os campos de refugiados das Nações Unidas esbofeteiam os teóricos da religião.

O modelo de compreensão de Deus e de sua relação com a humanidade precisa ser repensado. Caso contrário, restam dois caminhos: cinismo ou perda da fé. Cinismo significa a afirmação do dogma sem preocupação de conectá-lo com a realidade.

O fundamentalismo cristão navega nestas águas. Para um fundamentalista, não importa o tamanho da catástrofe ou o horror do holocausto, desde que o texto seja garantido e o dogma, enfatizado. Acreditam que para cumprir uma profecia, Deus não hesita em produzir fome, peste, guerra.

Apresentaram esse Deus a Carlos Drummond de Andrade. O poeta o rejeitou, preferindo o ateísmo. Sua crônica Capítulo do Gênesis expressa a profundidade de sua indignação:

1. E o Senhor, vendo que os homens não melhoravam, antes se tornavam piores, decidiu mandar-lhes uma chuva de advertência; e com isso lhes manifestava seu enfado, e que outro dilúvio não estaria fora de suas cogitações,

2. E a chuva começou a cair, a princípio alegre com seu destino de chuva; insistente, depois, e zangada, fazendo aluir a morada dos homens.

3. E os caminhos se encheram de lama, e na lama passavam cadáveres de criancinhas com suas bonecas; e também boiavam corpos de velhos e de moços na eflorescência do amor.

4. E as águas cumpriram seu serviço e se retiraram ao campo de um dia; e quedou sobre a Terra uma dor feita de mil dores.

5. Nisso vieram os sábios da cidade e puseram-se a fazer a exegese da catástrofe; e concluíram que todo o mal provinha de certas povoações altaneiras, desligadas do corpo social, a que se dava o nome de favelas.

6. As quais, dependuradas na crista e no declive dos morros, vertiam sobre a cidade, com algumas notas de músicas, seus detritos e sua miséria, travando o escoamento das águas.

7. E individualmente se chamavam Querosene, Escondidinho, Pasmado, Martelo, Pretos Forros, Cabrito, Vintém, Cantagalo, Curras das Éguas, Nheco, Borel, Esqueleto, Catacumba e apelativos que tais.

8. E mereciam ser destruídas; pelo que se escolheu a Favela da Catacumba, de nome exemplar, para ser arrasada primeiro que as outras, e das outras a hora soaria a seu tempo.

9. E milicianos, na calada da noite, subiram até lá e arrasaram-na, ateando fogo aos escombros; e os sábios se persuadiram de que haviam acabado com a causa primeira da enchente.

10. Embora não houvesse acabado com a causa maior das favelas; e os favelados foram recolhidos a uma casa de boa-vontade, enquanto seus pertences tomavam rumo de uma praça de jogos, Maracanã chamada.

11. E havendo entre esses alguns tamboretes e cadeiras, bem podiam ser aproveitados para assento de amadores das grandes justas de atletas, que eram a glória da cidade.

12. E reinou sobre o morro um silêncio catacumbal, que nem a voz de um papagaio bicava.

13. E seus antigos moradores, depois de alguns dias na casa de asilo, subiram a outro morro ainda virgem e lá plantaram seus fogos e entoam sua música.

14. E outra vez choverá o aborrecimento de Deus, e eles serão responsabilizados, expulsos, apartados de seus bens, e descobrirão novos terrenos de cume, de onde voltarão a ser tangidos.

15. E milicianos em número crescente desalojarão ainda mais numerosos catacumbeiros.

16. A menos que o Senhor, em sua ira, se lembre de consumar a ameaça promova a magna chuva final.

17. Da qual ninguém escapará; e depois dessa ninguém será acusado e molestado por ninguém.

18. A menos ainda que, a poder de palavras e sutis manobras, os sábios consigam desviar a atenção do Senhor para outros mundos ainda mais errados que este.

Teologia, que brota das tragédias, vai bater de frente com as elaborações absolutizadas dos pensadores profissionais. Admito, pode não responder plenamente a angústia que o sofrimento de inocentes suscita, mas será mais verdadeira.

Soli Deo Gloria

Um comentário:

Lucas Parisi disse...

Ola.
Te convido a conhecer o http://labri-brasil.blogspot.com/ L´Abri Brasil.

Talvez seja uma das chances que você tenha pra "pular do aquário", mas sem morrer de asfixia. Há uma linha tênue entre ficar e morrer e sair e tb morrer.

Parabéns pela sua ousadia.
Deus abençoe você.

Lhe autorizei pra seguir-me no twitter. @lucasparisi

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