Da correspondência entre Agostinho e Jerônimo
De Agostinho para Jerônimo, 394 d.C.
Convidado pelo papa Dômaso I a transpor a Bíblia completa para o latim, Jerônimo causou controvérsia ao escolher verter o Antigo Testamento a partir do hebraico original ao invés de traduzir a consagrada versão grega da Septuaginta. Agostinho foi um dos que mais enfaticamente se opôs à idéia.
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(…) De minha parte não sou capaz de expressar de forma adequada o meu
assombro diante da noção de que exista hoje em dia algo que possa ser
achado nos manuscritos em hebraico que tenha escapado a tantos
tradutores perfeitamente familiarizados com o idioma.
* * *
De Agostinho para Jerônimo, 403 d.C.
Como já lhe enviei duas cartas para as quais não obtive resposta,
resolvi enviar-lhe agora cópias de ambas, porque não creio que você as
tenha recebido.
(…) De minha parte, eu prefiriria que você nos fornecesse uma
tradução [latina] da versão grega das Escrituras canônicas conhecida
como a obra dos Setenta tradutores. Pois se a sua versão começar a ser
lida de forma mais geral nas igrejas, será coisa muito danosa que na
leitura da Escritura diferenças devam surgir entre as igrejas de fala
latina e as de fala grega, especialmente considerando-se que a
discrepância na versão latina é facilmente demonstrável pela produção da
versão em grego, que é idioma tão amplamente conhecido; enquanto que se
alguém sentir-se perturbado pela ocorrência de algo com que não está
habituado na tradução produzida diretamente a partir do hebraico, e
alegar que a nova tradução está errada, mostrar-se-á difícil, quando não
impossível, acessar documentos em hebraico pelas quais a exceção possa
ser defendida.
Ele chegou a uma palavra no livro do profeta Jonas para a qual você oferece uma tradução muito diferente.
Um certo bispo, um de nossos irmãos, tendo introduzido na igreja
sobre a qual preside a leitura da sua versão, chegou a uma palavra no
livro do profeta Jonas para a qual você oferece uma tradução muito
diferente daquela que tem se mostrado há muito tempo familiar aos
sentidos e à memória de nossos cultuantes, e tem sido recitada por
incontáveis gerações dentro da igreja. Como resultado levantou-se
tamanho tumulto na congregação, especialmente entre os de fala grega,
corrigindo o que havia sido lido e denunciando a tradução como falsa,
que o bispo viu-se obrigado a buscar o testemunho dos judeus residentes.
Estes, quer por ignorância quer por despeito, responderam que as
palavras do manuscrito hebraico estavam corretamente traduzidas na
versão em grego, e que na latina uma delas havia sido subtraída. Que
mais preciso dizer? O homem viu-se obrigado a corrigir a sua versão
naquela passagem, como se ela tivesse sido falsamente traduzida, pois
que não desejava ser deixado sem congregação – calamidade da qual
escapou por pouco. A partir deste caso somos levados a pensar que você
possa cometer enganos ocasionais. Considere também quão grande se
mostraria a dificuldade se isso tivesse ocorrido naqueles escritos que
não podem ser explicados comparando-os com o testemunho de idiomas agora
em uso.
(…) Você portanto estaria nos concedendo dádiva maior se oferecesse uma tradução latina exata da versão grega da Septuaginta.
* * *
De Jerônimo para Agostinho, 404 d.C.
Você afirma que ofereci uma tradução incorreta de alguma palavra de
Jonas, e que um distinto bispo escapou por pouco do seu encargo pelo
clamoroso tumulto de sua congregação, causado pela versão diferente
desta única palavra. Ao mesmo tempo você me nega o conhecimento de qual
palavra foi essa que traduzi mal, privando-me dessa forma da
possibilidade de dizer alguma coisa em minha defesa, e evitando também
que minha resposta se mostre letal para a sua objeção. Talvez seja a
velha discussão a respeito da aboboreira que tenha ressurgido, depois de
manter-se em letargia por tantos anos desde que aquele distinto
cavalheiro (…) acusou-me de oferecer em minha tradução a palavra “hera”
ao invés de “aboboreira”. Já dei resposta suficiente no meu comentário
de Jonas. Bastará no momento dizer que nessa passagem, onde a
Septuaginta traz “aboboreira” e Áquila e os outros traduziram a palavra
por “hera” (kissos), os manuscritos hebraicos trazem “ciceion”, que no
idioma siríaco como é falado hoje em dia diz-se “ciceia”. Trata-se de
uma planta que tem folhas grandes como uma videira, e que quando
plantada cresce até o tamanho de uma árvore pequena, ficando em pé
apoiada no próprio caule, sem necessidade de qualquer apoio de varas ou
de estacas, como requerem tanto heras quanto aboboreiras. Se, portanto,
traduzindo palavra por palavra, eu tivesse colocado “ciceia”, ninguém
entenderia o que isso queria dizer; se tivesse usado a palavra
“aboboreira”, teria dito o que não é encontrado no hebraico. Coloquei
portanto “hera”, para que não me visse diferindo de todos os outros
tradutores. Mas se os seus judeus disseram, quer por malícia quer por
ignorância, como você mesmo sugere, que a mesma palavra que está no
texto hebraico encontra-se também nas versões gregas e latinas, é
evidente que eles não são familiarizados com o hebraico, ou resolveram
então dizer o que não é verdade a fim de zombar dos que plantam
abóboras.
* * *
De Agostinho para Jerônimo, 405 d.C.
Peço-lhe, por favor, enviar-nos a sua tradução da Septuaginta, que eu
não sabia que você havia publicado (…) a fim de que possamos ser
libertos, tanto quanto for possível, das conseqüências da notável
incompetência daqueles que, qualificados ou não, produziram uma tradução
latina; e a fim de que aqueles que pensam que olho com inveja para os
seus proveitosos esforços possam por fim, se possível, perceber que
minha única razão em opor-me à leitura pública da sua tradução do
hebraico nas nossas igrejas foi para evitar que, ao apresentar qualquer
coisa que parecesse nova e contrária à autoridade da versão Septuaginta,
perturbássemos com grave motivo de contrariedade os rebanhos de Cristo,
cujos ouvidos e corações habituaram-se a ouvir aquela versão que tem o
selo de aprovação dado pelos próprios apóstolos. Por conseguinte, quanto
àquela planta do livro de Jonas, se em hebraico não é nem “aboboreira”
nem “hera”, mas algo que fica em pé por si mesmo, apoiado pelo próprio
caule sem a ajuda de escoras, eu preferiria chamá-lo de “aboboreira”
como em todas as nossas versões latinas; pois não creio que os Setenta
teriam-na traduzido dessa forma ao acaso, se não tivessem conhecimento
de que a planta fosse em alguma coisa semelhante a uma aboboreira…
A trajetória das palavras
- O Testamento do Rei
- Diversas palavras
- Uma palavra do livro de Jonas
- A revolução da leitura
- Quando o português dominava a terra
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