Paulo Brabo - A Bacia das Almas 
Estou escrevendo um livro sobre a Reforma, ou melhor, sobre a  gênese (e o apocalipse) das ideias da Reforma, e no caminho (através do Depois da cristandade de Gianni Vattimo, a que cheguei através da mão do Alessandro Rocha) deparei-me com esta notável reflexão de Novalis,  repleta de apressados lirismos e rasgos verdadeiramente proféticos. Já  depositei algumas seleções aqui na Bacia, mas aproveito para deitar a  coisa toda onde poderá talvez desconcertar mais alguns. A necessária  advertência é que está escrito numa retórica de outro tempo, e o leitor  deve tentar não se deixar levar pela aparência reacionária da  argumentação dos três primeiros parágrafos. Qualquer texto que contenha a  frase “a verdadeira anarquia é o elemento criativo da religião” merece  minha completa atenção.
A cristandade, ou a Europa (1799)
Eram tempos belos e magníficos, aqueles em que a Europa era uma terra  cristã, quando uma única cristandade habitava este civilizado  continente, quando um único interesse comum unia as mais distantes  províncias deste vasto império espiritual. Sem grandes possessões  materiais, um único soberano governava e unificava as colossais forças  espirituais. Imediatamente abaixo dele postava-se uma enorme corporação,  aberta a todos, executando cada desejo seu e lutando zelosamente para  consolidar o seu benevolente poder. Cada membro desta sociedade era  honrado em todo lugar. Se  o povo comum buscava no seu clérigo conforto  ou segurança, proteção ou conselho, de bom grado provendo em retribuição  por suas diversas necessidades, ganhava também a proteção, o respeito e  a atenção de seus superiores. Todos viam esses eleitos, homens armados  de poderes miraculosos, como filhos do céu, cuja mera presença e afeição  dispensava toda sorte de bençãos. Uma fé como a das crianças unia o  povo ao ensino deles. Quão alegremente todos completavam seus labores  terrenos, sabendo que esses homens santos haviam-lhes salvaguardado a  vida futura, perdoado cada pecado, esclarecido e apagado cada ponto  negro desta vida. Eles eram os experimentados pilotos nos vastos mares  inexplorados, sob cuja proteção se podia zombar de todas as tempestades,  e nos quais se podia confiar para se alcançar e desembarcar em  segurança nas praias do mundo genuinamente paternal. Os apetites mais  vorazes e mais selvagens viam-se obrigados à ceder com honra e  obediência às suas palavras. Deles emanava paz.
Essa poderosa sociedade amante da paz ardentemente buscava fazer com  que todos os homens compartilhassem da beleza da sua fé, pelo que  enviavam discípulos a todas as partes do globo para pregar o evangelho e  tornar o reino do céu o único reino da terra. Com justiça, o sábio  cabeça da igreja resistia aos insolentes avanços dos poderes humanos e  prematuras descobertas no campo do conhecimento, que ocorriam em  prejuízo do senso do divino. Deste modo ele impediu que ousados  pensadores sustentassem publicamente que a terra é um planeta  insignificante, pois sabia muito bem que se as pessoas perdessem o  respeito por sua residência e lar terrenos perderiam também o respeito  por sua raça e lar celestiais; que prefeririam o conhecimento finito à  infinita fé, e se habituariam a desprezar tudo que é grande e  miraculoso, passando a considerá-lo o efeito sem vida de leis naturais.
Todos os homens sábios e respeitados da Europa se aglomeravam na  corte dele. Ali fluíam todos os tesouros; a Jerusalém destruída foi  vingada e Roma tornou-se ela mesma Jerusalém, a sacra residência do  governo divino sobre a terra. Príncipes submetiam suas disputas ao pai  da cristandade e de bom grado depositavam suas coroas e seu esplendor  aos pés dele; de fato, viam como seu privilégio a oportunidade de serem  membros dessa sagrada corporação, e de encerrarem o entardecer de suas  vidas em divina meditação dentro dos solitários muros dos claustros. As  poderosas aspirações de todos os poderes humanos, o harmonioso  desenvolvimento de todas as habilidades, as imensuráveis alturas  alcançadas por todos os indivíduos em todos os campos do conhecimento e  das artes, bem como o próspero tráfico de bens espirituais e materiais  dentro de toda a Europa e até às Índias distantes – tudo isso  demonstrava quão benéfico, quão adequado à natureza interior do homem,  eram este governo e esta organização.
Tais eram as principais características da beleza daqueles tempos  genuinamente católicos e genuinamente cristãos. Era um primeiro amor,  que morreu sob a pressão da vida comercial, cuja devoção foi reprimida  por preocupações egoístas, e cujo elo foi revelado mais tarde ser fraude  e engano, quando julgado a partir da experiência posterior. Deste modo  ele foi destruído por um grande número de europeus. Acompanhado por  destrutivas guerras, esse grande cisma interior foi um notável sinal do  quão prejudicial a cultura – ou pelo menos quão temporariamente  prejudicial a cultura de um certo nível – pode ser para o senso do  espiritual. Esse sentimento imortal não pode jamais ser destruído, porém  pode ser turvado, paralisado ou reprimido por outros sentimentos.
Uma prolongada associação de homens diminui suas inclinações para a  sua fé e para sua raça, e habitua-os a aplicar seus pensamentos e  esforços à tarefa de adquirir conforto material. As necessidades, bem  como as artes de satisfazê-las, tornam-se mais complexas; o ambicioso  requer tanto tempo para conhecer e ganhar habilidade nessas artes que  não tem mais tempo para a silenciosa reunião de ideias e a atenta  consideração do mundo interior. Se um conflito surge, seu interesse  presente lhe parece representar mais; desse modo fenecem as belas flores  de sua juventude, da fé e do amor, dando lugar aos frutos amargos do  conhecimento e da possessão. Aqui devemos lidar com tempos e períodos, e  não é por acaso a oscilação, a alternância entre tendências opostas,  essencial a eles? Não é verdade que há uma duração limitada que lhes é  própria, um crescimento e uma decadência que são parte da sua natureza? E  não é por acaso uma ressurreição, um rejuvenescimento numa nova forma  vital, o que deve esperar-se com certeza deles? Uma evolução progressiva  em constante expansão é a própria essência da história.
Aquilo que não atinge a perfeição agora irá fazê-lo numa tentativa  futura, ou numa tardia. Nada no alcance da história é transitório; de  inumeráveis transformações ela sempre procede novamente para formas cada  vez mais ricas. O cristianismo apareceu uma vez em pleno poder e  esplendor; suas ruínas, bem como a mera letra de sua lei, governaram com  crescentes impotência e infâmia até a inspiração de um novo mundo. Uma  inércia infinita jazia pesadamente sobre a complacente corporação do  clero. Esses estagnavam no sentimento de sua autoridade e de conforto  material, enquanto o laicado subtraía deles a tocha da experiência e do  aprendizado, superando-os a passos largos no caminho da educação.  Esquecendo sua verdadeira missão de serem os primeiros entre os homens  de espírito, conhecimento e educação, deixaram que seus desejos mais  baixos lhes subissem à cabeça. A banalidade e baixeza da sua atitude  tornou-se ainda mais ofensiva devido à particularidade de seu traje e de  seu chamado. Desta forma o respeito e a confiança, que são as bases  deste e de qualquer império, desmoronaram gradualmente, destruindo essa  corporação e solapando silenciosamente a verdadeira autoridade de Roma  muito antes da poderosa insurreição. Apenas medidas prudentes, e  portanto expedientes, mantiveram unido o cadáver da velha constituição e  preservaram-no de uma dissolução demasiadamente rápida. Entre essas  medidas estava, por exemplo, a abolição do direito de casamento aos  padres. Tal medida, tivesse sido aplicada na profissão similar dos  soldados, teria dado a ela uma formidável coerência e prolongado sua  existência. Porém nada mais natural que um ardente agitador se  levantasse para pregar rebelião aberta contra a letra despótica da  constituição anterior, e com maior sucesso por ser ele mesmo membro  daquela corporação.
Os insurgentes chamaram a si mesmos de protestantes, pois protestavam  solenemente contra qualquer pretensão de governo da consciência por uma  força aparentemente injusta e tirânica. Por um certo período eles  exigiram o direito, de que anteriormente haviam tacitamente aberto mão,  de investigar, determinar e escolher a própria religião. Estabeleceram  também uma série de princípios corretos, introduziram uma série de  coisas louváveis e aboliram uma série de estatutos corruptos. Porém  esqueceram as necessárias consequências de suas ações: separaram o  inseparável, dividiram a igreja indivisível e divorciaram-se impiamente  da união cristã universal, através da qual e apenas na qual um  renascimento genuíno e duradouro seria possível. Uma condição de  anarquia religiosa não deve ser mais do que transicional, pois permanece  urgente e válida a necessidade básica de que um número de pessoas  devote-se a essa vocação superior, e façam-se independentes do poder  secular com respeito a essas questões.
O estabelecimento de consistórios e a preservação de uma espécia de  clero não satisfizeram essa necessidade e não foram substituto  suficiente. Infelizmente os príncipes interviram nessa ruptura, e muitos  fizeram uso da disputa para consolidar e expandir sua receita e seu  poder soberano. Ficaram felizes em ver-se livres daquela influência  superior e tomaram os novos consistórios debaixo de sua direção e  proteção paterna. Mostraram-se zelosamente preocupados em impedir a  reunião completa das igrejas protestantes. Tendo a religião sido  sacrilegamente enclausurada nos limites do estado, deitava-se a fundação  para o gradual solapar do interesse religioso cosmopolitano. A religião  perdeu dessa forma sua enorme influência como pacificadora política, o  papel que lhe cabia como princípio unificador e característico do  cristianismo. A paz religiosa foi concluída a partir de princípios  completamente equivocados e sacrílegos, e pela continuação do assim  chamado protestantismo declarava-se algo completamente contraditório – a  saber, um governo permanentemente revolucionário.
O protestantismo, no entanto, não está baseado de modo algum nesse  conceito puro. Em geral Lutero tratou o cristianismo de maneira  arbitrária, entendeu erroneamente o seu espírito e introduziu uma nova  lei e uma nova religião, a saber, a autoridade universal da Bíblia.  Deste modo uma ciência estranha e terrena – a filologia – passou a  interferir com as questões religiosas, e sua corrosiva influência tem  sido inequívoca desde então. Do negro sentimento da falha de Lutero  surgiu que grande parte dos protestantes elevaram-no ao posto de  evangelista, tendo canonizado a sua tradução.
Essa decisão mostrou-se fatal para o sentimento religioso, visto que  nada destrói mais a sua sensibilidade do que a letra morta. Em outro  tempo a letra não poderia ter jamais se mostrado tão danosa, tendo em  vista a amplitude, a maleabilidade e a riqueza da fé católica, o caráter  esotérico da Bíblia e o sacro poder dos concílios e do papa. Porém  agora que esses antídotos haviam sido destruídos e a absoluta  popularidade da Bíblia afirmada, o limitado conteúdo da Bíblia e seu  sistema rudimentar e abstrato de religião tornaram-se mais claramente  opressivos, tornando infinitamente mais difícil para o Espírito Santo  exercer sua ação de avivamento, penetração e revelação.
Por conseguinte a história do protestantismo não tem mais a nos  mostrar esplêndidas revelações da esfera celestial. Apenas seu início  ardeu com um fogo passageiro do céu; pouco depois um fenecer do senso do  sagrado é aparente. O mundano havia saído por cima, e o sentimento pela  arte sofreu em simpatia pela religião. Com a Reforma o cristianismo  encontrava seu fim. A partir dali deixava de existir. Católicos e  protestantes postavam-se mais distantes uns dos outros, em seu conflito  sectário, do que de muçulmanos e pagãos. Os estados católicos  remanescentes continuaram a vegetar, não sem sentir vagamente a  influência corruptora de seus vizinhos estados protestantes. A nova  política surgiu durante esse tempo: poderosos estados individuais  buscando tomar posse da sé universal agora vaga, agora transformada num  trono…
A Reforma foi um sinal dos tempos. Mostrou-se significativa para toda  a Europa, mesmo tendo irrompido publicamente apenas na Alemanha livre.  As melhores mentes de todas as nações haviam maturado em segredo, e na  ilusória auto-confiança de sua missão rebelaram-se de modo  proporcionalmente destemido contra as antigas restrições. Na velha ordem  o intelectual havia sido instintivamente inimigo do clero. O terreno  intelectual e o clerical, uma vez divididos, tinham que lutar uma guerra  de extermínio, pois lutavam por uma única posição. Essa divisão  tornou-se cada vez mais proeminente, e os intelectuais ganharam mais  terreno à medida em que a Europa aproximava-se da era do aprendizado  triunfante, à medida em que a fé e o conhecimento viam-se forçadas a uma  oposição mais decisiva. Na fé via-se a fonte da estagnação universal, e  através de um conhecimento mais penetrante esperava-se destruí-la. Em  todo lugar o sentimento do sagrado sofreu várias perseguições por sua  natureza passada, sua personalidade temporal.
O resultado da maneira moderna de se pensar foi chamada de  “filosofia”, definida como qualquer coisa que se opusesse à velha ordem,  especialmente portanto para referir-se a qualquer capricho contra a  religião. O que era originalmente um ódio pessoal contra a fé católica  tornou-se gradualmente ódio contra a Bíblia, a fé cristã e finalmente  contra toda a religião. Não apenas isso: o ódio contra a religião  estendeu-se de modo muito natural e consistente a tudo que fosse objeto  de entusiasmo: aviltantes fantasia e sentimento, a moralidade e o amor  pela arte, o futuro e o passado. Essa nova filosofia colocava o homem  por necessidade no ápice da série de seres naturais, e transformava a  infinita música criativa do cosmos no estrépito uniforme de um  gigantesco moinho; um moinho ele mesmo movido e levado por uma corrente  de acaso sem arquiteto ou moleiro, um genuíno moto perpétuo: um moinho  que mói a si mesmo.
Um único entusiasmo foi generosamente deixado para a pobre raça  humana, e tornado indispensável para todos os interessados como  credencial de uma educação superior: o entusiasmo por essa filosofia  magnífica e esplêndida, em especial pelos seus sacerdotes e mentores. A  França foi particularmente afortunada em ser o berço e o lar desta nova  fé, montada às pressas a partir de pedaços de mero conhecimento. Por  mais infame que fosse a poesia para essa nova igreja, havia ainda nela  alguns poucos poetas, os quais apenas por efeito utilizavam ainda os  velhos ornamentos e luzes; ao fazê-lo, no entanto, corriam o risco de  incendiar o sistema do novo mundo com um fogo antigo. Seus membros mais  sagazes sabiam como jogar água fria sobre sua inspirada audiência.  Estavam constantemente preocupados em eliminar a poesia da natureza, da  terra, da alma humana e das ciências. Todo traço do sagrado devia ser  destruído, toda lembrança de feitos e pessoas nobres arruinado pela  sátira, e o mundo inteiro despido de qualquer ornamento pitoresco. Seu  tema favorito, devido a sua obediência e impudência matemática, era a  luz. Agradava-lhes que ela refratasse ao invés de brincar com as cores,  pelo que chamaram seu grande empreendimento de “Iluminismo”. A Alemanha  foi especialmente meticulosa com respeito a essa questão: a educação foi  reformada e a velha religião recebeu um significado novo, racional e  pragmático, purificado de tudo que fosse miraculoso e misterioso; toda a  erudição foi convocada a deixar de buscar qualquer refúgio na história,  que lutaram para enobrecer tornando-a um retrato doméstico e civil de  família e moralidade. Deus foi transformado num ocioso espectador da  grande drama em movimento encenado pelos intelectuais, que os poetas e  atores deveriam entreter e admirar no final.
E de fato, a gente comum foi iluminada com o prazer e educada a um  entusiasmo pela cultura. Nasceu então na Europa uma nova corporação, a  dos filantropos e popularizadores da iluminação. É uma pena que a  natureza tenha se mostrado tão maravilhosa e incompreensível, tão  poética e infinita, esquivando-se de todas as tentativas de se  modernizá-la. Se em algum lugar insinuava-se ainda a velha superstição  de um mundo sobrenatural levantava-se o alarme de todos os lados, e onde  fosse possível essa perigosa centelha era apagada pela filosofia e pelo  bom senso. Não obstante, a palavra preferida dos educados era  “tolerância”, especialmente na França, onde era sinônimo de filosofia.
A história da descrença moderna é extremamente notável, e é também a  chave para todos os monstruosos fenômenos da era contemporânea. Foi  apenas neste século, e em particular na segunda metade dele, que teve  início, alcançando em pouco tempo imensas dimensões e variedade. Uma  segunda reforma, mais adequada e mais abrangente, era inevitável.  Que a  hora da ressurreição chegou, e que precisamente os eventos que pareciam  impedir o seu ressurgimento e garantir o seu fim tornaram-se os sinais  propícios de sua regeneração – isso não pode ser negado pela mente  histórica.
A verdadeira anarquia é o elemento criativo da religião. Da  destruição de tudo que é positivo ela ergue sua gloriosa cabeça de  criadora de um novo mundo. Se nada o detém o homem sobe ao céu por suas  próprias forças. As faculdades superiores, germe original da  transformação da terra, libertam-se da mescla uniforme da mediocridade e  da completa dissolução de todos os talentos e poderes humanos. O  espírito de deus paira sobre as águas, e uma ilha celestial torna-se  visível sobre as ondas que recuam: o local de residência de um novo  homem, o nascedouro de vida eterna.
De modo calmo e imparcial o observador genuíno considera os novos  tempos revolucionários. E não é que a revolução para ele assemelha-se a  Sísifo? Ele agora chegou ao topo, só para ver sua carga tremenda rolando  novamente morro abaixo. Ela jamais permanecerá no cume a não ser que  uma atração em direção ao céu a mantenha equilibrada ali. Todos os  pilares de vocês são fracos demais se o estado retém sua tendência em  direção à terra. Porém liguem-no através de um anseio superior às  alturas do céu e deem a ele uma conexão com o cosmos, e obterão desse  modo uma fonte inesgotável, e todos os seus esforços serão ricamente  recompensados. Encaminho você à história. Vasculhe seu instrutivo  continuum em busca de ocasiões similares e aprenda a usar a varinha  mágica da analogia.
A França defende um protestantismo secular. Deveriam agora jesuítas  seculares erguerem-se de modo a renovar a história dos últimos séculos?  Deveria a Revolução permanecer francesa do mesmo modo que a Reforma foi  luterana? Deveria o protestantismo ser restabelecido – de modo contrário  à natureza – como governo revolucionário? Deveria a letra morta ser  substituída por outra letra morta? O que vocês buscam é a semente da  corrupção também na velha constituição, o velho espírito? E acreditam  conhecer uma constituição superior, um melhor espírito? Ah, que o  espírito dos espíritos os encha e os conduza para longe de sua tola  tentativa de moldar e dirigir a história da humanidade. A história não é  por acaso independente, autônoma, virtualmente infinitamente adorável e  profética? Estudá-la, segui-la, aprender com ela, acompanhar o ritmo  dela, fielmente seguir suas promessas e sugestões – isso a ninguém  ocorreu.
Na França muito tem sido feito em favor da religião, em não apenas  uma de suas incontáveis formas, ao se privá-la de seus direitos civis e  ao conceder-se a ela o mero direito de asilo. Em sua qualidade de órfão  estrangeiro e insignificante ela deverá em primeiro lugar reconquistar  os corações e ser amada em todo lugar antes de ser publicamente adorada e  combinada a coisas mundanas de modo a conceder conselho amigável ao  coração e ao espírito. A tentativa dessa grande máscara de ferro, que  respondia pelo nome de Robespierre, de tornar a religião o ponto central  e o coração da república permanece historicamente notável. Igualmente  admirável é a frieza com que a teofilantropia, o misticismo do novo  Iluminismo, tem sido recebido, isso para não mencionar as conquistas dos  jesuítas e a relação mais próxima entre o oriente e a nova política.
Com relação aos demais países europeus, com exceção da Alemanha,  pode-se profetizar que a paz trará uma vida religiosa mais elevada e  consumirá em breve todos os demais interesses mundanos. Na Alemanha, no  entanto, pode-se apontar com completa certeza os traços de um novo  mundo. A seu ritmo tranquilo mas certo a Alemanha avança adiante dos  demais países europeus. Enquanto os outros países estão preocupados com a  guerra, com a especulação e o partidarismo, a Alemanha diligentemente  se educa de modo a ser testemunha de uma era mais elevada da cultura; e  esse progresso deverá dar a ela grande superioridade sobre os demais  países com o passar do tempo. Nas ciências e nas artes percebe-se um  poderoso fermento. Uma quantidade infinita de espírito se desenvolve.  Novos e intocados veios estão sendo minerados. Nunca esteve a ciência em  mãos melhores, e nunca despertaram expectativas maiores. Os mais  variados aspectos das coisas estão sendo traçados; nada é deixado  intocado, sem ser julgado ou examinado. Todas as pedras são reviradas.  Os escritores tornam-se mais originais e mais poderosos; cada monumento  histórico, cada arte e cada ciência encontra novos amigos e são  abraçados e tornado mais frutíferos. Uma diversidade sem paralelo, uma  maravilhosa profundidade, um acabamento reluzente, um conhecimento amplo  e uma fantasia rica e poderosa se encontram em todo lugar e são com  frequência arrojadamente mescladas. Um poderosa intuição de disposição  criativa, de ausência de limites, de infinita diversidade, de sacra  originalidade e da onipotência da humanidade interior parece agitar-se  em todo lugar. Desperta do sonho matinal de uma infância desprotegida,  uma parte da raça humana exercita seus poderes sobre as víboras que  circundam seu berço e buscam privá-la do use de seus membros. Esses são  ainda indícios, desconexos e rudimentares, mas ao olhar histórico traem  uma individualidade universal, uma nova história, uma nova humanidade, o  mais doce abraço entre uma igreja jovem e surpresa e um deus amoroso,  para não mencionar o acolhimento interno de um novo messias em todas as  suas mil formas. Quem é que não sente esperança em meio a uma doce  vergonha? O recém-nascido será a imagem de seu pai, uma nova era de ouro  com infinitos olhos escuros, uma ocasião profética, miraculosa,  curativa e consoladora que gera vida eterna. Será uma grande era de  reconciliação, de um Salvador que, como verdadeiro gênio em sua própria  casa, em meio aos homens, será apenas crido e não visto. Ele será  vísivel àquele que crê de incontáveis maneiras: consumido como pão e  vinho, abraçado como a pessoa amada, respirado como o ar, ouvido como  palavra e canção, e acolhido como a morte no coração do corpo que se  apaga, com volúpia celeste e as dores mais agudas do amor.
Agora estamos postados em posição elevada o bastante para sorrir  afavelmente diante daqueles tempos antigos e reconhecer, naquelas  estranhas tolices, notáveis cristalizações de matéria histórica. Com  gratidão deveríamos apertar as mãos daqueles intelectuais e filósofos;  pois essa ilusão tinha de ser esgotada por amor à posteridade, e a visão  científica das coisas tinha de ser legitimada. Mais encantadora e  pitoresca, a poesia posta-se como uma ornamentada Índia em contraste com  os arcos frios, aguçados e mortos da razão acadêmica. Então, para que a  Índia pudesse ser cálida e magnífica no centro do nosso planeta, um mar  congelado e frio, penhascos desolados e névoa, em vez de um céu  estrelado e uma longa noite, tinham de tornar ambos os pólos locais  inóspitos. O significado mais profundo da mecânica perturbava esses  eremitas do deserto do entendimento. A empolgação de sua primeira  descoberta assoberbou-os, e a velha ordem vingou-se deles. Com  maravilhosa autonegação sacrificaram as coisas mais belas e sagradas do  mundo à sua autoconsciência. Foram os primeiros a reconhecer e proclamar  novamente a santidade da natureza, a infinitude da arte, a necessidade  do conhecimento, o respeito pelo secular e a onipresença do  verdadeiramente histórico. Colocaram um fim no elevado, mais  predominante e terrível reino dos fantasmas nos quais eles mesmos criam.
Apenas através de um conhecimento mais exato da religião seremos  capazes de julgar os terríveis produtos de um sono religioso, aqueles  sonhos e delírios do órgão sacro. Só desse modo será possível avaliar-se  adequadamente a importância de tal dádiva. Onde não há deuses governam  fantasmas. O período da gênese dos fantasmas europeus, que também acabam  explicando por completo a sua forma, é o período de transição entre a  mitologia grega e o cristianismo. Então venham, vocês filantropos e  enciclopedistas, venham ao pavilhão da paz e recebam o beijo da  fraternidade! Dispam seus véus cinzas e contemplem com amor renovado a  miraculosa magnificência da natureza, da história e da humanidade. Quero  conduzi-los a um irmão que lhes falará de modo a que seus corações se  abram novamente, de modo a que a intuição dormente de vocês, trajando um  novo corpo, volte a abraçar e reconhecer aquilo que você sentem –  aquilo que o seu  pesado intelecto terreno não é capaz de apreender.
Este irmão é o pulso de uma nova era. Quem já o sentiu não duvida da  sua chegada, e com um um doce orgulho em sua geração dá um passo para  longe da massa para unir-se ao novo grupo de discípulos. Ele fez um novo  véu para os santos, um véu que revela a figura celeste deles ao mesmo  tempo em que os esconde ainda mais castamente do que antes. O véu é para  o virgem o que o espírito é para o corpo: um órgão indispensável, cujas  dobras são as letras de sua doce anunciação. O jogo infinito dessas  dobras é uma música secreta, pois a linguagem é rígida e insolente para o  virgem, cujos lábios só se abrem para a canção. Para mim não se trata  de outra coisa que não a solene convocação para uma nova assembleia, o  poderoso bater de asas de um arauto angélico que passa. São as primeiras  dores do parto; que todos preparem-se para o nascimento.
A Física atingiu o seu ápice, e podemos agora mais facilmente  vistoriar a corporação científica. Em tempos recentes, quanto mais  sabemos a respeito das ciências mais aparente tem se tornado a pobreza  delas. A natureza começou a parecer árida e estéril e, uma vez  habituados ao esplendor de nossas descobertas, vimos mais claramente que  tratava-se meramente de luz emprestada, e que com os métodos e  ferramentas conhecidos não construiríamos ou encontraríamos o essencial,  ou aquilo que buscávamos.
Na ordem política, o velho e o novo lutam ferozmente. De um lado há a  veneração pelo velho mundo, a lealdade à constituição histórica, o  júbilo na obediência, o amor aos monumentos ancestrais e à gloriosa e  antiga família real. De outro, há o arrebatador sentimento de liberdade,  as expectativas ilimitadas por uma esfera de ação mais potente, o  prazer no que é novo e jovem, o contato informal entre todos os  concidadãos, o orgulho na universalidade humana, a alegria nos direitos  individuais e na propriedade da comunidade como um todo, um acentuado  senso cívico. E nenhum lado deveria esperar destruir o outro. Todas as  vitórias de conquista nada significam, pois o capitólio interior do  reino jaz além de muros terrenos e não pode ser invadido.
Quem sabe dizer se já houve guerra que baste, se a guerra chegará a  findar, a não ser que alguém segure o ramo de oliveira que só o poder  espiritual pode oferecer. O sangue continuará a correr na Europa até que  as nações reconheçam sua horrenda loucura. A guerra continuará a  levá-las em círculos até que, tocadas e acalmadas pela música sacra,  postem-se diante de seus altares abandonados em variegada multidão. 
Não é verdade que os governos controlam tudo dos homens, exceto seu  coração – seu órgão sagrado? Não tornam-se por acaso amigos, como  pessoas ao redor do caixão funerário do seu amado? Não esquecem toda  hostilidade quando a piedade divina lhes fala, e quando um único  infortúnio, um único lamento, um único sentimento enche-lhes de lágrimas  os olhos? Não são tomados de arrasto pelo sacrifício e cedem com ímpeto  todo-poderoso, e não anseiam tornar-se amigos e aliados?
Onde está a velha e cara crença no governo de Deus sobre a terra, que  pode apenas ela trazer redenção? Onde está aquela sagrada confiança  mútua entre os homens, aquela doce devoção nas efusões de uma mente  inspirada, aquele todo-abrangente espírito da cristandade?
O cristianismo tem três formas. A primeira é o elemento criativo da  religião, o júbilo em toda religião. Outra é a mediação em geral, a  crença na capacidade de tudo que é terreno de tornar-se pão e vinho da  vida eterna. Uma terceira é a crença no Cristo, em sua mãe, e nos  santos. Escolha a que quiser. Escolha todas as três. É indiferente: você  será então cristão, membro de uma única comunidade eterna, inefável e  feliz.
A velha fé católica, a última destas manifestações, era a encarnação  do cristianismo aplicado. Sua onipresença na vida, seu amor pela arte,  sua profunda humanidade, a santidade de seus matrimônios, seu senso  filantrópico de comunidade, seu júbilo na pobreza, obediência e lealdade  – tudo isso faz dela uma religião inequivocamente genuína, e contém as  características básicas de sua constituição. Ela está sendo purificada  pela correnteza do tempo, e em indivisível união com as duas outras  manifestações do cristianismo irá abençoar a terra.
Sua manifestação incidental está praticamente destruída. O papado jaz  na sepultura, e por uma segunda vez Roma tornou-se ruína. Não deveria o  protestantismo finalmente deixar de existir, abrindo caminho para uma  igreja mais duradoura? As demais partes do mundo aguardam a  reconciliação e a ressurreição da Europa a fim de juntar-se a ela de  modo que se tornem cidadãos conjuntos do reino do céu. Não deveria  voltar a haver na Europa mentes genuinamente sacras? Não deveriam todas  as mentes religiosas afins estarem cheias de anseio por verem o céu na  terra? Não deveriam reunir-se entusiasticamente para cantar um sacro  refrão?
O cristianismo deve mais uma vez tornar-se vivo e ativo, e mais uma  vez formar uma igreja visível que não leve em conta fronteiras  nacionais. Mais uma vez deve receber em seu seio todas as almas famintas  e tornar-se mediadora entre o velho e o novo mundo.
O cristianismo deve mais uma vez derramar sua cornucópia de bençãos  sobre as nações. Ele se erguerá novamente a partir de um venerável  concílio europeu, e a questão do avivamento religioso será perseguida em  conformidade com um abrangente plano divino. Ninguém voltará jamais a  protestar contra coerção cristã ou mundana, pois a essência da igreja  será genuína liberdade, e todas as reformas necessárias sob sua direção  serão conduzida na forma de de processos de estado pacíficos e formais.
Quando e quão logo? Isso não se deve perguntar. Tenha paciência. Virá  e deve vir, a era sagrada de paz eterna, na qual a nova Jerusalém será o  capitólio. Até então permaneçamos calmos e destemidos diante dos  perigos desta era. Companheiros da minha fé, proclamem em palavras e  atos a divina boa nova! Permaneçam fiéis à verdadeira e eterna fé até a  morte.
Georg Philipp Friedrich von Hardenberg (1772-1801)
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