sábado, 28 de maio de 2011

O último cristão


Escândalo. Insensatez. Vergonha.

Os primeiros caras a divulgar e propor o cristianismo ao mundo tem o mérito adicional de terem escolhido muito bem as palavras. Segundo o enfezado apóstolo Paulo, apegar-se à singularidade de um sujeito mortalmente pregado à cruz e inteiramente despregado das prioridades usuais do mundo é para o observador isento de fato escândalo, insensatez e vergonha – e nem teria como ser diferente.
Os últimos serão os primeiros.

É insensatez porque tanto a doutrina quanto o precedente de vida (e morte) do fundador ensinam que o sucesso se obtém no mais inequívoco fracasso e a grandeza na mais abjeta humilhação; é escândalo porque ele sustenta que a alma é sólida e a matéria rala, e que não faz portanto sentido o sujeito adquirir o mundo inteiro e ver a vida escorrer, sem consistência, na peneira final; é vergonha porque para beneficiar-se do pacote a pessoa tem de pagar o mico de reconhecer-se não melhor do que ninguém.

Ser cristão requer-se ver-se incessantemente no outro: olhar para fora de si mesmo e ver Deus pregado na cruz e o cachaceiro derrubado na rua e sacar que de alguma forma misteriosa você é agora eles; que a tragédia de um é a tragédia de todos, e entrou em ação um mistério tremendo de relacionamento, de favores devidos e de identidade; que o único jeito decente de viver é baixar a bola e salvar o que der da dignidade dos outros de forma a salvaguardar algo da sua. E da de Deus.

Essa percepção de uma glória pessoal que se esconde sob o manto da tragédia compartilhada (“ninguém tem amor maior do que dar a vida pelos seus amigos”, nas palavras de Jesus) foi, naturalmente, perdida ao longo dos séculos do cristianismo institucional. Escândalo, insensatez e vergonha foram devidamente sanitizados em prosperidade, ortodoxia e sucesso. A empatia e a preocupação generosa com o outro secaram-se em glorificação dos apetites de cada um.

Insensato é agora o cristão que não exige do Patrocinador sucesso financeiro, realização profissional, saúde, assistência dentária e tratamento de beleza.

Pelos critérios de Jesus, para quem os menores é que são grandes e os humildes os verdadeiramente gloriosos, o cristianismo evangélico contemporâneo atira no próprio pé na ilusão de que está mirando nas alturas. O evangelho revisto e atualizado rende-se à lógica inescapável do anúncio de página dupla: bem-aventurados os ricos, os saudáveis, os espertos, os bonitos, os inteligentes e os bem-sucedidos, porque são invejados por todos. Porque deles é a chave do modelo 2007 e o controle remoto do Sound System. Porque estão fazendo MBA. Porque tomam leite desnatado sem camisa olhando de sua janela envidraçada para uma praia deserta.

Está mais do que na hora de resgatar o escândalo, a insensatez e a vergonha que foram legitimamente e desde o princípio associados ao cristianismo. Quero adicionar portanto aos meus 10 motivos para não ser cristão este: ser cristão requer carregar nas costas dois milênios da má reputação de um cristianismo tosco, incompetente, incompleto e com demasiada freqüência nocivo.

O ensino de Jesus só permanece novo porque nunca foi tentado. Nos últimos mil e oitocentos anos, pelo que sabemos, esteve longe de ser colocado em prática com esse nome.

Esqueça as revelações do Evangelho de Judas: são as páginas de Mateus, Marcos, Lucas e João que contém material inédito. São elas que dão testemunho perturbador de uma radiante insensatez que não temos coragem de cometer, porque requeriria tudo de nós – o que é, naturalmente, insensato dar e pedir. Como o narrador de Borges, preferimos honrar um exemplo virtuoso com palavras a reconhecer que somos por demais covardes para nos rebaixarmos à glória.

Melhor seria portanto não manchar a reputação irretocável de Cristo com o nome de cristão. Ele merece esse nosso sacrifício. Você deveria talvez fazer como meu amigo inglês Julian, que é espiritual sem ser religioso; que confessa-se cristão platônico e assume em todo momento a conduta de Cristo. Ou como o Farah, que está praticamente muçulmano, tem a alma inesgotavelmente rica e o coração generoso e dá testemunho da graça. Como Gandhi, que recusou austeramente a etiqueta de cristão e levou terrivelmente a sério (e às últimas conseqüências) as palavras de Jesus.
Está na hora de resgatar o escândalo, a insensatez e a vergonha que foram desde o princípio associados ao cristianismo.

Uma deliberada e silenciosa desconversão em massa, pensando bem, talvez trouxesse finalmente toda a glória que o ensino, o exemplo e a obra de Jesus desconheceram nos últimos milênios. Permaneceríamos cristãos em segredo, a portas fechadas, lutando consistentemente, em absoluto sigilo e completa dedicação, pelo Nome que não ousamos macular ou pronunciar. No fracasso institucional e na crucificação ideológica do cristianismo talvez estejam a semente da sua ressurreição.

O último cristão pode muito bem ser o primeiro.

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