Em cada grupo havia um posto construído pelos admiráveis missionários da MEVA, missão que há muito tempo vem promovendo o Reino de Deus entre as populações indígenas. Ali, esses missionários dão às pessoas nativas a oportunidade de aprenderem a escrita de sua própria língua, tanto quanto e em segundo plano, a língua portuguesa. Condição para lerem a Bíblia traduzida para a sua língua materna. Junto a isso desenvolvem um belo trabalho de assistência à saúde, com cuidados clínicos e profilaxia.
Impressionei-me com a alegria aconchegante dos Yanomamis. Sequer falavam a língua portuguesa, as raras exceções não estavam na maloca quando lá estivemos. Mas comunicavam a felicidade que nossa visita lhes proporcionava. Tocou-me o estado de espírito dos missionários, alguns de origem norte-americana e outros, brasileira. Não os vi pesarosos nem ouvi deles histórias sofridas, sequer sugeriram qualquer lamento. Eram homens e mulheres felizes. O único lamento que deles ouvi foi o de terem que sair dali algumas vezes. Fosse para levantar mantenedores, prestar contas às igrejas de origem ou desempenhar tarefas burocráticas. Porque a terra deles era aquela, terra da missão.
Mas trago na alma os ecos de uma curta e valiosa conversa com a Patrícia, missionária em Palimiú, a primeira e mais demorada de nossas paradas. Patrícia é uma das pessoas responsáveis pelo projeto de tradução da Bíblia para o dialeto daquele grupo yanomami. Trouxe com os olhos dilatados a primeira impressão dos 7 capítulos iniciais do Evangelho de Lucas já traduzidos. O melhor dos frutos da terra, sonho impresso, Palavra de Deus yanomami, Sopro soprado. Tomei o impresso na mão e senti um arrepio no corpo. Patrícia nos falou sobre as gigantes desafios de uma tradução, tanto quanto de todos os estágios que antecedem e perduram no trabalho, as conversas e participações de outros missionários tradutores, dos nativos já alfabetizados. Deu-nos vários exemplos.
Mas em uma das histórias vivenciadas na dura tarefa de tradução e contadas para todos ouvirem, senti-me especialmente visitado pela Palavra de Deus. Disse-nos sobre as difíceis decisões sobre que palavras usar em textos quase intradutíveis. Quando precisou traduzir a história que relata a ressurreição do filho da viúva de Naim, foi alertada por um dos índios que a ajudaram de que havia duas palavras para viúva na língua yanomami. A viúva que é mãe de um filho apenas, palavra que carrega um drama de sofrimento maior, e a viúva que é mãe de muitos filhos. O texto do evangelho nada diz sobre os seus filhos, apenas descreve seu sofrimento. Tinha que fazer a escolha. Depois de muita conversa, oração e meditação, escolheu a primeira das alternativas. Nesse instante, interrompi a conversa com minha inquietação: Patrícia, lidando com essas dificuldades de tradução da Bíblia, como você ouve algumas pessoas disputando razões bíblicas com intolerância e empáfia? Gente que cita o texto bíblico como se pudesse definir Deus e a vida com uma pretensa precisão da letra. Não parecem ridículos? Sua resposta foi apenas um gesto de confirmação com a cabeça e um suspiro.
A Bíblia precisa ser espiritualizada. Sua fragilidade apenas nos lembra que a Palavra de Deus não é a revelação de um código final, preciso e decisivo, de comportamento e teologia. A Bíblia é um sopro de Deus. Um vento que areja nossa mente e nos faz enxergar um pouco do que somos e alguns vestígios de quem Deus é, espalhados em narrativas e orações, em falas proféticas e figuras poéticas do divino. Na Bíblia não há precisão matemática. A linguagem da Bíblia é a nossa. Afetiva. Incerta. Ambígua. Tanto que o poeta ora no salmo 139, poesia que celebra a proximidade de Deus em nossos distanciamentos existenciais, declarando que sua confiança de ser ouvido por Deus reside no fato gracioso de que ele já conhece nossos pensamentos antes que virem palavras na boca. Entre o que penso e o que digo há universos de sentidos que não consigo comunicar. Pensamos tantas coisas na tentativa de pensar uma só. Dizemos uma coisa só na tentativa de comunicar tantas. Ouvem de nós tantas coisas que sequer visitaram nossos pensamentos. Mas Deus sabe o que pensamos, pois entende o que sequer dizemos com clareza. Como podemos pretender dar à linguagem da Bíblia, que é a nossa, um sentido unívoco e inquestionável? Como podemos reivindicar a posse de razão na interpretação de textos que já enfrentaram tantas traduções na história?
As Escrituras são inspiradas, são um sopro. O mesmo que Jesus chama de o outro Paráclito, o outro que fica ao lado. Sopro de persuasão, de memória, de ensino, guia à verdade. A Bíblia é sopro. Contra toda tola tentativa de materializá-la em dogmas, fogueiras inquisitórias, credos e apologias, resta-nos espiritualizá-la, devolvê-la ao Espírito. Meditando, poetizando, orando, amando os diferentes, despertando-nos para nós mesmos e pasmando diante do insistente amor de Deus.
A viagem para o interior da mata terminou ao final do mesmo dia em que começou. Quando pus meus pés no chão de Boa Vista tive uma convicção. Havia feito também uma outra viagem naquele dia, para o interior de minha fé. Esta viagem, percebo, está apenas começando. Ai, que frio na barriga!
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