Destilado em tóneis de carvalho por Paulo Brabo
Não falta quem discorde da tese de Weber de que a teologia calvinista acabou precipitando inevitavelmente a ascensão do capitalismo. A dúvida parece estar em se a ética protestante ocasionou o capitalismo ou se meramente facilitou-o. No que me diz respeito já é suficientemente desconcertante que ela não o tenha evitado.
Mesmo quem desconfia das conclusões de Weber não tem como negar que a rápida expansão do comércio e a ascensão do industrialismo coincidiram precisamente com o incêndio revolucionário da Reforma Protestante. Para o bem ou para o mal de sua reputação, a trajetória do cristianismo evangélico/protestante foi desde o princípio associada a uma postura agressivamente mercantilista, e o sucesso histórico dessa conjunção protestantismo/capitalismo é espetacularmente epitomizado nos nossos dias pelos Estados Unidos.
A expansão do comércio e a ascensão do industrialismo coincidiram com a Reforma Protestante.
Assim que surgiram em cena, na verdade, os protestantes roubaram do o mundo católico o monopólio da transação comercial e do fluxo de riquezas. Os agilíssimos holandeses, com o sucesso enxuto de suas gêmeas Companhias das Índias (Orientais e Ocidentais), desbancaram com facilidade os católicos portugueses – sendo que Portugal é que havia inaugurado e colocado em funcionamento a primeira rede comercial verdadeiramente internacional, com ramificações em todos os continentes.
A ascensão dos holandeses foi a primeira manifestação inequívoca de uma tendência que não seria mais revertida. A partir daquele momentos os países católicos, que haviam sido tradicionalmente ricos e pregadores da pobreza, tornaram-se tradicionalmente pobres e à margem da riqueza. Para ser realmente rico e desfrutar do grosso da riqueza tornou-se necessário, mais ou menos como nos nossos dias, nascer ou transferir-se para um país de tradição ou colonização protestante.
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Levada às últimas conseqüências, a visão de mundo protestante/capitalista gerou o nosso mundo e seu exigente culto da performance: a glorificação final do sucesso e do desempenho. Porque, como vivo dizendo, o capitalismo é religião; seu deus, ao contrário do que se pensa, não é o dinheiro, mas a performance.
Resta-nos pouca moral, mas o que nossa ética de fato cultua é o talento e o empreendorismo. Os heróis e santos contemporâneos são inequivocamente os vencedores, os talentosos, os empreendedores, os famosos, os bem-sucedidos. Esses, no nosso livrinho, é que são gente edificante, de valor, a ser admirada, seguida e – se tudo der certo – superada. O que temos no fim das contas não nos satisfaz, porque medimos nossa própria felicidade pela proporção em que nos conformamos aos padrões e precedentes estabelecidos pelos mais tecnicamente bem-sucedidos que nós.
Nossa teologia é o liberalismo econômico, nosso deus a performance.
É na verdade apenas essa crença no mérito inerente do desempenho que nos faz posicionar contra pecados modernos como a corrupção. O problema da corrupção, por essa nossa visão de mundo, é que ela impede o livre curso e a supremacia da performance – quando cremos que a performance é a verdadeira medida do valor. A corrupção nos parece ruim porque não permite que os verdadeiramente talentosos e esforçados sejam recompensados. E que os talentosos e esforçados devem ser recompensados e os incompetentes e preguiçosos punidos, é inquestionado item de fé da nossa religião.
Nossa teologia é o liberalismo econômico, nosso deus a performance.
Nosso panteão é por essa razão povoado por gente admirável como Ayrton Senna, Paul McCartney, Steve Jobs, George Clooney e Bill Gates – gente que se define pela naturalidade com que palmilha os átrios do talento e do empreendedorismo no templo do sucesso.
Naturalmente que nossa idolatria da performance é, por necessidade, contraditória e distorcida. Na mesma medida em que nos prostramos diante de santos contemporâneos como Senna, nos deleitamos na desconstrução pública de outros de nossos ícones. Acompanhamos com delícia e horror o espetáculo da auto-destruição de Michael Jackson ou a infâmia do mais recente ídolo do rock encontrado morto e drogrado e nu (não necessariamente nessa ordem) em sua banheira. Torcemos pela pobrezinha do Big Brother, e no momento seguinte vemos com um misto de inveja e indignação sua decisão de posar para a Playboy. Intuímos, no entanto, que faz tudo parte do espetáculo e que toda religião tem seus sacrifícios e vítimas.
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O paradoxal está em observar que a origem do culto contemporâneo da performance pode ser traçada com grande acerto até a teologia da Reforma. É paradoxal porque os reformadores definiram-se, originalmente, por recuperarem um aspecto vital do Novo Testamento que os católicos haviam perdido de vista: o conceito radical de graça – conceito que, em sua acepção original, não poderia ser mais avesso a deformidades como o culto da performance.
A graça é tão difícil de definir quanto difícil de acreditar. É por certo um monstruoso escândalo à religião e à moral, porque sustenta, basicamente, que Deus não acolhe as pessoas pela consistência do seu desempenho religioso, ético, social ou profissional, mas unicamente pela sua graça – seu próprio cavalheirismo, graciosidade e inclinação em perdoar. Segundo a visão de mundo do Novo Testamento, é apenas devido a essa postura graciosa de Deus que gente sem qualquer mérito como nós mesmos e o vil ladrão crucificado ao lado de Jesus pode ser acolhida no Reino sem nenhum trâmite adicional.
A boa nova da graça explica que Deus não escolhe escolher pessoas pelo seu desempenho admirável, porque do contrário não teria ninguém para escolher. Admirável é Deus, que ao contrário de nós acolhe e aceita as pessoas sem critério algum. Para o indivíduo a graça é liberadora porque liberta da escravidão do desempenho; ela esclarece que vale tanto controlar o tráfego aéreo de uma grande cidade quanto passar a tarde aquecendo um gatinho entre as mãos.
A graça é apavorantemente inclusiva e deve ser manipulada com horror porque anula o mérito de todo sistema religioso; a graça torna inteiramente contraproducente, insensata e obsoleta a noção de religião como esforço ritual de religar o homem a Deus. O cristianismo, conforme exposto no Novo Testamento, estabelece tanto o Reino de Deus quanto o fim da religião – eventos que devem ser entendidos como uma mesma e formidável coisa.
Notáveis, para Jesus, são os que vivem deliberadamente à margem do culto da performance.
O ensino de Jesus a respeito do Reino de Deus – a respeito da graça na vida real – é, fundamentalmente, uma desconstrução das nossas idéias preconcebidas sobre os méritos inerentes da performance. Na visão revolucionária de Jesus, felizes são os desventurados, os em aperto, os endividados, os amargurados de espírito, os perseguidos, os incompreendidos, os rebeldes, os esquecidos. Segundo esse ensino, não há nada de inerentemente notável ou meritório no empreendedorismo ou na performance; pelo contrário, o bem-sucedido está em desvantagem porque do seu posto privilegiado é mais fácil perder de vista o Reino de Deus – e nada há de admirável ou desejável nessa perspectiva.
Notáveis, para Jesus, são os que não estão nem aí para o culto da performance; que vivem deliberadamente à margem dos valores do mundo e não servem às riquezas porque querem servir a Deus; que não andam ansiosos com o dia de amanhã porque crêem surpreendentemente que a vida é mais do que o alimento, o corpo mais do que as vestes e a casa mais do que o Sound System: os tolos, os imprudentes, os despreparados, os marginais, os insensatos, os pacificadores, os que não se destacam em nada, os confusos, os destrambelhados, os altruístas, os medíocres, os fracos.
Todos, talvez. Você, certamente. Eu, em particular.
O culto da performance é tão universal que requer cuidadosa e contínua desconstrução. Todos que temos acesso à internet e sabemos ler e escrever estamos por certo até o pescoço mergulhados nele. De fato cremos que o Paulo Brabo é admirável porque usa palavras que a gente não espera, faz desenhos engraçadinhos para o HSBC e é certamente bem pago por isso; de fato cremos que o notável merece mais deferência do que o cobrador do ônibus ou o estagiário da reprografia. Sem contar breves intervalos de lucidez, eu e você de fato acreditamos nisso – porque vivemos sob a sombra onipresente do deus da performance. De fato nos dobramos a esse deus e o cultuamos; de fato ajoelhamo-nos diante do seu altar todos os dias e entoamos sentidos louvores e prestamos exigentíssimo sacrifício.
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