segunda-feira, 4 de abril de 2011

Mal e mal

Paulo Brabo - A Bacia das Almas

A coisa ao mesmo tempo letal e redentora em ter escrito dois livros que acabaram nas estantes de Espiritualidade, Crescimento Espiritual e Vida Cristã de livrarias cristãs é ter adquirido no processo a liberdade de supor que os autores dos livros que ocupam essas estantes comigo sejam gente tão apadrinhada, egoísta, contraditória, vaidosa, inconsistente, indigna de confiança, confusa e desassossegada quanto eu mesmo. Ordinários, em todos os sentidos da palavra.

Não ignoro que essa é uma postura especialmente mesquinha, a de julgar os outros a partir das minhas próprias lacunas; ainda mais grave, talvez, seja o fato de que essa mesquinhez pode ser indicação de que publiquei esses livros com o propósito secreto de adquirir o direito a tomar essa conclusão: o prazer de deduzir, a partir da minha farsa individual, a depravação total da humanidade.

O fato é que não tenho direito de supor que os autores de livros cristãos1 sejam em geral menos bem-intencionados do que eu; mas não posso também deixar de conjecturar que tenham sido como eu seduzidos por nossos editores, por nossos amigos e pelo nosso ego para o curral da crença de que o que tínhamos a dizer poderia mostrar-se benéfico para alguém.

E isso, preciso repeti-lo continuamente também a mim, não é verdade. No que me diz respeito, os bastidores da porção benigna da literatura cristã funcionam da seguinte forma: na pior das hipóteses, como no meu caso, o autor supõe que se souber fingir-se de bonzinho talvez acabe inspirando à integridade algum leitor crédulo ou distraído; na melhor das hipóteses, e quem sabe aconteça com mais frequência, o autor crê que se contar ao leitor o quanto é [genuinamente, nesse caso] bonzinho será capaz de produzir o mesmo resultado.

E em verdade vos digo, essa desejada transição é um milagre que as mais bem sopradas das palavras não serão capazes de efetuar. Você já deve ter me ouvido dizendo isso de outras maneiras, mas estou condenado a repeti-lo porque esta é a minha profissão de fé, purificada pelo fogo do meu cinismo: a letra mata de tal forma que não é vaso adequado para conter o espírito que produz vida. Encontrar o reino de Deus é encontrar-se com o Real, e essa porta requer uma chave de carne e sangue. Só um vaso vital pode carregar a radioatividade curativa do Filho do Homem. Pode até ser o Paulo Brabo, mas será o cara grandão que mora sozinho numa casa de madeira. E devemos ser não menos que gratos, rendidos e maravilhados de que seja assim: que Jesus tenha ordenado o mundo desse modo formidável, em que os qualificados e oficialmente respeitáveis nada tem a oferecer.

Talvez seja para apaziguar essa culpa essencial, de ter acenado com as palavras de modo a produzir no leitor uma falsa expectativa, que os capítulos finais dos livros que publiquei digam essencialmente a mesma coisa: os livros não mudam ninguém. Até as letras sabem repetir: só a vida tem potencial para a abundância, e só a palavra encarnada é residência concebível para o espírito. Você pode até querer ser uma pessoa melhor, mas a mais piedosa das estantes não vai ajudá-lo nessa tarefa. As palavras mal e mal bastam para fazer essa confissão, e não espero delas mais do que isso.

Não espere mais delas você.

NOTAS
  1. Há já nessa concessão, obviamente, o germe de todo o meu argumento. Que ilusão levou-nos a admitir que dizer “livros cristãos” faz mais sentido do que dizer “liquidificadores cristãos” ou “rodovias cristãs”? Que demônio nos convenceu a conceber que possa haver algo “cristão” que não seja uma pessoa? []

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