quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A aplicação dos méritos

Paulo Brabo

Uma das coisas que separou católicos de protestantes desde o início é que os católicos têm um complexo sistema teológico e litúrgico construído ao redor da questão de mérito pessoal, enquanto os protestantes rejeitam a ideia por completo. Para um católico, o mérito é um lastro de merecimento que o cristão vai angariando através da acumulação de sacrifícios, de orações, de esmolas, de abstinências e de atos de caridade. Esse depósito espiritual pode ser contabilizado, acumulado, armazenado e eventualmente aplicado; é pessoal, mas transferível.

Este é um componente fundamental da noção católica de purgatório: a ideia de que os méritos dos cristãos vivos podem ser aplicados na compensação dos pecados não ressarcidos dos cristãos mortos, de modo a acelerar a sua entrada no Paraíso. Isso se faz oferecendo-se missas, ofertas e orações – não aos mortos, mas em favor deles.

Essa aplicação dos méritos é a transação que faz a fila do purgatório andar. Se não contarem com a intervenção indenizadora dos vivos, as almas do purgatório terão de purgar suas dívidas através de seus próprios sofrimentos, processo que é tão dolorido quanto demorado. Nessas horas vale mais ter um amigo na terra do que um no céu. Santa Teresa de Ávila1:

Recebi a notícia da morte de um religioso que havia sido padre provincial naquela província, mais tarde também em outra. Embora esse homem fosse louvável por muitas virtudes, fiquei apreensiva pela salvação da sua alma, pois ele havia sido Superior pelo espaço de vinte anos, e sempre temo muito pelos encarregados com o cuidado de almas. Muito aflita, fui até um oratório, onde supliquei que nosso Divino Senhor aplicasse em favor desse religioso o pouco bem que eu havia praticado durante a minha vida, suprindo o restante por seus infinitos méritos, a fim de que essa alma pudesse ser liberta do purgatório. Enquanto buscava essa graça com todo o fervor de que era capaz vi à minha direita essa alma surgir das profundezas da terra e ascender ao céu num arrebatamento de júbilo.

Tirando de lado por um momento a própria ideia de purgatório, que requer tratamento mais generoso do que o que podemos dar aqui, para nós de herança protestante parece haver algo de inerentemente perverso e inaceitável na lógica do acúmulo e da aplicação de méritos pessoais. Algo de, para dizer o mínimo, pouco neo-testamentário. Então o Novo Testamento não ensina que não há um justo sequer? Não ensina que as obras são mortas, inteiramente incapazes de produzir qualquer crédito em nosso favor? Não ensina que o único mérito pelo qual acessamos a salvação é o de Jesus, creditado em nosso favor mediante a fé nele? Não foi essa própria sacada, a da salvação pela fé e pela graça, que impulsionou a Reforma?

Não há aqui espaço para retraçar de que modo a igreja católica desenvolveu a sua teologia do mérito, ou de que modo a Reforma a demoliu. O certo é que essas duas ortodoxias produziram culturas e visões de mundo muito diversas.

Do nosso lado, a ênfase da Reforma na salvação pela graça acabou meio que banindo as boas obras do ideário protestante. Lembramos constantemente que “pela graça sois salvos, por meio da fé; isto não vem das obras, para que ninguém se glorie”, mas esquecemos com facilidade que o verso seguinte explica que “fomos criados para boas obras, as quais Deus preparou de antemão para que andássemos nelas”. Criados para as boas obras talvez nos pareça exigente demais; por certo nos parece legalista demais. Preferimos parar em “salvos por meio da fé”.

A teologia reformada, que gerou a seu modo protestantes e evangélicos, deixou-nos como herança a constrangedora hesitação que temos diante de fazer a coisa certa. Não queremos usurpar em nada a divina primazia nessa área, pelo que tomamos a humilde resolução de sequer desejar para nós mesmos uma bondade ativa e positiva. Nos casos mais extremos, a mera possibilidade de fazer atos meritórios nos causa repulsa e indignação. Como estamos convictos de que nada há de verdadeiramente meritório nas boas obras, fazer o bem não apenas nos interessa: em certo sentido enxergamos a coisa como verdadeira tentação.

Historicamente, esse banimento teológico da generosidade gerou a proverbial vacilação calvinista em ajudar os pobres e envolver-se em projetos assistenciais – tarefas que preferimos deixar a católicos que não sabem o mal que estão fazendo. Não é de admirar, diante desse cenário, que o reformado sinta-se teologicamente constrangido a permanecer politicamente de direita. Qualquer tentativa de mudar o mundo pela via das boas obras e da distribuição de renda é interpretada como usurpação de uma bondade e de um mérito que cabem apenas a Deus. Quem somos nós, meros humanos e pecadores, para nos arvorarmos a fazer a coisa certa?

Essa postura, ao mesmo tempo, não é mera curiosidade histórica. Há nos nossos dias pensadores reformados que defendem seriamente a tese de que a generosidade para com os pobres, quer exercida em nível pessoal ou institucional, representa na realidade uma perversa usurpação da autoridade divina. Nenhum rico deve sentir-se culpado pela sua opulência ou constrangido a dividi-la, porque foi a divina soberania quem decidiu em favor do rico e contra o pobre. Não devemos absolutamente deixar que a tentação da generosidade nos leve a desafiar ou alterar a justa ordem daquilo que Deus predeterminou.

Evangélicos e pentecostais, que são em geral menos ricos do que os reformados e não podem contar com o refrigério econômico de sua teologia, preferem investir o dinheiro que lhes resta em campanhas institucionais de prosperidade – enchendo o bolso de pastores que lhes oferecem, incessantemente, a promessa de ser tornarem tão ricos e bem sucedidos quanto sonham.

Em resumo, as chances de que protestantes e evangélicos sejam apanhados fazendo alguma obra meritória são pequenas. A bondade cristã é um serviço sujo que, se alguém tem de fazer, que sejam em sua cegueira e idolatria os católicos.

Por outro lado, apesar de nossa hesitação ideológica em angariar méritos pela acumulação de boas obras, a verdade é estamos longe de rejeitar a prática da aplicação de méritos em favor de uma causa específica.

A primeira diferença está em que, ao contrário de Teresa de Ávila e dos católicos em geral, os créditos que pedimos que Deus aplique para a realização de nossas súplicas não são os que nós mesmos acumulamos (porque, como vimos, não nos rebaixaríamos a tanto), mas os de Jesus. A mecânica subjacente é a mesma da oração de Teresa, mas não requer esforço nenhum de nossa parte. Quando a questão é mérito, com Jesus não dá pra competir, por isso decidimos nem tentar.

A segunda diferença (e esta talvez seja ainda mais reveladora) está em que Teresa pedia em favor de outra pessoa, alguém que ela cria estar precisando de mais auxílio do que ela mesma – e nós em geral suplicamos em favor de nós mesmos e de nossos próprios interesses. Nossas orações são saques que fazemos de uma conta celestial com fundos inesgotáveis (quem ousaria encontrar um fim para os méritos do Filho!), e esses cheques saem mundo afora, milhões deles, todos assinados em nome de Jesus. O curioso é que, embora creiamos ter toda essa formidável riqueza a nosso dispor, é muito raramente que nos ocorre pedir a Deus que aplique esses recursos em favor dos outros. Que Deus não esqueça de proteger a minha casa, de abençoar a minha família, de dar a mim um bom emprego, de conservar-me com saúde, de conceder-me prosperidade e de aumentar a minha fé.

Se é tão raro que peçamos a Deus em favor dos outros também é porque, no mero ato de enumerar as necessidades dos outros correríamos o risco de trazer ao nível da consciência aquilo que nós mesmos poderíamos fazer por eles; poderíamos nos ver até mesmo tentados a cometer um ato meritório ou dois, e Deus nos livre de sujar as mãos com a virtude. Queremos manter a nossa integridade.

Os católicos, portanto, ousam pedir a Deus em favor dos outros com o lastro de méritos que eles mesmos acumularam. Mais humildes e mais cristãos, preferimos pedir a Deus em nosso próprio favor com o lastro do mérito dos outros. Quem poderia nos condenar?

Não ousamos sequer acompanhar a nossa súplica de uma promessa, como por vezes fazem os católicos – porque, veja bem, fazer o bem em reposta à bondade comprovada de Deus seria muita arrogância da nossa parte.



NOTAS
Citada por F. X. Schouppe em seu Purgatório. [↩]

Fonte:
http://www.baciadasalmas.com/2011/a-aplicacao-dos-meritos/

Um comentário:

Paula de kassia disse...

Graça e paz Percorri o blog de vcs e tenho que lhes dar parabéns os post's são realmente edificantes
conheçam o nosso trabalho: http://instrumentosdedeusemmissoes.blogspot.com/ ficaremos honrados com a visita Abrç:)

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