segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A luta dos séculos


Lutando pelos direitos de exclusividade do cristianismo restam no Ocidente duas facções mais ou menos antagônicas, representadas de um lado pelo catolicismo e de outro pelas religiões protestantes/evangélicas.

Ignoram-no em grante parte os seus partidários, mas as características distintivas de ambos os grupos são herança do momento histórico em que nasceu cada um dos movimentos. Católicos e protestantes encontram-se em campos opostos menos devido a uma interpretação incompatível do mesmo texto ou mensagem sagrada, mas porque suas religiões representam heranças culturais e visões de mundo separadas por mais de mil anos. A lacuna entre catolicismo e protestantismo e a conseqüente dificuldade de diálogo entre ambos é representação rigorosa da distância entre dois momentos da história – a singularidade do Império Romano e os primeiros passos do capitalismo na Europa.

Separa esse preciso intervalo o Mistério católico do Utilitarismo protestante.
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O catolicismo e os Mistérios

Entro numa igreja católica e tudo que encontro aqui – o vasto silêncio, os espaços místicos, o cheiro de incenso, os iminentes sacramentos e a chama das velas – é reflexo das práticas e da visão de mundo das religiões de mistério do Império Romano.

Mil anos antes que o cristianismo começasse a se propagar de seu berço em Jerusalém, outra importação oriental já se alastrava com notável sucesso pelo território do Império, derrubando na prática a primazia da religião estatal dos deuses do Olimpo e divindades residenciais.

Essas novas crenças concorrentes, embora apresentassem tremenda diversidade de caráter e origem (havia os órficos, os orgiásticos de Cabiri, os herméticos; os que se dobravam à Grande Mãe, aos egípcios Ísis e Serápis, ao Mitra persa) tinham em comum que sua verdadeira natureza e simbolismos essenciais eram revelados apenas aos iniciados (sendo o termo grego “mysteria” derivado de “myein”: submeter a iniciação). Mereceram todas por essa razão a classificação posterior de religiões de mistério – ou simplesmente Mistérios.

Dean Inge, inquirido por S. Angus em The Mystery Religions and Christianity, enfatiza que o catolicismo deve às religiões de mistério “as noções de segredo, de simbolismo, de irmandade mística, de graça sacramental e, acima de tudo, de uma vida espiritual em três estágios: purificação ascética, iluminação e – como auge – a epopteia: ‘contemplação, revelação’”.

A popularidade crescente das religiões de mistério na metade final do Império pode ser explicada em parte como uma reação à religião estatal do Olimpo, que com seus deuses e intrigas demasiadamente humanos foi sendo cada vez mais encarada como intelectualmente pouco sofisticada e emocionalmente insatisfatória.

As religiões de mistério ofereciam uma solução inteiramente nova para a questão da devoção, e também uma nova pergunta: não seria a religião questão mais pessoal do que estatal/comunitária/familiar? A idéia de uma religiosidade que refletisse um posicionamento e uma escolha do indivíduo era nova e mostrou-se irresistível, como comprova o avanço e a penetração dos Mistérios.

Por onze séculos os mistérios de Elêusis sustentaram a esperança do homem até serem destruídos por monges fanáticos do séquito de Alarico em 396. O evangelho órfico foi ouvido no mediterrâneo por melo menos doze séculos. Por oito séculos a rainha Ísis e o senhor Serápis moveram miríades de devotos no mundo romano, e por cinco séculos no romano. A Grande Mãe foi apaixonadamente reverenciada na Itália por seis séculos.

As religiões de mistério exploravam os terrenos até então não-mapeados da religião como forma de auto-expressão e fonte de satisfação emocional. Em muitos sentidos os Mistérios antecipavam no Ocidente idéias que alcançaram consagração definitiva através do cristianismo: o sofrimento como pré-condição para a participação na vitória divina; o monoteísmo; o uso da exaltação emocional e espiritual como escape para as dificuldades da vida; a importância de agrupamentos voluntários com fins de expressão religiosa e apoio mútuo; um modo de vida de renúncia ao mundo.

Tudo isso já pregavam em uma medida ou outra as religiões de mistério quando o cristianismo foi apresentado ao Império. Não é de estranhar que a difusão dos Mistérios seja vista como fator essencial do sucesso inicial do cristianismo, e que o catolicismo tenha em retribuição assimilado e preservado inúmeros aspectos da visão de mundo dos Mistérios.

Em especial, resta nos católicos um notável respeito à noção de graça sacramental, a graça transmitida através dos sacramentos, e a idéia de que o conhecimento – gnose, para as religiões de mistério – pode ser transmitido e experimentado devidamente apenas através do ritual.

A acumulação implacável de rituais e simbolismos acabou reduzindo o cristianismo católico a uma espécie de panacéia mística – emocionalmente satisfatória, sem qualquer dúvida, mas com pouco em comum com a religiosidade frugal e vivencial de Jesus e dos rabis de mãos calejadas que ele representava. A exuberância de uma catedral barroca ergue-se como contraste monumental com a postura dos primeiros cristãos, que pela ausência de imagem, templo e sacrifício eram condenados universalmente no Império como ateus.

Os protestantes, quando se levantaram no século XVI, criam que era sua missão purificar o cristianismo desses sincretismos sacrílegos que se haviam agregado à verdadeira mensagem ao longo dos séculos. Porém hoje, do nosso ponto de vista, não é difícil enxergar que se o catolicismo carrega necessariamente as marcas, os procedimentos e os preconceitos do momento histórico que o viu nascer, o mesmo pode ser dito sem hesitação acerca do protestantismo.
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Fonte: A Bacia das Almas

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