quarta-feira, 28 de abril de 2010

O fim de todos os governos



Paulo Brabo - www.baciadasalmas.com

O despojamento radical dos romeiros de Pentecostes deve ser encarado, finalmente, como a desconcertante manifestação política que é. O fim da política – isto é, o fim da fé na política – tem consequências políticas muito graves, e é precisamente esta profissão coletiva de independência que estamos presenciando aqui.

É lugar absolutamente comum mencionar-se este episódio como evidência de um precedente bíblico (e portanto cristão) para o socialismo, e é pelo menos tão comum refutá-lo. O argumento mais frequentemente levantado contra a factualidade dessa aliança explica que, ao contrário do que acontece no socialismo, na comunidade de Jerusalém os discípulos se desfaziam voluntariamente dos seus bens. Como se vê, trata-se do mais fraco e desleal dos argumentos, porque resolve ignorar que o despojamento de Pentecostes estabelece um projeto ainda mais idealista e exigente (e portanto, mais admirável) do que o projeto comunista. Parece, na verdade, sustentar blasfemamente que uma manifestação voluntária e irrestrita de coletivismo seria de alguma forma menos notável ou digna de imitação do que um coletivismo oferecido paliativamente através da instituição política. E resolve ignorar, de forma ainda mais cafajeste, a distância irreconciliável entre a postura coletivista dos discípulos de Pentecostes e o individualismo inextinguível requerido pela alternativa oficial ao socialismo, o capitalismo.

O despojamento de Pentecostes não deve ser considerado, de fato, precedente para o socialismo, mas não pela razão apontada pelos que não são de esquerda, de que há verdadeira incompatibilidade entre as duas posturas. A verdade é que a renúncia coletiva dos discípulos em Atos 2 é plataforma para um projeto político (ou talvez seja mais correto dizer apolítico) muito maior e mais ambicioso, sem precedentes e sem verdadeiros herdeiros ideológicos.

Diante desse projeto o socialismo permanece alternativa muito racional, muito cautelosa – muito política – e, portanto, insuficiente. Ao contrário do que sugerem incessantemente os seus antagonistas, nenhuma teoria importante do socialismo (e talvez um número ainda menor de aplicações práticas dessas teorias) pressupõe um coletivismo puro, em que tudo pertence a todos e a propriedade privada simplesmente não existe. Em termos estritos, a única propriedade não-privada postulada por um regime socialista é a dos meios de produção. O sonho socialista é de um mundo em que indústrias, máquinas e matéria-prima não sejam sequestradas por um ciclo seletivo de enriquecimento que é eternamente sustentado pelo trabalho de quem está abaixo de nós no organograma. Nesse mundo em que os meios de produção foram tornados coletivos, aquilo que antes eram lucros desfrutados por uns poucos torna-se magicamente poder de compra de que todos os envolvidos se beneficiam. As pessoas passam a trabalhar menos e ganhar mais, porque sustentam apenas a si mesmas e não o ocioso do andar de cima, e o que ganham pode ser usado para comprar mais e melhores produtos.

Trata-se, como se vê, de um plano simples e bem-intencionado, mas que os defensores do capitalismo tomam por especialmente injusto, visto que não premia com o mesmo deleite a iniciativa, o empreendedorismo e a criatividade. O capitalismo defende sem trégua a liberdade, e entende que liberdade é o indivíduo poder beneficiar-se impunemente da arbitrariedade da diferenciação. Toma por inerentemente verdadeiro que quem é mais inteligente, mais forte, mais batalhador e mais criativo deve ser premiado por essa sua condição, e o prêmio estabelecido pelo sistema é o direito de trabalhar menos e comprar mais. Os incompetentes, os ociosos, os idealistas e os sem instrução, esses a pedra de moer do capitalismo tratará automaticamente de eliminar e punir, atribuindo-lhes pouco ou nenhum poder de compra – isto é, valor nenhum. Segundo esse inabalável artigo de fé, liberdade é liberdade para angariar os benefícios de se encontrar em posição mais vantajosa; consequentemente, quem não tem vantagens para oferecer não terá liberdade de que desfrutar.

O curioso, como denunciado recentemente por insubmissos como Zizek, é que capitalismo e socialismo são doutrinas político-econômicas bem menos distintas entre si do que seus defensores gostam de pensar. O socialismo é em essência um capitalismo elevado ao patamar de utopia, um mundo de produtividade pura e excelsa não perturbada pelo embaraço do capital. A própria definição de socialismo, fundamentada no valor último dos “meios de produção”, acaba denunciando a obsessão (eminentemente capitalista) do socialismo com o consumo. Tanto para um quanto para outro a questão fundamental é produzir e consumir sem impedimento; só diferem quanto ao caminho para se atingir esse nirvana.

Quando se analisam dessa forma as distinções e semelhanças entre os dois sistemas, deve ficar claro que um sistema político (e portanto econômico) é invariavelmente um sistema de intermediação de justiça. Toda fé política sustenta, muito sensatamente, que o único modo de se garantir e exercer a justiça é pela mediação de uma instituição; discordam entre si apenas a respeito de qual é a receita institucional correta. Para o socialista, o sistema é justo porque ninguém pode ficar rico; para o capitalista, o sistema é justo porque qualquer um pode enriquecer. Ambos os projetos, portanto, estão fundamentados no medo coletivo da injustiça (medo da injustiça social, para o socialismo, e medo da injustiça pessoal, para o capitalismo) e no desejo condicionado pelo que o sistema toma como admirável (em ambos os casos, a produção e o consumo).

Não é apenas anacrônico, portanto, afirmar que as generosidades de Atos 2 e 3 prefiguram o socialismo, ou apontar que não necessariamente anulam o capitalismo. O despojamento coletivo dos discípulos de Pentecostes não confirma um sistema político ou econômico, mas faz precisamente o contrário: anula o mérito de toda solução política e alça o desafio da convivência a um nível embaraçosamente mais exigente, elevado ao ponto de uma rigorosa insensatez. Numa palavra, inaugura o Reino de Deus, em que a justiça não é intermediada por uma instituição, mas por pessoas.

Jesus já havia demonstrado, em sua aventura na terra, um saudável desrespeito pelas soluções institucionais – mas agora seu projeto alcança, pela primeira vez, uma face verdadeiramente coletiva. Seus novos discípulos são suas testemunhas porque afirmam na vida real o que o rabi de Nazaré sempre sustentou e sempre fez.

Quando se despojam do que os afastava uns dos outros, os membros-fundadores da comunidade do Reino estão anunciando aos quatro ventos que não se deixarão conduzir pelo medo da injustiça (que os levava a acumular) e pelo desejo condicionado (que os levava a adquirir). Anunciam, a quem estiver ali para ver, a notícia de que no reino revelado por Jesus a justiça deve ser, e na verdade só pode ser, administrada de uma pessoa a outra, e não por intermédio de uma instituição. Proclamam na vida real o que Jesus sempre assegurou, que no reino da generosidade divina não é preciso temer coisa alguma. Se Deus sustenta o menor dos pardais, o homem não deixará de sustentar o homem.

O Reino de Deus representa o fim de todos os governos porque descerra um domínio em que não é preciso temer a injustiça – não porque o sistema conta com mecanismos artificiais e soluções corretivas para garanti-la, mas porque ninguém está sozinho. Neste reino, marginais leigos levantam e curam os caídos que rejeitaram os bondosos de plantão, e um menino sem nome blasfema ao sugerir que seu lanche poderá fazer diferença para alimentar uma multidão; seus habitantes vendem o que possuem a fim de suprir o que falta ao mais desconhecido dos necessitados – e cada um desses faz soprar, a seu modo e em sua imprudência, o vento inédito de um mundo possível em que ninguém será deixado para trás.

O reino dele não é deste mundo, mas arrepender-se é transformar este mundo no dele. É minerar riqueza espiritual no reino de Deus que está dentro de nós e tirá-la para fora na forma de evidência da ação de Deus no mundo real. No processo tornam-se obsoletas tanto a política quanto a religião – mas nem uma nem a outra, ficará logo claro, entregará os pontos sem resistir.

Um comentário:

Francijane Araújo disse...

pensamentos como este levaram muitos intelectuais a declarar como doentia a mente revolucionaria, não tenho duvida é mesmo doentia. a visão coletivista tem contrastes gritantes da visão de Jesus de Nazaré, a visão judaico/cristã. a começar pela encarnação do próprio Deus, com nome e sobrenome. Deus não nos vê como multidão. Considerou o dilema de uma mulher, alias, deixou a multidão para atender Jairo, Pedro, Maria, etc

Related Posts with Thumbnails