quarta-feira, 20 de julho de 2011

O credo narrativo dos judeus

Paulo Brabo - A Bacia das Almas

No princípio eram os judeus. Isso foi antes dos cristãos.

Outro modo de dizer a mesma coisa é lembrando que antes da teologia havia a narrativa.

Os cristãos, certamente sob a influência do pensamento [circular] greco-romano, aprenderam logo a expressar e compreender a sua fé sob a forma de conceitos e abstrações: idéias como salvação, remissão, morte substitutiva, eleição, trindade, onisciência, justificação e predestinação; coisas que habitam uma dimensão paralela fora do tempo e da experiência do dia-a-dia.

Menos ambiciosos e certamente mais coerentes com a tradição bíblica, os judeus desde o começo (e até os nossos dias) entenderam a sua vocação de um ponto de vista narrativo. O que os judeus sabem é que fazem parte de uma história singular e é isso que os define e lhes basta. Não há espaço para teologia porque não há simplesmente necessidade dela.

Esse modo linear de ver o mundo, como uma narrativa que progride de um ponto a outro sob a direção de Deus, era tremendamente inusitado no cenário em que surgiu há cerca de quatro mil anos – época em que o que predominava eram os ritos circulares. A singularidade dessa consciência histórica sustentou a sobrevivência do judaísmo por milhares de anos diante da mais selvagem competição de religiões alternativas, inclusive por parte do cristianismo. A visão de mundo linear seria silencioso gatilho, séculos depois, de escolas de pensamento como o positivismo (que abriu mão da condução de Deus mas não do otimismo com relação à trajetória da flecha da história, que, cria-se, acabaria atingindo seu alvo glorioso).

A diferença de visão de mundo entre judeus e cristãos fica mais espetacularmente evidente quando se compara o credo de um com o de outro. A profissão de fé judaica, a ser repetida anualmente pelo adorador quando trazia ao santuário os primeiros frutos da colheita, encontra-se no trecho entre o quinto e o décimo verso do vigésimo-sexto capítulo do livro de Deuteronômio. E diz o seguinte:

Arameu prestes a perecer foi meu pai, e desceu para o Egito, e ali viveu como estrangeiro com pouca gente; e ali veio a ser nação grande, forte e numerosa. Mas os egípcios nos maltrataram, e afligiram, e nos impuseram dura servidão. Clamamos ao SENHOR, Deus de nossos pais; e o SENHOR ouviu a nossa voz e atentou para a nossa angústia, para o nosso trabalho e para a nossa opressão; e o SENHOR nos tirou do Egito com poderosa mão, e com braço estendido, e com grande espanto, e com sinais, e com milagres; e nos trouxe a este lugar e nos deu esta terra, terra que mana leite e mel. Eis que, agora, trago as primícias dos frutos da terra que tu, ó SENHOR, me deste.

Entre outras coisas, essa liturgia evidencia como a religião judaica transformou um evento eminentemente circular, a celebração anual da colheita, num momento que celebrava uma cosmovisão linear – Deus está envolvido nos eventos da vida do seu povo – através da rememoração da primordial história do Êxodo.

O que acho especialmente notável nessa confissão de fé é o fato dela ser totalmente narrativa; interpretativa por certo e talvez tendenciosa, mas inteiramente livre de abstrações e de necessidades teológicas. O adorador reconhece a mão de Deus na história do seu povo e na sua própria, e é grato por ela. Ponto final. Nenhuma tentativa de explicar a natureza de Deus ou destrinchar o seu plano. Nenhuma ambição de expor o mecanismo do universo ou da salvação. Compare com o credo dos apóstolos:

Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra; e em Jesus Cristo um só seu Filho, Nosso Senhor: o qual foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu aos infernos, ao terceiro dia ressurgiu dos mortos, subiu aos céus, está sentado à mão direita de Deus Pai Todo-Poderoso, de onde há de vir a julgar os vivos e mortos; creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na comunhão dos Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna. Amém.

Apesar do cerne narrativo que mantém o cristianismo na estatura linear, cravando Jesus num momento específico da história, o credo apostólico é um campo minado: cuidadosíssimo jogo de palavras em que cada termo inocente remete a um complexo conceito teológico correspondente. Algumas das expressões e conceitos do credo que apontam para seus próprios tratados de teologia:

Deus Pai

Deus Todo-Poderoso

Criador do céu e da terra

Jesus Cristo um só

Jesus Cristo seu Filho

Jesus Nosso Senhor

concebido pelo poder do Espírito Santo

Maria Virgem

desceu aos infernos

está sentado à mão direita de Deus

julgar os vivos e mortos

Espírito Santo

Santa Igreja

Igreja Católica

comunhão dos Santos

remissão dos pecados

ressurreição da carne

vida eterna

Isso, naturalmente, em poderoso contraste com o caráter límpido da profissão de fé de Deuteronômio, que por ser narrativa – uma história – pode ser lido e assimilado de imediato por qualquer um.

Como resultado da obsessão dos cristãos com abstrações e filigranas teológicas, prefiguradas no credo mas desenvolvidas à exaustão nos séculos seguintes, o cristianismo tornou-se religião essencialmente menos linear – mais circular, etérea e teórica – do que o judaísmo.

O judeu, em seu credo, recorda o que Deus fez na história e retraça a atividade divina do nascimento do seu povo até o preciso momento presente e sua precisa benção. O cristão, no seu, estabelece distinções e categorias que pressupõe fundamentais, define termos e parece crer que o que caracteriza sua fé pessoal está na sua capacidade de elencar e abraçar uma série precisa de crenças corretas.

Jesus, que (judeu como era) se deslocava no terreno da vida real, da necessidade do momento e do poder evocativo da narrativa, ergueria por certo uma sobrancelha intrigada.

Ou duas.

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