quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Crime, castigo e ressurreição

Ricardo Gondim

Páginas e páginas da história estão abarrotadas de cadáveres. Milhões morreram devido a estupidez de reis, ditadores, sacerdotes e mercadores. Guerras foram justificadas por questões econômicas. Massacres aconteceram para defender patriotismos imbecis. Genocídios se repetiram para que determinada religião prevalecesse. Gerações se comportaram com menos dignidade que os lobos – que não são predadores da própria matilha.

Em Crime e Castigo, Dostoiévski narra a vida de Raskólnikov, estudante desesperado pela miséria. Vendo-se explorado por Aliena Ivánovna, uma velha, usurária que sobrevive da agiotagem, Raskólnikov a assassina com golpes de machado. Para justificar seu homicídio, Raskólnikov, que era brilhante, engendra uma teoria: existem dois tipos de indivíduos, os “ordinários” e os “extraordinários”. Os “ordinários” são aqueles que se contentam em reproduzir, e caminham anônimos pela existência; eles fazem parte das massas, e vagam como manada. Já os “extraordinários” são os responsáveis pela história e sobre seus ombros recai o dever de conduzir os destinos da humanidade.

Raskólnikov se inspirou em Napoleão antes de decidir matar. Ele se lembrou que o imperador verteu rios de sangue para solidificar a burguesia francesa que necessitava de uma estrutura bancária. Seu pensamento foi mais ou menos o seguinte: “Ora, se a história absolveu Napoleão, que matou milhões em nome de um projeto econômico, porque eu, Rodion Románovitch Raskólnikov, não posso acabar com uma decrépita, que repete na microestrutura o que o sistema bancário faz na macroestrutura?”.

Neste pressuposto, Dostoiévski critica o projeto da modernidade. A modernidade, que transformou o século XX no mais sanguinário da história, se desenvolveu com a lógica sacrificial de que indivíduos podem ser descartados. Quem vai julgar a indústria do leite em pó, que promoveu um infanticídio na África ao incentivar o abandono do aleitamento materno? As grifes famosas, que exploram o trabalho escravo na Ásia para maximizar lucros, permanecerão impunes? Quem há de protestar contra o absurdo de uma xícara de café custar, na Europa, mais que um dia de trabalho em fazendas da América do Sul? George W. Bush vai mesmo desfrutar uma vida abastada e longa no Texas, sem sofrer nenhum processo em tribunais internacionais?

Os “extraordinários” se sentem imunes e impunes. Em nome do processo civilizatório, do capitalismo que mantém a engrenagem econômica em movimento e do progresso, vidas são eliminadas, inclusive, com efeitos colaterais perversos. Danem-se os pobres, as crianças e os deficientes. “Algum preço tem que ser pago para que a humanidade progrida e alcance seu fim glorioso”, afirmam.

Em cima de tal lógica, Raskólnikov jamais admitiu ter matado a velha. Para ele, um "princípio" foi eliminado. Aliena era um obstáculo, um “piolho”, que estorvava o seu caminho.

Profeta adiante de sua época, Dostoiévski expôs a inclemência do capitalismo, que não tem escrúpulos de mercadejar com a alma humana. As grandes fortunas, os mega empreendimentos, as ideologias absolutas, junto com as religiões dogmáticas, não têm coração; não sentem remorso. Mas Raskólnikov sofreu. Sua consciência não o deixava em paz, teve febre e foi para o fundo do poço. A mensagem final do livro é: existe a possibilidade de um novo começo para indivíduos maus; as estruturas sociais, religiosas e econômicas, entretanto, se depravaram e nunca vão parar de assassinar.

Soli Deo Gloria

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