Paulo Brabo - Via Bacia das Almas
Vai ficando claro que esta é uma utopia que não descansará até alçar todos os degraus do sublime e do improvável (se é que existe diferença entre uma coisa e outra): ficamos sabendo logo em seguida que os integrantes da nova comunidade não apenas repartiam sem qualquer critério os seus bens uns com os outros, mas também vendiam suas propriedades e bens e os repartiam por todos, o que deve ser considerado muitas vezes mais insensato. Reter uma quantidade fixa de bens em regime comunal, por mais radical ou exigente que possa parecer, não é o mesmo que dissolver ou dilapidar todo um patrimônio conjunto, transformando-o em dinheiro e repartindo a liquidez resultante com todos – mesmo que seja “segundo a necessidade de cada um”.
O esvaziamento radical que, nesses termos tão descobertos, Jesus havia exigido (e sem sucesso!) de um único candidato a discípulo, é no novo cenário do espírito abraçado sem restrição e sem rancor por todos, com o consentimento ou sob a supervisão dos doze que serviam-lhes de exemplo. “Venda tudo que possui”, Jesus havia dito naquela ocasião, “e dê aos pobres, e venha ser meu discípulo”. E o que um não havia se rebaixado a fazer em privado, agora todos fazem em público.
O que está se materializando aqui é, naturalmente, o eco necessário e tardio dos ultimatos que Jesus apresentou às multidões – como, por exemplo, aquele tremendo registrado em Lucas 14.
Os evangelhos trabalham juntos para explicar que a relação de Jesus com as multidões era no mínimo ambígua. Por um lado, as pessoas despejavam-se de cidades e de distâncias para ouvi-lo e beneficiar-se dele; Quem não se despoja não tem os recursos necessários.por outro, Jesus as ensinava, alimentava e curava, mas muito declaradamente “não confiava nelas”.
A origem muito natural dessa desconfiança está em que, embora as multidões não se negassem a ouvir as insanas exigências que o Filho do Homem deitava diante de todos, um número muito menor – praticamente um punhado, uma dúzia, talvez setenta ou uns poucos mais – permitiram-se efetivamente transtornados e finalmente guiados por elas. Todos ouviam deleitados sobre as reviravoltas e escandalosas inversões do reino, mas poucos abraçavam a inclusividade do arrependimento. Muitos diziam “Senhor, Senhor”, mas poucos faziam o que ele estava dizendo. Muitos assistiam as suas aulas, mas poucos engajavam-se na sua reforma.
Por esses, que aumentavam continuamente o seu ibope mas observavam o reino de longe, o rabi de Nazaré não se deixava enganar. Não só isso; ele se esforçava constantemente para que eles mesmos não se deixassem enganar. Se Jesus volta tantas vezes ao assunto é porque era absolutamente necessário que seus seguidores nominais não passassem a se considerar, em sua posição de meros ouvintes, integrantes da verdadeira revolução.
Pois qual de vocês, querendo construir uma torre, não senta-se primeiro para calcular as despesas, a fim de ver se tem recursos para concluí-la? Para não acontecer que vendo-a inconclusa as pessoas comecem a zombar: “Esse homem começou a construir e agora não tem recursos para terminar”. Da mesma forma, todo aquele dentre vocês que não renuncia a tudo quanto possui não tem como ser meu discípulo.
Ou seja: multidão de fãs sem noção, baixem a bola e sentem aí para calcular os custos do discipulado. E é bom que estejam sentados quando o garçom trouxer a conta.
Diante de riscos tão acentuados e retornos tão transversais, Jesus toma o cuidado de não tirar em momento algum as cartas de cima da mesa. Vez após outra, parábola após parábola, ele vai pontuando que para experimentar o discipulado – isto é, para se enxergar o reino e colocar o pé no terreno virgem do fim do mundo – é preciso despojar-se de todas as coisas. Qualquer um que se desvia por qualquer razão desse formidável crivo não tem cacife para se engajar nessa obra. Melhor nem se envolver.
É essa a lei paradoxal da empreitada do reino: quem não se despoja de tudo que tem não tem os recursos necessários para empenhar-se nela.
O reino é um bem fabuloso que, para se ter, requer-se apenas nada se ter além do reino. Quem não se despoja por completo não tem os recursos necessários para adquirir o reino, justamente porque nada é necessário1. para adquirir o reino. Viver no reino é demonstrar isso, viver o reino é descobrir isso
É por isso que o rico não pode passar pelo buraco da agulha que é a entrada do reino: ele literalmente não tem como passar. Ou, melhor dizendo, ele tem os recursos para não passar. Para entrar, será necessário despojar-se.
Despojar-se é alçar-se literalmente à posição de não-condicionado – aquela vida de completa autodeterminação e completa identificação com o próximo que Jesus desempenhou e ofereceu.
Despojar-se equivale a derrubar Satanás do seu trono, porque representa deitar por terra o medo e o desejo, as algemas que permitimos que ele use para nos impedir de avançar e crescer. Despojar-se é abandonar, de modo muito literal, o medo de perder [as coisas] e o desejo de aferrar-se [as coisas]. É pisar o terrível terreno da liberdade incondicional. É conhecer o sopro do espírito que está finalmente livre para soprar onde quiser.
É por isso que os integrantes da comunidade do espírito acham importante seguir a lição do despojamento até sua aplicação mais crua e literal – vender tudo e tudo diluir entre os necessitados, – porque querem seguir Jesus e para o mesmo lugar. Se é que serão não-condicionados como ele foi, será necessário deixar para trás todas as cargas que os condicionam –Possuir é manter-se condicionado. e possuir, muito evidentemente, é deixar-se condicionar, porque o verdadeiro rico é aquele que não precisa de nada. Disso muitos ouvem falar, mas só o conhece o habitante do reino.
Aqueles de nós que habitam o reino e verdadeiramente o promovem são os que por um lado embrenharam-se no caminho do despojamento radical e, por outro, desenvolveram mecanismos literais para manterem-se o maior tempo possível nessa condição. Falo de gente como Gandhi, como Tolstói, como Madre Teresa, como São Francisco e como alguns amigos que tenho e dos quais você não vai ouvir falar, porque eles preferem assim.
Retenha em mente, portanto, essa única coisa: possuir é manter-se condicionado, e esta é uma regra sem exceção. Por isso, quando você pensar em grandes exemplos de vida ou quando quiser mencionar pessoas edificantes e cheias de luz, pode excluir sem medo da sua lista gente que trabalha para sustentar o conforto de automóveis e casas e computadores e telefones celulares e seguidores e internet banda larga. Quem permanece escravo dessas liberdades pode até falar dele com os lábios, mas não conhece com os olhos o não-condicionado.
Você deve, portanto, excluir da sua lista de notáveis o Paulo Brabo, o Diogo Mainardi, o Ricardo Gondim, o Lula, o Ed René Kivitz, o Barack Obama, o Rubem Alves, o Silas Malafaia e todos os nossos comparsas e antagonistas, porque permanecemos condicionados pela multidão de pequenas facilidades de que ainda não nos despojamos. Somos todos, luzes políticas e faladores públicos, meras distrações profissionais, operando a meio caminho entre o crime e o entretenimento. Nosso método é dar a impressão de que temos um plano e de que sabemos do que estamos falando, e enquanto nos dá ouvidos você mesmo vai adiando a loucura que seria saltar de cabeça no abismo do arrependimento e embrenhar-se na reforma interior e exterior que é também o fim do mundo. Da mesma forma, enquanto nós faladores tivermos em você uma audiência cativa nós mesmos permaneceremos adiando o temerário crescimento pessoal que com nossa voz fazemos você adiar – e nesse esforço conjunto, nessa sedução circular, vamos garantindo que nada de fato aconteça.
Nossa única chance, naturalmente, seria pôr de lado minuciosamente tudo – e isso não porque os pobres carecem dos bens e da atenção que poderíamos repartir entre eles, mas porque carecemos nós de encontrar a paz e a guerra, a vida e a morte passando pelo buraco da agulha que é a entrada do reino.
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