sábado, 30 de abril de 2011

O porquê do fundamentalismo

Ricardo Gondim

Ao terminar o culto, notei um rapaz, aparentando não mais que 25 anos, entre os que desejavam conversar comigo. Trajava um terno escuro, gravata sóbria e camisa bem engomada. Era meio-dia. O calor insuportável dava uma sensação de desconforto só em vê-lo apertado sob tantas camadas. Ele queria conversar sobre teologia. A hora era imprópria e havia mais algumas pessoas pedindo atenção. Sugeri que me procurasse durante a semana para um bate-papo mais calmo. Dito e feito. Na quarta-feira à tarde, José Antônio (nome fictício) estava em minha sala, novamente trajado com seu paletó grafite.

Logo nas primeiras frases, ficou claro que ele não fazia perguntas. Pela entonação dos questionamentos, bastava trocar os pontos de interrogação por exclamação e eu era severamente exortado. Vez por outra colocava o dedo em riste e pontificava como se acabasse de levantar da cadeira de Moisés. Tive pena daquele rapaz, tão jovem e tão caduco. Não julgo suas verdades, apenas me inquieto com sua postura rancorosa, anacrônica e trancada ao diálogo.

Os estudiosos deste tempo são unânimes em afirmar que experimentamos o recrudescimento do fundamentalismo. Não trato o fundamentalismo como uma categoria teológica, mas como uma atitude comportamental. O mundo experimenta uma crescente animosidade nas discordâncias.

As pessoas se entrincheiram com seus argumentos, não ouvem o arrazoamento dos outros e, ao se sentirem ameaçadas, partem para algum tipo de violência. O fundamentalismo tem se mostrado exuberante na radicalização ideológica dos Estados Unidos, tanto da esquerda como da direita, no isolamento de facções islâmicas e nos preconceitos entre movimentos cristãos, no xenofobismo europeu e nos nacionalismos africanos.

O fundamentalismo não respeita fronteiras de qualquer espécie -- geográficas, cronológicas ou culturais. Um jovem, que ainda não amadureceu sua reflexão, pode ser mais intolerante que um idoso, já bem enraizado em suas convicções. Eu ouvia o José Antônio e pensava: “Este rapaz lê pouco e, quando o faz, nunca terá coragem de aprender com quem não tem a chancela de sua igreja”.

Os fundamentalismos não aceitam contribuição de quem não comunga com os mesmos signos, com os mesmos cacoetes de seu grupo. Os diferentes podem até tentar comunicar alguma verdade, mas serão rechaçados por não serem identificados como “um dos nossos”. Romancistas, músicos, poetas e místicos de outros arraiais estão impedidos de ajudar um fundamentalista a arejar sua mente.

Fundamentalistas desprezam conteúdos e se espantam com rótulos. Aliás, lideranças fundamentalistas adoram xingar com estereótipos. Etiquetam uma pessoa como herege para que seus argumentos fiquem sob judice antes de serem articulados. O pavor de deixar-se contaminar por um apóstata encerra qualquer diálogo.

José Antônio tentava me persuadir de que o futuro da fé cristã jaz no passado. “Temos que voltar”, repetiu várias vezes. Como eu sabia que qualquer iniciativa de estabelecer uma conversa seria frustrada, apenas pensei: “Mas, voltar ao quê?”. A idealização do passado é arma bastante usada por aqueles que enxergam a coragem de pensar fora da caixa como pecado mortal. Veneram teólogos do século 17 como autênticos instrumentos de Deus e consideram os atuais pretensiosos por desejarem articular teologia para sua geração. Mal sabem que muito do que se considera ortodoxo hoje, soou esquisito para alguém do passado.

Depois de quase cinquenta minutos de monólogo, antes que José Antônio tomasse fôlego, consegui dizer que Jesus Cristo foi relativista. Ele relativizou a lei em nome da misericórdia ao perdoar uma mulher apanhada em adultério; relativizou a tradição ao curar no sábado; relativizou sua própria proibição de alcançar os gentios ao atender ao pedido de uma mulher aflita devido à doença da filha. José Antônio arregalou os olhos quando eu disse que Jesus foi um vanguardista. Ele estava à frente do seu tempo quanto à valorização da mulher e o trato com a riqueza.

Minha cartada final, que escandalizou até os fios de cabelo de José Antônio, foi quando eu disse que nem ele nem eu podemos nos arvorar de ter toda a verdade. Jesus afirmou: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8.32). Porém, há pelo menos três verdades para conhecermos, todas inexauríveis: a pessoal, subjetiva, a externa, do mundo, e a de Deus, transcendente. Quem se aventurar a conhecer a si, o mundo que o rodeia e a Deus, deve saber que nunca chegará à sua meta.

Abracei afetuosamente José Antônio quando nos despedimos, mas temi por sua alma. Vi que ele corria o sério risco de perpetuar uma fé amarga, obtusa e, crescentemente, isolada. No escanteio e sem credibilidade, seu cristianismo parecerá com o sal que perdeu seu sabor. Torço para que a geração que me sucederá seja tão assustadoramente revolucionária como foi Jesus de Nazaré.

Soli Deo Gloria

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