Ma che cosa è questo amore, che fa tutti delirar?
Aria de Berta, Il Barbiere di Siviglia
Aria de Berta, Il Barbiere di Siviglia
Dizer, como a carta de João, que Deus é amor, aparentemente não basta.
Comentando o verso vinte e sete do décimo-sexto capítulo do evangelho
de João – “porque o próprio Pai vos ama, visto que me tendes amado e
tendes crido que eu vim da parte de Deus” – Agostinho (354-430) toma o
cuidado de qualificar o mecanismo (e portanto os limites) do amor de
Deus por nós. Na opinião de Agostinho, muitas vezes repetida depois
dele, o amor divino pelas pessoas deve ser compreendido exclusivamente
em termos do amor de Deus, interno à trindade, pelo Filho e pelo
Espírito Santo.
“Não que Deus não nos ame,” esclarece o teólogo; “porém Deus nos ama
como seremos, não como somos”. Segundo Agostinho, Deus, por um lado “nos
ama, para que nos tornemos”, por outro “nos odeia pelo que somos, exortando e capacitando-nos a não desejarmos ser para sempre dessa forma1”.
“Deus nos ama como seremos, não como somos”.
Agostinho não duvida de que Deus nos ame, porém segundo ele Deus é
incapaz de amar em nós mais do que o reflexo antecipado do seu Filho – a
quem seremos, se tudo der certo, semelhantes um dia. Deus não nos ama e
não pode nos amar “como somos”, simplesmente porque não há nada em nós
que Deus possa amar sem contradizer e macular a sua singularidade. É por
essa razão, argumenta o teólogo, que só podem beneficiar-se
verdadeiramente do amor de Deus os que se aproximam o suficiente da
pessoa de Jesus.
Simone Weil, em rigoroso contraste,
crê que as pessoas devem ser amadas como são, do contrário “não serão
as pessoas que estaremos amando, e o nosso amor será irreal”. Esta
parece ter sido também, nos evangelhos segundo minha leitura, a
disposição e o ensino geral do próprio Jesus.
O amor de Deus pelo que é indigno, incompatível e desprezível
efetivamente macula, como queria Agostinho, a singularidade divina? Ou
vem, ao contrário, reforçá-la e comprová-la? Se o que Jesus amava numa
mulher adúltera, num agiota ou num endemoninhado não passava de um
reflexo potencial e antecipado de sua própria pessoa, conhecerá Deus um
amor que não seja narcisista? Haverá algo no amor de Deus que não seja
referência interna? Haverá no universo outro objeto digno de amor?
Para complicar as coisas, quanto mais uso essa palavra menos claro
fica para mim do que estou falando. No fim das contas, o amor atribui valor ao objeto amado, ou apenas reconhece
esse valor? O amor precisa do amor? O amor precisa do objeto amado ou
pode prescindir galantemente dele? Pode o amor ser despido, em alguma
parcela, de amor-próprio? Posso condenar Deus por não amar pessoa alguma
além dele mesmo? Com que freqüência consigo mais do que isso?
Pensando bem, é mais fácil pensar que o amor de Deus seja dessa forma
auto-referencial e circular; seria pedir demais que eu aprendesse a
amar como ele, para fora e não para dentro.
1 Agostinho de Hipona, Sobre a trindade, 1.10.21
Fonte: Paulo Brabo - A Bacia das Almas
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