sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Quem é o sujeito da história?

Ricardo Gondim

Os filósofos indagam o porquê da vida. Por isso, filosofia é definida não só como ciência, mas “uma decisão de não aceitar como naturais, óbvias e evidentes as coisas, idéias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido”.[1]

Os teólogos buscam discernir o enigma do universo; principalmente a origem do mal. Assim, faz-se teologia com dois olhos. Com um, mira-se Deus, o mistério absoluto. Com outro, procura-se compreender o drama humano; busca-se, na teologia, um nexo que explique todas as suas ambigüidades, dilemas, dores, alegrias, triunfos e fracassos.

Para Marilena Chaui, as religiões ordenam a realidade segundo dois princípios: o bem e o mal.

“Há três tipos de religiões: as politeístas, em que há inúmeros deuses, alguns bons, outros maus, ou até mesmo cada deus podendo ser ora bom, ora mau; as dualistas, nas quais a dualidade do bem e do mau está encarnada e figurada em duas divindades antagônicas que não cessam de combater-se; e as monoteístas, em que o mesmo deus é tanto bom quanto mau, ou, como no caso do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, a divindade é o bem e o mal provém de entidades demoníacas, inferiores à divindade e em luta contra ela.

No caso do politeísmo e do dualismo, a divisão bem-mal não é problemática, assim como não o é nas religiões monoteístas que não exigem da divindade comportamentos sempre bons, uniformes e homogêneos, pois a ação do deus é insondável e incompreensível. O problema, porém, existe no monoteísmo judaico-cristão e islâmico.

Com efeito, a divindade judaico-cristã e islâmica é definida teologicamente como um ser positivo e afirmativo: Deus é bom, justo e misericordioso, clemente, criador único de todas as coisas, onipotente e onisciente, mas, sobretudo, eterno e infinito. Deus é o ser perfeito por excelência, é o próprio bem e este é eterno como Ele. Se o bem é eterno e infinito, como surgiu sua negação, o mal? Que positividade poderia ter o mal, se no princípio, havia somente Deus, eterna e infinitamente bom? Admitir um princípio eterno e infinito para o mal seria admitir dois deuses, incorrendo no primeiro e mais grave dos pecados, pois tanto os Dez Mandamentos quanto o Credo cristão afirmam haver um só e único Deus.

Além disso, Deus criou todas as coisas do nada; tudo o que existe é, portanto, obra de Deus. Se o mal existe, seria obra de Deus? Porém, Deus sendo o próprio bem, poderia criar o mal? Como o perfeito criaria o imperfeito? Qual é, pois, a origem do mal? A criatura.

Deus criou inteligências imateriais perfeitas, os anjos. Dentre eles, surgem alguns que aspiram ter o mesmo poder e o mesmo saber que a divindade, lutando contra ela. Menos poderosos e menos sábios, são vencidos e expulsos da presença divina. Não reconhecem, porém, a derrota. Formam um reino separado, de caos e trevas, prosseguem na luta contra o Criador. Que vitória maior teriam senão corromper a mais alta das criaturas após os anjos, isto é, o homem? Valendo-se da liberdade dada ao homem, os anjos do mal corrompem a criatura humana e, com esta, o mal entra no mundo.


O mal é o pecado, isto é, a transgressão da lei divina que o primeiro homem e a primeira mulher praticaram. Sua punição foi o surgimento de outros males: morte, doença, dor, fome, sede, frio, tristeza, ódio, ambição luxúria, gula, preguiça, avareza. Pelo mal, a criatura afasta-se de Deus, perde a presença divina e a bondade original que possuía.

O mal, portanto, não é uma força positiva da mesma realidade que o bem, mas é pura ausência do bem, pura privação do bem, negatividade, fraqueza. Assim a treva não é algo positivo, mas simples ausência da luz, assim também o mal é pura ausência do bem. Há um só Deus e o mal é estar longe e privado dele, pois Ele é o bem e o único bem”. [2]

Diante desses pressupostos, deve-se perguntar: Como o movimento evangélico observa a história? Como responde quando estruturas políticas e econômicas produzem morte? Quem ou qual fator determina as escolhas de líderes, reis, generais e presidentes? Por que se vive com tanto sofrimento na América Latina?

Antes da modernidade, os primeiros teólogos cristãos trabalhavam com a noção de que a história seguia bitolas previamente definidas por Deus e que a participação humana só valia pedagogicamente para amadurecer o próprio homem, nunca para re-inventar o futuro. Com a autonomia humanista da modernidade, esse paradigma foi lentamente corroído pela ciências sociais. Homens e mulheres passaram a ser considerados atores e não meros objetos históricos. Com a renascença rompeu-se com a visão medieval da depravação total dos seres humanos e com o determinismo histórico.

Indubitavelmente a teologia cristã ensina que o pecado se universalizou. Entretanto, houve um pessimismo exagerado na elaboração dessa doutrina. Negligenciou-se muito o ensino sobre a “Imago Dei” – expressão latina para significar a imagem de Deus nos seres humanos. Santo Agostinho é responsabilizado de sobrepor as idéias de Plotino às de São Paulo sobre o pecado.

“As interpretações religiosas medievais se apóiam nos fundamentos racionais do pensamento de Platão. Inicialmente, Plotino 9205-270) desenvolve uma espiritualista e mística, o neoplatonismo. Nele, Santo Agostinho (354-430) buscará inspiração para a resolução de suas dúvidas, o que o encaminha para a conversão ao cristianismo e, posteriormente, à elaboração da grande síntese teológica cuja influência será decisiva na transição do final da Antiguidade para a alta Idade Média”. [3]

Esse conceito medieval da maldade humana significava que Deus mantinha-se fora da história, sempre a conduzindo e determinando segundo sua santidade e sabedoria. Só ele era “sujeito da história”. O homem era tão indigno que não podia cooperar com Deus. Somente Deus estava por detrás de todos os eventos. Sua vontade bastava para explicar cada anacronismo ou avanço humano. Porém a modernidade começou a pensar dentro de outro paradigma: o homem como “sujeito da história”.

“O mundo moderno substituiu esta noção de Deus como sujeito da história pela noção do ser humano como sujeito da história. A secularização, neste sentido, pode ser entendida como um processo de desencantamento do mundo e de reencantamento do ser humano. A Modernidade usurpa da Deus a imagem do sujeito e a transfere ao ser humano. Beste sentido, Alain Touraine diz: ‘ao entrar na Modernidade, a religião explode, mas seus componentes não desaparecem. O sujeito, cessando de ser divino ou de ser definido como a Razão, tornou-se humano, pessoal, torna-se uma certa relação do indivíduo ou do grupo a eles mesmos’, e que o ‘sujeito da Modernidade outro não é que o descendente secularizado do sujeito da religião.

Com esta profunda transformação, uma autêntica revolução antropológica, a história passa a ser vista como um objeto na relação com o ser humano. Na construção do conceito de sujeito da história ocorre, ao mesmo tempo, a construção do conceito de história como objeto a ser construído pelo sujeito-humano. Nos primórdios da humanidade, predominou a noção do destino escrito pelos deuses ou pelos espíritos da natureza, não havendo ainda a noção da história. Com o tempo apareceu a noção do mal ético, o pecado, e com isso a noção da liberdade humana, dando origem à noção de história. O Antigo Testamento é um exemplo desta ruptura cultural, da visão da história como uma tensão entre a vontade divina e a humana. Entretanto, na maior parte do tempo, a história humana foi percebida como definida pelos deuses ou pela Razão. Com a modernidade surge esta novidade: a percepção da história como sendo construída por sujeitos humanos”.[4]

É necessário que também se considere a influência do determinismo científico e filosófico na teologia. No determinismo científico tudo o que existe precisa de uma causa. No século XIX, Augusto Comte ensinava que a liberdade humana não passava de mera ilusão. O filósofo positivista Taine (1828-1893) repetia que a vida se condicionava por três fatores diferentes: raça, meio e momento. Assim, os positivistas acreditavam que a carga biológica herdada, determinava o comportamento. Aceitavam igualmente que o meio com seus fatores geográficos, climáticos e socioculturais, não permitiam escolhas genuínas. E havia ainda o momento: subordinando os indivíduos a viverem de acordo com os valores de sua época. Ninguém podia se perceber livre. Muitos teólogos – Pascal era um deles – não pensavam diferente e iam além: tudo o que existe não tem apenas uma causa (Deus), mas necessariamente um propósito. Em diversas escolas renasceu o pensamento grego e pagão de que o futuro já é algo acontecido e está, portanto, fechado. Vários pensadores cristãos assumiram que não existe qualquer contingência no universo. Para elas, todo acontecimento obedece a uma necessidade. Para muitos teólogos ocidentais, a explicação final de todos os fatos resumia-se em: “Tinha que ser assim”! Eles refletiam dentro dos arraiais cristãos, o pensamento determinista de sua época.

Mas os tempos mudaram, aquele velho determinismo científico e filosófico esfarinhou-se:

“... não há como negar que o ser humano sofre determinações, situado que está em um tempo e espaço e sendo herdeiro de uma certa cultura. No entanto, é também um ser consciente, capaz de conhecer esses determinismos. Ora, esse conhecimento permitirá, a partir da consciência das causas (e não à revelia delas), construir um projeto de ação. Portanto, a liberdade se torna verdade quando acarreta um poder de transformação sobre a natureza do mundo e sobre a própria natureza humana.

É assim que o filósofo francês Alain, pseudônimo de Emile-Auguste Chartier (1868-1951), explica como um hábil marinheiro manobra o veleiro e fazendo ziguezagues, pode seguir para onde quiser: ‘O oceano não quer mal nem bem. Aonde segue o vento e a lua, e se estendemos uma vela ao vento, este a impele segundo o ângulo. O homem orienta sua vela, apóia-se no leme e avança contra o vento pela própria força do vento’. A consciência do determinismo do vento se transforma nesse caso, em outra causa, capaz de alterar a ordem das coisas. Com isso, não se rompe o nexo causal, mas introduz-se uma outra causa – a consciência do determinismo – que transforma o sujeito em ser atuante, e não um simples efeito passivo das causas que agem sobre ele: o veleiro não segue apenas para onde sopra o vento, mas para onde o marinheiro deseja ir”. [5]

É possível fazer teologia evangélica na América Latina algemando a história a qualquer determinismo? Quando se afirma que há um compromisso histórico na Missão Integral, está implícito que há uma proposta de que a igreja precisa se comportar como “sujeito da história”, nunca seu objeto passivo. Em sua práxis ela deve acreditar que miséria, injustiça e violência não cumprem uma vontade divina, mas agridem a Deus. Ele não produz a desigualdade perversa e nem pode ser responsabilizado pela morte de crianças que não resistem a uma simples diarréia. Jung Mo Sung, teólogo brasileiro, comprometeu-se com o pobre e com a transformação da história quando percebeu que não existia nenhuma providência causando desgraça:

“A história não era mais para mim o desenrolar da vontade onipotente de Deus, mas resultado de ações humanas, dos conflitos de interesses de grupos e classes sociais. A pobreza deixara de ser para mim a cruz imposta por Deus para a salvação das almas. E, portanto, a superação da pobreza não viria das orações e das conversões dos corações, mas sim das transformações estruturais da sociedade”. [6]

Portanto, o evangelicalismo latino-americano só conseguirá manter-se fiel ao seu compromisso de fazer Missão Integral quando começar a libertar-se de pelo menos dois jugos fundamentalistas: o homem objeto e não sujeito da história e o determinismo agostiniano de que toda realidade cumpre a vontade de Deus. Se não se desvencilhar desses paradigmas, continuará apologético, porém impotente para transformar a fé em práxis.

Soli Deo Gloria.

[1] Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2004, p.17.
[2] Ibid, 259.
[3] Aranha e Martins, Maria Lúcia e Maria Helena. Filosofando – introdução à Filosofia – São Paulo: moderna, 2004, p.327.
[4] Sung, Jung Mo, p. 52.
[5] Aranha e Martins, Maria Lúcia e Maria Helena. Filosofando – introdução à Filosofia – São Paulo: moderna, 2004, p.320
[6] Sung, Jung Mo. Sujeito e Sociedades Complexas. Para repensar os horizontes utópicos. São Paulo: Vozes, 2002, p.28.

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