A de Sobrino, aristotélica, faz o caminho inverso. Eis o choque.
Por Fernando Altemeyer Junior
Há (dez dias) publicou-se a nota condenatória: “O padre Jon Sobrino tende a diminuir o valor normativo das afirmações do Novo Testamento e dos grandes Concílios da Igreja antiga. Tais erros de índole metodológica levam a conclusões não conformes com a fé da Igreja em pontos centrais da mesma: a divindade de Jesus Cristo, a encarnação do Filho de Deus, a relação de Jesus com o Reino de Deus, a sua auto-consciência, o valor salvífico da sua morte.” Notificação da Congregação da Doutrina da Fé, Vaticano, 14 de março de 2007.
Quais as razões para este gesto? Quais as razões para a condenação da obra de um teólogo tão requintado e fecundo? Terá ele diminuído o valor da mensagem evangélica e errado em seu método? Terá negado a divindade de Jesus? Terá silenciado sobre a salvação trazida por Cristo? O que diz Jon Sobrino em seus textos e o que afirma a teologia latino-americana em sua obra intelectual?
Outros tantos teólogos foram condenados nos últimos 32 anos: Hans Kung em 1975 e 1980; Jacques Pohier em 1979; Edward Schillebeeckx em 1980, 1984 e 1986; Leonardo Boff em 1985; Charles Curran em 1986; Tissa Balasuriya em 1997; Anthony de Mello em 1998; Reinhard Messner no ano 2000; Jacques Dupuis e Marciano Vidal em 2001; Roger Haight em 2004 e Jon Sobrino em março de 2007. Há algo de comum entre eles? Há razões para explicar esses conflitos dogmáticos?
Apresento aqui um quadro comparativo das teologias produzidas na América Latina e na Europa, para entender o que aconteceu com o padre jesuíta Jon Sobrino. Na América Latina, a formulação da fé é direta. Na Europa, é reflexa. Na América Latina, o ponto de partida é o rosto de Cristo transfigurado nos pobres. Na Europa, o ponto crucial é a transfiguração do Cristo na filosofia e no pensamento clássico. Na teologia latino-americana a preocupação é prática. Na Europa, é lógica. Na América Latina vemos o povo crucificado como cruz divina. Os pobres são cruciais. Na Europa fala-se do Deus crucificado como cruz humana. A Igreja é crucial. Na América Latina, a consciência histórica é um critério de seguimento de Jesus. Crer é seguir Jesus. Na Europa, o caminho de Jesus é objeto de investigação e critério para discernir entre o crer e o não crer. Crer é entender Jesus. Na América Latina, a pregação de Jesus sobre o Reinado de Deus é um contexto vital e mediação concreta para conhecer ao Deus vivo e verdadeiro. O Reino revela o amor e a verdade. Na Europa, a proclamação da verdade é a fonte segura do fazer teologia. A verdade revela o amor e o Reino.
A Cristologia latino-americana (em particular na obra de Jon Sobrino) se faz a partir da dor humana, especialmente da humanidade padecente em sua carne e corpo. A Cristologia européia se faz a partir do conhecimento humano e da angústia existencial em sua alma e mente. A Cristologia latino-americana vem de baixo para cima. Do histórico de Jesus ao ser de Jesus. Do ser de Jesus ao ser de Deus. É alinhada à escola teológica de Antioquia, ao pensamento dos primeiros evangelistas e a São João Crisóstomo. Fazer teologia muda a vida dos teólogos. Já a Cristologia européia vem de cima para baixo. Do ser de Deus ao Cristo da fé. Do Cristo ao Jesus Ressuscitado. Do Ressuscitado ao crucificado. É alinhada aos pensadores alexandrinos, particularmente ao grande doutor Atanásio.
A Cristologia latino-americana participa da esperança libertadora dos povos crucificados. É uma Cristologia ascendente, inspirada em textos clássicos dos aristotélicos e tomistas. Jon Sobrino faz parte da família espiritual que bebe desta fonte teologal. A Cristologia européia trabalha a encarnação do Verbo como manifestação salvífica de Deus. É uma Cristologia descendente, inspirada em textos clássicos dos platônicos e agostinianos. Os teólogos da Congregação da Doutrina da Fé têm bebido desta fonte espiritual.
A Igreja latino-americana construiu uma teologia que dialoga com o magistério local. E este magistério se exprimiu teologicamente em Medellin, Puebla e Santo Domingo, em documentos pastorais de serviço ao povo e ao Evangelho. O que foi escrito em Medellin, em 1968, foi uma profecia autêntica do povo de Deus. O que foi assumido em Puebla, em 1979, foi a opção do Evangelho pelos pobres e contra a pobreza. O que foi encarnado e inculturado em Santo Domingo, em 1992, foi chave interpretativa dos sinais dos tempos. A missão da Igreja não é restauradora. É anúncio feliz da vida em Cristo.
A teologia gestada em El Salvador, no Brasil, no Chile e em praticamente toda América hispânica e criola dialogou com o magistério local e universal. Assumiu colóquios fecundos com pastores como dom Luciano Pedro Mendes de Almeida e dom José Ivo Lorscheider. Foi sustentada por cardeais como Aloísio Lorscheider e Paulo Evaristo Arns, e por patriarcas da Igreja latino-americana que podem ser chamados de novos padres da Igreja: Jaime Francisco de Nevares, Alberto Pascual Devoto, Eduardo Francisco Pironio, Enrique Angel Angelelli (argentinos); Jorge Manrique Hurtado (boliviano); Avelar Brandão Vilela, Fernando Gomes dos Santos, Helder Pessoa Câmara, Romeu Alberti (brasileiros); Enrique Alvear, Manuel Larrain Errazuriz, Raul Silva Henríquez (chilenos); Gerardo Valencia Cano (colombiano); Oscar Arnulfo Romero (salvadorenho); Leônidas E. Proaño Villalba, Pablo Muñoz Vega (equatorianos); Juan Gerardi Conedera (guatemalteco); Marcelo Gerin (hondurenho); Bartolomé Carrasco Briseño, José Salazar López, José Alberto Llaguno Farias, Sergio Méndez Arceo (mexicanos); Marcos Gregório McGrath (panamenho); Ramón Bogarín Argaña (paraguaio); Juan Landázurri Rickett (peruano) e Carlos Parteli Kéller (uruguaio). Todos filhos do Vaticano II que retomaram a antiga patrística. Padres testemunhas como Oscar Romero e Enrique Angelelli. Mártires que semearam igrejas em todo o continente, como na expressão de Tertuliano. Vivem a teologia na doação de suas próprias vidas.
A segunda onda patrística dos apologistas que defenderam a fé face ao pensamento grego e ao império romano, também tem paralelo em bispos como Manuel Larrain e especialmente no indígena Leônidas Proaño. Apologistas das culturas indígenas e da fé verdadeira. Vivem a teologia na escuta dos clamores surdos de seus povos.
O sofrimento pessoal de Jon Sobrino pode ser um momento fecundo para que se descubra que a humanidade sacratíssima de Jesus é o caminho seguro para contentar a Deus, para alcançar grandes graças do Espírito Santo e, sobretudo, pode ser a porta segura para que Deus nos mostre seus grandes segredos. São Francisco mostra isso ao receber as chagas de Cristo. Santo Antônio de Pádua, ao apresentar em seu colo o menino Deus. São Bernardo e Catarina de Sena em seus poemas de amor à humanidade de Deus feito humano. E, enfim, a doutora Santa Teresa de Ávila, que em seu Livro da Vida, no capítulo 22, afirma categoricamente que o melhor caminho para a mais alta contemplação de Deus passa pela humanidade de Jesus.
*Fernando Altemeyer Junior, teólogo, doutor em Ciências Sociais e ouvidor da PUC de São Paulo.
via: outraespiritualidade.blogspot.com
Por Fernando Altemeyer Junior
Há (dez dias) publicou-se a nota condenatória: “O padre Jon Sobrino tende a diminuir o valor normativo das afirmações do Novo Testamento e dos grandes Concílios da Igreja antiga. Tais erros de índole metodológica levam a conclusões não conformes com a fé da Igreja em pontos centrais da mesma: a divindade de Jesus Cristo, a encarnação do Filho de Deus, a relação de Jesus com o Reino de Deus, a sua auto-consciência, o valor salvífico da sua morte.” Notificação da Congregação da Doutrina da Fé, Vaticano, 14 de março de 2007.
Quais as razões para este gesto? Quais as razões para a condenação da obra de um teólogo tão requintado e fecundo? Terá ele diminuído o valor da mensagem evangélica e errado em seu método? Terá negado a divindade de Jesus? Terá silenciado sobre a salvação trazida por Cristo? O que diz Jon Sobrino em seus textos e o que afirma a teologia latino-americana em sua obra intelectual?
Outros tantos teólogos foram condenados nos últimos 32 anos: Hans Kung em 1975 e 1980; Jacques Pohier em 1979; Edward Schillebeeckx em 1980, 1984 e 1986; Leonardo Boff em 1985; Charles Curran em 1986; Tissa Balasuriya em 1997; Anthony de Mello em 1998; Reinhard Messner no ano 2000; Jacques Dupuis e Marciano Vidal em 2001; Roger Haight em 2004 e Jon Sobrino em março de 2007. Há algo de comum entre eles? Há razões para explicar esses conflitos dogmáticos?
Apresento aqui um quadro comparativo das teologias produzidas na América Latina e na Europa, para entender o que aconteceu com o padre jesuíta Jon Sobrino. Na América Latina, a formulação da fé é direta. Na Europa, é reflexa. Na América Latina, o ponto de partida é o rosto de Cristo transfigurado nos pobres. Na Europa, o ponto crucial é a transfiguração do Cristo na filosofia e no pensamento clássico. Na teologia latino-americana a preocupação é prática. Na Europa, é lógica. Na América Latina vemos o povo crucificado como cruz divina. Os pobres são cruciais. Na Europa fala-se do Deus crucificado como cruz humana. A Igreja é crucial. Na América Latina, a consciência histórica é um critério de seguimento de Jesus. Crer é seguir Jesus. Na Europa, o caminho de Jesus é objeto de investigação e critério para discernir entre o crer e o não crer. Crer é entender Jesus. Na América Latina, a pregação de Jesus sobre o Reinado de Deus é um contexto vital e mediação concreta para conhecer ao Deus vivo e verdadeiro. O Reino revela o amor e a verdade. Na Europa, a proclamação da verdade é a fonte segura do fazer teologia. A verdade revela o amor e o Reino.
A Cristologia latino-americana (em particular na obra de Jon Sobrino) se faz a partir da dor humana, especialmente da humanidade padecente em sua carne e corpo. A Cristologia européia se faz a partir do conhecimento humano e da angústia existencial em sua alma e mente. A Cristologia latino-americana vem de baixo para cima. Do histórico de Jesus ao ser de Jesus. Do ser de Jesus ao ser de Deus. É alinhada à escola teológica de Antioquia, ao pensamento dos primeiros evangelistas e a São João Crisóstomo. Fazer teologia muda a vida dos teólogos. Já a Cristologia européia vem de cima para baixo. Do ser de Deus ao Cristo da fé. Do Cristo ao Jesus Ressuscitado. Do Ressuscitado ao crucificado. É alinhada aos pensadores alexandrinos, particularmente ao grande doutor Atanásio.
A Cristologia latino-americana participa da esperança libertadora dos povos crucificados. É uma Cristologia ascendente, inspirada em textos clássicos dos aristotélicos e tomistas. Jon Sobrino faz parte da família espiritual que bebe desta fonte teologal. A Cristologia européia trabalha a encarnação do Verbo como manifestação salvífica de Deus. É uma Cristologia descendente, inspirada em textos clássicos dos platônicos e agostinianos. Os teólogos da Congregação da Doutrina da Fé têm bebido desta fonte espiritual.
A Igreja latino-americana construiu uma teologia que dialoga com o magistério local. E este magistério se exprimiu teologicamente em Medellin, Puebla e Santo Domingo, em documentos pastorais de serviço ao povo e ao Evangelho. O que foi escrito em Medellin, em 1968, foi uma profecia autêntica do povo de Deus. O que foi assumido em Puebla, em 1979, foi a opção do Evangelho pelos pobres e contra a pobreza. O que foi encarnado e inculturado em Santo Domingo, em 1992, foi chave interpretativa dos sinais dos tempos. A missão da Igreja não é restauradora. É anúncio feliz da vida em Cristo.
A teologia gestada em El Salvador, no Brasil, no Chile e em praticamente toda América hispânica e criola dialogou com o magistério local e universal. Assumiu colóquios fecundos com pastores como dom Luciano Pedro Mendes de Almeida e dom José Ivo Lorscheider. Foi sustentada por cardeais como Aloísio Lorscheider e Paulo Evaristo Arns, e por patriarcas da Igreja latino-americana que podem ser chamados de novos padres da Igreja: Jaime Francisco de Nevares, Alberto Pascual Devoto, Eduardo Francisco Pironio, Enrique Angel Angelelli (argentinos); Jorge Manrique Hurtado (boliviano); Avelar Brandão Vilela, Fernando Gomes dos Santos, Helder Pessoa Câmara, Romeu Alberti (brasileiros); Enrique Alvear, Manuel Larrain Errazuriz, Raul Silva Henríquez (chilenos); Gerardo Valencia Cano (colombiano); Oscar Arnulfo Romero (salvadorenho); Leônidas E. Proaño Villalba, Pablo Muñoz Vega (equatorianos); Juan Gerardi Conedera (guatemalteco); Marcelo Gerin (hondurenho); Bartolomé Carrasco Briseño, José Salazar López, José Alberto Llaguno Farias, Sergio Méndez Arceo (mexicanos); Marcos Gregório McGrath (panamenho); Ramón Bogarín Argaña (paraguaio); Juan Landázurri Rickett (peruano) e Carlos Parteli Kéller (uruguaio). Todos filhos do Vaticano II que retomaram a antiga patrística. Padres testemunhas como Oscar Romero e Enrique Angelelli. Mártires que semearam igrejas em todo o continente, como na expressão de Tertuliano. Vivem a teologia na doação de suas próprias vidas.
A segunda onda patrística dos apologistas que defenderam a fé face ao pensamento grego e ao império romano, também tem paralelo em bispos como Manuel Larrain e especialmente no indígena Leônidas Proaño. Apologistas das culturas indígenas e da fé verdadeira. Vivem a teologia na escuta dos clamores surdos de seus povos.
O sofrimento pessoal de Jon Sobrino pode ser um momento fecundo para que se descubra que a humanidade sacratíssima de Jesus é o caminho seguro para contentar a Deus, para alcançar grandes graças do Espírito Santo e, sobretudo, pode ser a porta segura para que Deus nos mostre seus grandes segredos. São Francisco mostra isso ao receber as chagas de Cristo. Santo Antônio de Pádua, ao apresentar em seu colo o menino Deus. São Bernardo e Catarina de Sena em seus poemas de amor à humanidade de Deus feito humano. E, enfim, a doutora Santa Teresa de Ávila, que em seu Livro da Vida, no capítulo 22, afirma categoricamente que o melhor caminho para a mais alta contemplação de Deus passa pela humanidade de Jesus.
*Fernando Altemeyer Junior, teólogo, doutor em Ciências Sociais e ouvidor da PUC de São Paulo.
via: outraespiritualidade.blogspot.com
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