Fonte: A Bacia das Almas
A Bíblia demitologiza a natureza e mitologiza a história.
Alan F. Segal,
Life After Death – A History of the Afterlife in Western Religion
Alan F. Segal,
Life After Death – A History of the Afterlife in Western Religion
No princípio era um caos, e as mitologias pré-bíblicas dão abundante
testemunho disso. Antes que o monoteísmo aparecesse para colocar ordem
no universo, o homem enxergava a si mesmo como um pontinho na superfície
da Terra à mercê das forças arbitrárias e antagônicas da natureza,
forças que eram personificadas em deuses especializados, temperamentais e
geograficamente localizados. A riqueza e as contradições da experiência
eram explicadas pelas iniciativas e pelas interações de um pulverizado
panteão de divindades que, para complicar as coisas, raramente conviviam
entre si de modo pacífico.
Cada deus tinha sua área de atuação e sua descrição de cargo, mas
tinha também seus desafetos, seus preferidos e suas invejas. Havia, por
exemplo, o deus da tempestade e do trovão; havia o deus do mundo
inferior, a deusa do amor e da guerra (porque não há diferença), a deusa
da colheita, o deus do vinho, o deus do mar, o deus-touro da
fertilidade, a deusa-mãe de múltiplas tetas. Cada aspecto do mundo
natural, cada manifestação do seu poder, era regido e representado por
uma personalidade sobrenatural: o sol, a montanha, os rios, os lagos, as
inundações, o fogo, a chuva, a morte, o ciclo da vida. Esses
personagens eram pais e mães, cônjuges e amantes, filhos e filhas,
irmãos e irmãs, parceiros e inimigos – uma árvore inteira de deuses, e
eram como nós: apaixonados, invejosos, caprichosos, inconstantes,
imprevisíveis, lascivos, promíscuos, ocasionalmente generosos,
frequentemente cruéis.
Os seres humanos eram, na melhor das hipóteses, marionetes e
instrumentos dessas entidades; na pior, joguetes debaixo de seus
caprichos. Todos os deuses deviam ser respeitados, e muitos precisavam
ser temidos; alguns precisavam ser apaziguados, e muitos podiam ser
dobrados de modo a fornecer recompensa e proteção – mas não se ignorava
também que agradar um deus podia acabar despertando a ira e a fúria de
outro deus que por alguma razão estivesse de mal com o seu.
Tomadas juntas, as interações entre os deuses, bem como entre deuses e
homens, explicavam cada aspecto deste universo. As mitologias da
natureza elucidavam todo enigma e anulavam toda perplexidade: se as
colheitas faltavam, se a peste alargava sua foice, se o mar engolia os
navios, se os rios subiam e a chuva descia, era porque suas divindades
tutelares estavam irritadas, entediadas ou tomadas de fúria vingativa.
Na verdade, a natureza não era vista como uma coisa só, mas como a
eterna pendência entre antagonismos e contrastes. A complexidade da
experiência era aclarada pela variedade desse pano de fundo mitológico,
pelas inter-relações dos condôminos sobrenaturais entre os quais havia
sido loteado o domínio natural.
Mas isso era antes, quando a terra era sem forma e vazia e havia
trevas sobre a face do abismo. Quando Deus disse haja luz e houve luz,
nada mais seria como era. Em uma única página, a primeira, o Gênesis
drenou todos os poderes do mundo natural e acumulou-os nas mãos da
divindade una. Eras antes que Nietszche explicasse que os homens
havíamos assassinado Deus, o Gênesis declarou a chacina pública de todas
as milhares e milhares de divindades que o precederam.
No Gênesis, a natureza não é explicada pelas tensões entre
personalidades arbitrárias que se antagonizam, mas pela harmonia entre
forças colocadas em andamento pelo único Deus. Nesta natureza não pode
haver caos nem conflito, por isso não pode haver mitologia – o mundo não
é uma selva, mas um jardim antisséptico não contaminado por sereias,
náiades, sátiros, centauros, iaras, elfos, caiporas ou ninfas.
Nesta terra solitária só há Deus e o homem, e tudo na experiência é
explicado pela dança tragicômica entre esses dois personagens. A
história é essa curva desenhada na luta entre o braço divino e as pernas
do homem. Nas palavras de Alan F. Segal, o Gênesis demitologiza a
natureza e mitologiza a história.
A história dos primórdios de Gênesis é nesse sentido um prólogo necessário para a apresentação da ideia de aliança –
um daqueles acordos através dos quais se desenrolará a relação entre
Deus e os homens. Porque, ao contrário do mundo mitológico em que os
contrastes da experiência eram explicados pelo embate entre deuses
antagonistas, debaixo da aliança as vicissitudes e paradoxos da vida são
explicados pela obediência e pela desobediência – ou seja, o homem
deixa de ser joguete dos deuses e passa a ser essencialmente responsável
por tudo que lhe acontece no curso da história. Segal: “a boa sorte e o
infortúnio passavam a depender de variáveis controláveis: o
comportamento do povo”.
O empreendimento do Gênesis, portanto, foi desbastar o universo de
deuses e de mitologias e de arbitrariedades, e colocar no centro o homem
e a responsabilidade pessoal. É por isso que na narrativa o homem tem
de ser o único elemento na criação feito à imagem e semelhança de Deus,
porque o ser humano deve compartilhar com a divindade dos pesados
privilégios da autonomia e da responsabilidade. É por isso que a
primeira coisa que acontece ao ser humano, a aventura primordial que
definirá todos os aspectos da sua condição, é apropriar-se da
contraditória dádiva discernimento moral – o conhecimento do bem e do
mal, – tornando-se nisso semelhante ao próprio Deus.
Como se vê, o monoteísmo parece ter sido ingrediente essencial na
invenção da ideia de responsabilidade pessoal. O Gênesis dá na verdade
interessantíssimo testemunho de que as duas coisas nasceram juntas. O
único Deus despovoou as trevas, tornou nulas as superstições e moldou a
terra como um lugar equilibrado e justo, deixando o ser humano em pé no
meio do seu jardim, livre para escolher a sua própria direção. O homem
deixou de acreditar que vivia à mercê dos caprichos de forças além do
seu alcance e passou a enxergar a si mesmo como sendo responsável por
tudo que acontece ao seu redor. O mundo deixou de ser um incompreensível
campo de batalha de forças competidoras e passou a ser, talvez pela
primeira vez, um uni-verso: um domínio único e coerente amarrado por uma lógica subjacente e fundamental.
Num sentido amplo, a narrativa dos primórdios em Gênesis acabou
gerando uma visão de mundo sem precedentes na antiguidade, uma
cosmovisão tão irresistível e singular que despejou sem cessar
consequências ao longo dos milênios; seus desdobramentos e ondas de
choque não cessam de nos atingir mesmo nos nossos dias.
A visão de mundo da narrativa da criação em Gênesis é
proto-científica, porque é precursora da noção de um mundo que é
governado por uma ordem subjacente, e não pelo caos; é proto-humanista,
porque escanteia o sobrenatural e coloca o ser humano no centro do
palco; é proto-positivista, porque fala de um mundo explicado e definido
por ordem e progresso.
E, como sugerido por Hegel e por Lacan, o Gênesis prefigura ainda um
mundo que finalmente se sentirá à vontade para viver sem Deus, porque ao
matar os antigos deuses (que eram as ferramentas que os seres humanos
usavam para tocar o real) ele abre espaço para a organização do
inconsciente através da articulação e do discurso – através, digamos, do
logos.
Mas isso pode não ser uma coisa boa, e essa é outra história que a Bíblia se ocupará de contar.
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