sábado, 19 de fevereiro de 2011

Pacientes com mal de chagas não conseguem remédio para o coração

O problema é que o governo só dá o remédio para chagas. Medicamento para o coração é difícil achar no posto de saúde.



Marcelo Canellas
Nazaré da Mata, PE
Casa de pau a pique ainda existe. Mal de chagas, também. E não só nos bolsões de pobreza. No Brasil, a DNDi, uma força-tarefa mundial para o desenvolvimento de medicamentos para doenças, já alcançou uma conquista. É o que mostram os repórteres Marcelo Canellas e Luiz Quilião na última reportagem da série Doença do Silêncio.
“Eu comecei a sentir com 33 anos de idade”, conta o aposentado Manoel Mariano do Nascimento. Médico nenhum descobria a causa dos desmaios misteriosos. Manoel ficou furioso. O aposentado lembra como cobrou os médicos: “Vocês são um bocado de burros. Vocês estudaram para quê? Eu preciso saber o que é que eu tenho. Diga logo que eu tenho câncer”.
Não era câncer. Manoel revela como descobriu a doença: “O senhor tem doença de chagas. Eu olhei bem assim e perguntei: ‘o que é isso’”?
O coração de Manoel já sofria de um dos principais efeitos da doença. “Perguntaram se eu queria operar ou morrer. Eu perguntei: ‘me operar como’? Disseram: ‘colocar um marcapasso, porque o seu batimento cardíaco está 29 por minuto’”.
Presidente da Associação dos Portadores de Doença de Chagas, Manoel conhece todo mundo que tem marcapasso em Pernambuco. Ele cita o nome das pessoas. Os voluntários da associação monitoram os casos suspeitos.
A agricultora Severina Maria da Silva limpa o retrato dos parentes que a doença levou e conta que perdeu o marido e pai de chagas. “Quando fazia uns três anos que eu era casada, ele morreu. Ninguém estava esperando. Eu sabia que ele estava doente, mas não esperava que ele fosse morrer assim. Quando eu vi, ele caiu assim. Caiu, e já estava pronto”.
É uma doença típica da pobreza, ligada às condições de vida da população, porque o barbeiro, o inseto transmissor do parasita Trypanosoma cruzi, que causa o mal de chagas, vive nas frestas das casas de pau a pique.
A aposentada Santina Rodrigues da Silva sabe que foi picada por um deles. “Nasci, me criei e me casei tudo em casa de taipa”, revela.
Chagas pode levar até 30 anos para se manifestar no organismo. Tem cura se for descoberta no início. Mas, depois que vira doença crônica, dá para tratar somente as complicações. O problema é que o governo só dá o remédio para chagas. Medicamento para o coração é difícil achar no posto de saúde.
“De vez em quando, uma caixa que a gente consegue e da mais barata. O mais caro a gente tem que comprar. Ou bem você compra remédio, ou bem se alimenta direito”, diz Maria Ribeiro da Silva, filha de Santina.
A escolha da aposentada Josefa Liberto foi a de comprar comida. Para o remédio, não dá. “Eu sinto o coração acelerado. De tempos em tempos, ele fica acelerado”, afirma. Ela ainda revela que não tem R$ 200 para pagar de remédio por mês e, por isso, não consegue se tratar.
O aposentado Manoel Mariano do Nascimento reconhece que não tem condições de prometer a Josefa que ela vai receber os remédios e se tratar sempre que precisar. “Eu não vou prometer uma coisa que eu não posso cumprir. A prevenção e os medicamentos são essenciais. Diante disso, só Deus ou a morte”, declara.
Sem dinheiro e sem remédio, Josefa apenas espera que nada de mal lhe aconteça.
Sem hospitais especializados, sem distribuição de medicamentos, sem nenhum tipo de atendimento médico específico para o mal de chagas, a alternativa oferecida aos doentes é o ônibus. Em Nazaré da Mata (PE), por exemplo, todos os dias, às 4h, a prefeitura leva os pacientes para o Recife. O jogo de empurra só vai acabar mesmo quando amanhecer.
O aposentado Valdeci Vicente de Melo enfrenta a jornada sempre que precisa atualizar um exame no Recife. A doença apareceu bem na fase mais produtiva da vida. Ele conta que está afastado do trabalho há dez anos.
Cada vez que viaja, Valdeci teme não chegar a tempo. “Mas se der um negócio, uma tontura ou um desmaio, tem que socorrer e trazer para aqui. Quando chegar aqui, já está morto. O coração não espera por tempo. É um relógio. É um relógio que para ligeiro”, ressalta.
O relógio de Genaro só não parou por que ele botou um marcapasso. “A parte elétrica do coração fica bloqueada e, com isso, o coração passa a trabalhar menos. Em alguns pacientes com a doença de chagas, em que o bloqueio é só no sistema elétrico, mas não há um envolvimento importante do músculo cardíaco, o implante do marcapasso prolonga a vida, além de melhorar bastante a qualidade de vida”, aponta o cardiologista Wilson de Oliveira Jr, dirige o Ambulatório de Chagas do Hospital Oswaldo Cruz.
Alguns pacientes têm que operar o esôfago, porque a doença de chagas também pode atacar o aparelho digestivo. O Sistema de Saúde paga caro para tentar remediar as consequências da enfermidade, quando poderia ter economizado antes. “Em cada US$ 1 que você investe em prevenção, você economizaria US$ 17”, afirma o cardiologista Wilson de Oliveira Jr.
Em 2006, o Brasil recebeu da Organização Pan Americana de Saúde o certificado de eliminação do Triatoma infestans, a principal espécie de barbeiro transmissor da doença. Mas para o Dr. Wilson, que dirige o Ambulatório de Chagas do Hospital Oswaldo Cruz, no Recife, é um erro acreditar que isso é suficiente. “O grande equívoco é que controle não é sinônimo de erradicação. Em nenhum momento, nós negamos o avanço, mas é necessário dizer que se não permanecer uma vigilância epidemiológica sustentada, com participação inclusive da comunidade, essa doença pode voltar”, alerta.
É muito importante a identificação e o tratamento logo no início, quando a doença tem cura. O desafio é encontrar a dosagem certa para crianças do único remédio eficiente contra chagas, descoberto há 35 anos.
“O benzonidazol disponível é um comprimido de 100 miligramas. É um comprimido que é impossível você imaginar que uma criança vai tomar. É um comprimido grande, duro”, critica Fabiana Piovesan Alves, gerente de estudo clínico da DNDi (sigla em inglês para Medicamentos para Doenças Negligenciadas).
A boa notícia é que o Brasil começa a fabricar um comprimido infantil que já está em fase de liberação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. “O objetivo final é justamente garantir a eficácia e o tempo de tratamento, porque o tempo de tratamento em chagas é um tempo bastante logo, cerca de 60 dias”, afirma Flávia Morais, coordenadora do Lafepe.
Diante de tão poucas novidades, não deixa de ser uma conquista. “É uma doença de pobre. Para eles, não dá lucro”, declara o aposentado Manoel Mariano do Nascimento.
Justamente por isso, cada dia de vida é uma vitória. Manoel revela que já colocou seis marcapassos. “A coisa mais importante no mundo é a vida. A vida não tem preço. As outras coisas são coisas banais. Casa, carro, tudo: são coisas banais. Mas a vida não. A vida é muito preciosa”, aposta.

Um comentário:

Anônimo disse...

Postagem deveras interessante neste espaço, assuntos como aqui vemos dignificam a quem analisar nesta página :)
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