quarta-feira, 9 de maio de 2012

O Karma do livre-arbítrio



Photo by Mamluke

O ser humano está predestinado a discutir incessantemente sobre o livre-arbítrio. Somos realmente livres para escolher o nosso destino, ou está tudo escrito nas estrelas, nos genes ou nos dutos elétricos do sistema nervoso?

Durante milênios a discussão permaneceu, no ocidente cristão, essencialmente teológica. O livre-arbítrio era em geral considerado uma impossibilidade ou uma heresia porque implicava num descuido da divindade. Um Deus realmente soberano, argumentam ainda hoje os calvinistas, não poderia deixar brecha alguma no seu plano. Na opinião dos teólogos reformados tudo está determinado: não há espaço para improviso no controle que Deus exerce sobre o universo, por isso o livre-arbítrio que parece caracterizar a nossa experiência no mundo é ilusão, mero truque de espelhos para nos distrair da dura verdade da predestinação.

Em meados do século XIX, com a ascensão do movimento libertário na política, o livre-arbítrio passou a ser festejado e explorado como discurso em diversos níveis. Cem anos depois o livre-arbítrio alcançava a glorificação final no conceito inescapável de amor-livre,que apenas transferia para o campo da conduta sexual as noções já consagradas de liberdade individual, decisão consensual e auto-determinação.

Porém, justamente quando se havia libertado das amarras da teologia e encontrado consagração na sociedade, o conceito de livre-arbítrio passou a receber impiedosos ataques, e do mais inesperado dos adversários: a ciência. O determinismo teológico foi substituído pelo determinismo científico.

O primeiro baque veio da pena singela de Freud, que ousou opinar que o livre-arbítrio, se existe, é exercido inconscientemente – ou seja, não é para todos os efeitos livre-arbítrio algum. Os verdadeiros golpes, no entanto, vieram dos campos da neurologia e da física, que apenas confirmaram as suspeitas mecanicistas de Julien Offray de La Mettrie em O Homem como Máquina.

Grande parte dos cientistas contemporâneos (dos envolvidos diretamente com o assunto, a maior parte) desconfia da noção do livre-arbítrio com a mesma austera convicção com que os reformados duvidavam dele – mas por motivos inteiramente diferentes, quase opostos. A posição oficial sobre o novo determinismo está bem resumida na sentença do biólogo evolucionário Richard Dawkins: “Como cientistas cremos que os cérebros humanos, embora talvez não funcionem como computadores feitos pelo homem, são tão certamente quanto eles governados pelas leis da física”. A implicação é clara: num sentido muito profundo, somos tão capazes de auto-determinação quanto um palmtop.

Thomas Metzinger, presidente da Sociedade Científica Alemã de Ciência Cognitiva, coloca a coisa nos seguintes termos:

Para objetos de tamanho médio a meros 37° centígrados, tais como o cérebro humano e o corpo humano, o determinismo é obviamente verdadeiro. O estado seguinte do universo físico é sempre determinado pelo estado anterior. Dados um determinado estado cerebral e um determinado ambiente, você não teria como ter agido de outra forma; uma assombrosa maioria de especialistas aceita isso como evidente no atual debate sobre o livre-arbítrio. Embora o seu futuro esteja em aberto, isso provavelmente significa também que para cada pensamento que você tiver e para cada decisão que fizer, é verdadeiro que esses terão sido determinados pelo estado anterior do seu cérebro.

Em alguma página de Borges está escrito que para a divindade (ou para algum ser suficientemente semelhante ao que concebemos como divindade) bastaria o acesso a um único instante de tempo para intuir a partir dele toda a história anterior e posterior do universo. Cada momento está prenhe de todo o passado e de todo o futuro; nesse sentido paradoxal, sou eu no presente que determino o futuro final do planeta e sou determinado por ele. Sou vítima e algoz, escravo e livre. Acho a idéia suficientemente bela para ser verdadeira.

Paulo Brabo - A Bacia das Almas

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